Ela saiu de São Paulo decidida a dar um rumo na própria vida. Não era definitivo, só viagem de fim de ano. Mas precisava arrumar a casa.
Fazia tempo que sua vida estava uma bagunça. Nem tudo, para ser honesto. O trabalho até que estava ficando no jeito certo mas tinha o divórcio que estava um nó só. O ex não se posicionava, não fazia nada nem saía de cima. Um atraso!
Uma amiga disse: “olha, busca no candomblé que você tem resposta para suas aflições. Foi no terreio raiz, terra batida, coisa boa”. Lá o Pai de Santo orientou: “pede que Iemanjá atende”.
A mãe quando soube disse para aproveitar o final do ano e irem para Praia Grande. Lá tem uma festa bonita e muita gente leva oferenda para Iemanjá. E a gente aproveita e confere se a reforma que eu fiz lá no apartamento ficou boa.
Mas ela, em face da vida travada que estava vivendo, decidiu que tinha que ir ao encontro da raiz de Iemanjá. Era preciso radicalizar no pedido. Não, nada de África que é longe. O mais perto que a gente tem aqui no Brasil é a Bahia.
Arrumou as malas, os filhos, a mãe e se mandou para passar o final de ano na boa terra baiana. O irmão e a cunhada lá viviam felizes e alugaram uma casa numa vila pequena de pescadores, ao sul de Salvador mas um pouco antes de Morro de São Paulo. Fora dos roteiros turísticos, ainda desconhecido da maioria dos paulista e um lugar ignorado pelos influenciadores de viagens. Perfeito, pensou ela, mais raiz só na África.
Acertaram a festa na beira mar, como mandava o figurino. Todos de branco. Na hora bateu aquela dúvida se precisava de alguma peça azul, para compor com as cores de Iemanjá, mas a Mãe de Santo que orientava o culto disse que não precisava.
Mas fez questão de vestir tudo novo. Vestido e calcinha brancas, soutien nem morta, todas as peças tiradas do pacote para vestir seu corpo que ansiava pelas bençãos da Rainha do Mar.
E assim foi. Festa bonita, animada, na sintonia perfeita com os santos. Embalada por umas caipirinhas mais bem feitas decidiu levar pessoalmente à Iemanjá sua oferenda. Os filhos disseram para ir com calma. Mas sentia um fervor de fé que a impulsionou adiante.
Entrou na água até a cintura, sorridente e feliz e pediu ali mesmo que a Rainha do Mar a cobrisse de bençãos. Ela nem lembra direito como foi mas de repente ela se viu rolando dentro de uma onda, engolindo água e antes que conseguisse pensar sentiu as mãos dos filhos a tirando da água.
Na areia as pessoas, preocupadas, se postaram ao seu redor. O cambono de Mãe Miriam era socorrista no corpo de bombeiros e já se posicionava para salvar sua vida quando ela tossiu metade do oceano. Sua mãe ao ver que a filha estava viva disse: tudo bem?
E ela sorridente disse: melhor impossível.
A mãe, aflita, falou: você quase morreu minha filha.
Ela riu e disse: que nada! Eu estava em boas mãos. Pedi para mãe Iemanjá me lavar e ela mandou um Tsunami! Esse ano vai!
Fala-se que, na velhice, a vida perde a graça. Discordo. Quem perde a graça é o velho, não a vida, que sempre está aberta a quem quer desfrutá-la. Uma das formas de evitar que a graça se perca, mesmo sendo avançada a idade, é cultivar o humor.
O bom humor diante das limitações que a idade impõe é uma forma de resignação ativa. Existe a resignação passiva, que leva à tristeza e a uma espécie de submissão ressentida aos percalços da idade. Não é essa a que o humor propicia, pois quem ri da própria condição mostra que não se submeteu a ela.
O riso não apenas “castiga os costumes”, conforme a expressão latina; não é só um instrumento de crítica social e um recurso para transformar as instituições. Ele também constitui um meio de aferição das carências individuais. Concorre para que o indivíduo tenha a exata medida do seu valor e, sobretudo, reconheça suas fraquezas e impossibilidades.
Rir de si mesmo é um gesto grandioso porque vai de encontro ao egoísmo e à presunção de superioridade sobre os outros. Só os grandes espíritos são capazes disso, pois não temem se ver como verdadeiramente são, quer dizer, sem as máscaras com que normalmente atuam na sociedade. “Atuam” é bem o termo, pois o convívio com as outras pessoas tem muito de representação. E ninguém representa o que é, mas sim o que pensa ou deseja ser.
Rimos do absurdo de certos comportamentos, como o de se deixar filmar vandalizando a sede dos Três Poderes; da hipocrisia dos que no púlpito pregam virtudes, mas na prática são capazes de atos extremos como assassinar alguém; dos que falsamente invocam a pátria e a família para conquistar o poder. O riso atesta um descompasso entre o propósito e a feitura, a expectativa e o fato, a visão do mundo e o que o mundo realmente é.
Fala-se que os humoristas são tristes, o que em nada surpreende. Se escolhem o humor, é porque há nele a revelação da impotência humana para mudar o que a vida tem de insuficiente e frustrante; os humoristas traduzem como poucos essa dura percepção. Toda manifestação de humor é, no fundo, um gesto de piedade. Só que o humorista não tem o propósito de salvar nada nem ninguém; ri desse ingênuo propósito, que não nos redime da nossa condição.
Aos velhos, para os quais tendem a se fechar as possibilidades de viver plenamente, o humor é uma espécie de volta por cima. Um meio de superar as limitações de um corpo no qual mínguam os recursos vitais. Nessa quadra da vida, propícia ao cultivo do espírito, o riso aparece como um saber que consola – com a vantagem de reduzir a pressão e aliviar as coronárias. É preciso desconfiar dos velhos que não aprenderam a rir.
Bem aventurados os corajosos de plantão que seguem incontidos na emoção de uma nova experiência lúdica ou fugaz, para suas vidas, lhes restando apenas enfileirar uma delas, na vez, oportunizada pela insistência.
Não devemos desistir de carregar a dor da reconstrução, ela é apenas a forma que se apresentou para dizer que a conta da vida ainda está aberta, em compasso de espera de suas novas decisões, mesmo que parcas e tímidas, porém, destemidas e insistentes, plantadas nesse fulgor de esperança, às margens do rio que ainda corre em nossas veias abertas.
Não deixemos o passado nos afortunar com acomodação e brevidade nos passos. Esse rumo desajeitado e torto espera uma atitude para consertá-lo e trazer sentido à isso tudo que passa, porque tudo passa, e nós que ficamos agora, somos os operários desse caminho que vai iluminar a muitos, depois que aprontarmos tudo para utilizarem.
Não esqueçam que a vida não nos deve absolutamente nada, mas sim espera a sua escolha, seja ela a próxima tentativa ou a primeira, de tantas, ou que talvez lhe pareça a última na lousa, que aguarda sua assinatura como titular dessa obra.
Façamos um acerto de contas com a vida, um sub total, porque ainda estamos vivos, da maneira possível, e seguindo á busca de respirar mais leve, com um pouco de lágrimas e suor rasgado nesse corpo batido pelo tempo e surrado pelas ideias.
Algumas não deram em nada, outras tantas desenharam uma estrada que nos deixou nesse paradouro, para tirar umas fotos com alguém, ou sozinho, olhando para o nada, que também não responde, mas segue a espera de um desbravador, um aventureiro de calçadas sobrevividas de tanto pisar, marcadas por trilhos singulares, e outros nem tanto, mas que foram pintados de destino, desenhados por artistas que teimam enxergar um paraíso naquele túnel sem fim que é o nosso futuro.
Estamos a busca de vida aos dias e não de apenas dias as nossas vidas, e como lembrou com inteligência o Apóstolo Paulo: “Tudo posso, mas nem tudo me convém”. E ao tentarmos cruzar tal fronteira limitada a nossa carência, que se mantém resguardada, não por pastores alemães e muros encimados de arame farpado, mas pela névoa espessa dos paradoxos de que somos feitos, descobrimos, trêmulos, que também somos sentinelas de nós mesmos.
Que atire a primeira pedra quem nunca se esconde de si mesmo.
Se você pudesse olhar para o espelho sem a máscara que criou, quem você enxergaria?
Este ano toca plantar e colher milho, já deram a ordem. Antes já foi feijão e trigo. Milho agora. A gente ouve, a gente cumpre. Mas não vai chover uma gota, disseram. Outra colheita perdida. Apesar de tudo, Clementina segue na lavoura, cavucando a terra seca com a enxada sempre à mão, fazendo valas, eliminando as ervas daninhas, arrancando cogumelos e caracóis, preparando o terreno.
Edimburgo, que preciosidade, como veio gordinho e perfeito! Clementina viu a foto do pôr do sol na vitrine de uma agência de viagens antes de entrar no mercado para vender seus legumes e frutas. Estava para cumprir os nove meses e Edimburgo veio uma semana depois, que a natureza sabe agir como deve. No dia seguinte estava em casa e todos bateram palmas. O menino dormia.
Clementina se lembra, seu casamento foi feito às pressas porque logo ia chegar a temporada dos tomates, depois a das azeitonas e em seguida seria o tempo dos morangos, e tempo era o que ela não podia perder. Foi quando Tereza chegou. De sete meses e meio, apesar dos três quilos bem pesados e de quase arrebentar a balança — era isso o que a avó fazia questão de contar naqueles tempos, sempre que via a neta arrumadinha para a escola. Depois Clementina percebeu que Tereza tinha vindo antes do tempo para abrir e apressar o caminho. A fila já estava preparada, era só descer.
Foi um por ano. Marcelino, Isaura, Tomás, Percival, Marrocos, João Clemente e Célia Maria, sem contar os gêmeos, que chegaram feito duas folhas de papel transparente e até se via cada uma das veias das perninhas. Clementina quase nem percebeu, eles escorregaram de seu entrepernas quando ela estendia as roupas no varal. Não vingaram. Enterrou os dois lado a lado no canto do quintal, onde nunca falta flor.
Clementina está cerzindo meias, entretida nesses pensamentos. Daqui a pouco vai fazer o cálculo de quantos braços dispõe para oferecer mão de obra ao dono da terra e incrementar o orçamento da casa. Célia Maria, apesar de muito nova, pode cuidar do Edimburgo, que é bebê ainda. Os demais, cada um já ganhou de presente a sua própria enxada. Não tem homem, não tem mulher: é todo mundo, sem distinção. Disseram que não vai ter chuva, mas o trabalho será feito. Clementina é quem garante.
Toda noite o barulho dos saltos de Dona Sílvia estalava no assoalho de madeira. O ritual era sempre o mesmo: ela conversava alguns minutos ao telefone, abria uma garrafa de vinho, tomava um banho demorado, se arrumava e esperava o próximo chegar. Ele tocava o interfone, ela calçava os saltos e saía apressada para abrir a porta. Parecia recuperar o fôlego antes de dar o primeiro “Oi!”, e o que se passava depois era sempre abafado por barulhos de beijos e outros um pouco mais comprometedores. Tudo durava no máximo duas horas e aí outro ritual começava: o rapaz se despedia, ela guardava as taças, abria a porta, talvez o beijasse, e descalçava os saltos no meio do corredor. Ligava a TV, abria mais uma garrafa de vinho e chorava vendo algum filme meloso até o dia raiar.
Nunca vi Dona Sílvia sair de casa antes do meio-dia. Os motivos eram meio óbvios, mas ela estava sempre radiante no meio da tarde. Viúva, bonitona, ia sempre à academia, e talvez pela endorfina, parecia até estar de bem com a vida. Parecia. Dizem que nunca esqueceu o marido e todas as noites chamava um rapaz diferente para, digamos, conversar. Não sei exatamente se era falta de carinho ou mesmo de sexo. A questão é que ela era uma mulher realmente solitária. Os filhos quase nunca a visitavam e pareciam não aprovar essa nova forma de diversão da mãe. Mas, essa forma seria realmente nova?
Menina bem-criada, educada em um conceituado colégio interno, aprendeu a tocar piano, sabia bordar como ninguém e se casou com aquele aprovado pelo pai. Não era só por amor, mas também por conveniência. Uniam-se sobrenomes, fortunas e filhos de maneira prática e constante naquela época.
Como eu sei de tudo isso? Bem, isso é quase – ou bastante – constrangedor, mas um dia precisei entrar às pressas no apartamento dela. Digamos que algo saiu um pouco do controle e Sílvia se machucou com um dos rapazes. Como sou o vizinho mais próximo, acabei ganhando a missão de levá -la até o pronto socorro e trocamos algumas palavras – por educação, a princípio – mas nas visitas que lhe fiz, também por educação, fui me encantando com aquela mulher e seu modo de viver nada tradicional. Como consequência do ato impensado, Dona Sílvia quebrou o braço direito, o que a impossibilitava de fazer a maioria das atividades domésticas. Ela não me pediu diretamente, mas fez parecer que estava me fazendo um favor aceitando a minha presença em sua casa diariamente. Como eu estava tralhando em um livro e não tinha horários fixos – muito menos rígidos – para sair ou fazer algo na rua, podia dar a ela o privilégio da minha presença. Ou vice-versa, como ela colocou desde o início. O que poderia ganhar em tão insana companhia?
No primeiro dia que fui ajudá-la encontrei a porta aberta e um cheiro doce de café e algum quitute que parecia estar sendo feito na hora. Dona Sílvia cantarolava uma canção e não parecia nada impossibilitada, mesmo com o gesso no braço direito. Sua casa era repleta de lembranças do que pareciam ser os seus áureos tempos. Além de várias fotos, provavelmente de filhos e netos, na parede principal da sala um quadro imponente se destacava. O homem retratado era tão imponente quanto e, tanto a moldura dourada quanto o semblante rígido traziam uma aura quase imperial. Quem poderia ser? Móveis pesados contrastavam com a leveza das cortinas e o colorido das almofadas. Tudo parecia requintado, caro, menos as imagens de Nossa Senhora que surgiam em diferentes estilos e tamanhos. Uma devota, com certeza. Sílvia também era Maria e naquela tarde ela vestia um robe salmão de cetim e parte do seu corpo podia ser vista entre uma e outra conferida no forno. Não me entendam mal, não poderia ter nenhum tipo de atração por aquela senhora que muito bem poderia ser minha mãe ou uma tia mais velha. Mas devo admitir que, para seus anos de experiência, ela estava mesmo em forma.
– Você gosta de broa de milho? – Ela me perguntou entre uma estrofe e outra de alguma música de Maria Bethânia. Ou era do Roberto Carlos?
– Adoro. Lembra as tardes da minha infância!
– A mim também! Mas tenho certeza de que você nunca comeu nada igual à minha broa.
Pode parecer loucura, mas percebi uma certa malícia na palavra “broa”. Ok, eu poderia estar delirando, pelo total marasmo sexual que se tornara a minha vida.
– Esta receita é de uma beata que sempre fazia broa para os lanches de domingo na igreja que eu frequentava na minha terra. Era o primeiro quitute que acabava… não sobrava nem farelo!
Realmente, nunca tinha provado nada igual. A broa de milho do Rio é seca, apenas com milho e farinha. A de Dona Sílvia vinha recheada de pedaços de queijo minas e ainda tinha raminhos de erva -doce. Ela derretia na boca e enchia todos os sentidos com novos cheiros e sabores. Acompanhada do café fresquinho, era quase um orgasmo gustativo. Ok, vou parar de fazer comparações sexuais. Dona Sílvia podia ser minha avó!
– Nem sei como agradecer a sua presença, querido. Não sei o que faria sem você!
– Pelo visto, a senhora está se saindo muito bem sem poder usar o braço direito!
– Claro, querido! Sou canhota!
Ardilosa, aquela mulher.
– E, na minha época, ser canhota era como ser bruxa. Ou até mesmo o próprio belzebu. A mão esquerda sempre foi tida como coisa do capeta. Na escola, amarra- vam a nossa mão “errada” e nos forçavam a fazer tudo com a mão direita. Acabei aprendendo a usar as duas e nunca tive dificuldades em usar ambas. Ou cada uma delas da maneira que fosse preciso. Você sabia que até mesmo fazer o sinal da cruz com a mão esquerda era pecado? Nem sei se ainda é… Ainda se faz isso?
– Sinceramente, não sei, Dona Sílvia…
– Sílvia! Pelo amor de Deus! Não é porque tenho idade para ser sua mãe que você precisa me tratar como uma viúva italiana. Acho que devo fazer mais sexo do que você… Não tenho ouvido muitos ruídos vindos do seu apartamento!
Sinceramente, não sei se estava comendo a broa ou tomando o café naquele momento, mas me senti tão envergonhado que só me recordo de ter cuspido alguma coisa… Ou ambas. Dona Sílvia, que poderia tanto ser minha mãe como uma das minhas professoras do ginásio, falava sobre sexo com a ousadia de uma ninfeta ninfomaníaca. Como assim, não escutava ruídos do meu apartamento? E a noite em que… E a que… Bem, venhamos e convenhamos que as coisas estavam um pouco paradas, eu estava concentrado no livro – que ainda estava no primeiro capítulo – mas ser humilhado por uma quase anciã era demais!
– Dona Sílvia… – ou melhor, Sílvia –, me desculpe, mas eu não falo muito sobre esse tipo de assunto com pessoas com quem não tenho muita intimidade. Na verdade, acho que nunca falei sobre esse tipo de coisa com ninguém!
– Meu Deus, mas por quê? Temos todos a mesma origem, somos seres sexuais, gostamos mais ou menos das mesmas coisas. Ou você não gosta de transar? Tem gostos bizarros?
Minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento e sentia um calor febril nas faces. Devia estar muito vermelho e gostaria apenas de sair daquele apartamento.
– Realmente não entendo essa frescura toda quando o assunto é sexo. Se seu pai e sua mãe não tivessem feito nada disso, você não estaria aqui. Apesar de que, na minha época, a mulher transava mesmo para procriar. Você sabia que ninguém se importava se a mulher gozava ou não? E não tinha esse negócio de preliminar, não! Nosso corpo era como um santuário: não podia ser explorado, apreciado, revirado… Quanta bobagem, meu Deus! Algumas camisolas que usávamos na noite de núpcias tinham apenas uma abertura na… Bem, você sabe onde. Todo o resto do corpo ficava coberto, não tinha função. Fui descobrir as delícias de uma boa chupada no peito depois de viúva. Dá para acreditar? E é um manjar dos deuses, pode acreditar! Ainda atônito com a imagem de meus pais me concebendo, fiquei imaginado como uma pessoa poderia conjugar no mesmo parágrafo tanto Deus com um quase nome do órgão sexual feminino. Desculpem, mas me recuso a falar buceta. Que seja, então. Estava tonto demais com tanta informação.
– E você? O que mais gosta na cama?
Entendi como uma deixa: percebi que era hora de ir.
Perguntei se ela precisava de mais alguma coisa, agradeci o lanche e deixei meu telefone para qualquer emergência. Nem meu terapeuta havia tentado invadir a minha intimidade com tamanha fúria. Levei um pedaço de broa para o café da manhã – ela insistiu – e ainda tentava esquecer a imagem de meus pais em atos obscenos quando cheguei em casa.
Mas não foi exatamente essa imagem que não me deixou dormir. Tentava descobrir quem era aquela nova Dona Sílvia. Sílvia. Sabia que ela recebia seus amantes, que não era muito bem vista pelas outras mulheres do prédio, mas nunca imaginei que ela teria tamanha naturalidade ao falar sobre assuntos que me envergonhavam até em pensamento. Com certeza ela não teve uma criação liberal, não na época em que nasceu. Havia se tornado hippie? Era adepta do amor livre? Tinha uma vida secreta que escondera dos filhos e do marido? Quem era realmente Dona Sílvia? Ou melhor, Sílvia Maria.
Esse era o nome que constava na conta de luz que usei como desculpa para rever a minha misteriosa vizinha. Toquei a campainha com a conta e uma vasilha com outro pedaço de bolo, esse comprado na confeitaria da esquina. Posso não ser um lorde, mas aprendi algumas coisas com minha mãe. E uma delas é que nunca se devolve um prato ou uma forma de bolo sem alguma coisa dentro. Comestível, de preferência.
– Ei, menino! Que bom que voltou! Acho que te assustei um pouco ontem, não foi? Desculpa, mas fico muito tempo sem ter com quem falar e acabo extrapolando.
– Imagina, Don… Sílvia. Gostei muito das nossas conversas. Talvez não estivesse mesmo preparado, mas…
– Prometo que não vai se repetir, meu caro. Obrigada pelo bolo e pela conta.
E fechou a porta. Como se algo urgente lhe esperasse do outro lado, como se minha presença fosse dispensável – de fato era – como se sua total independência houvesse voltado. Me senti um grande idiota. Um idiota careta, o que é pior.
Alguns dias se passaram e não conseguia achar uma desculpa para voltar à casa de Dona Sílvia. Queria ouvir mais, falar sobre os meus dramas, os porquês da minha cama e de as páginas do meu livro estarem sempre vazias. Pensei na minha falta de inspiração e como ela poderia me ajudar. Resolvi ser sincero, me retratar. Talvez outro bolo me ajudasse. Ou uma broa de fubá.
– Boa tarde, Sílvia. Tudo bem? Acabei de voltar da rua e não resisti ao cheiro dessa broa… Será que ela chega aos pés da sua?
Ela sorriu de um jeito como quem não precisa de mais explicações e disse:
– Só há um jeito de saber!
Da cozinha vinha aquele cheiro familiar de café – parecia ter adivinhado a hora do lanche – e Sílvia Maria cantarolava uma nova música. Essa parecia ser de Gal.
– O segredo da broa está no recheio. Esse pessoal novo não sabe disso. Broa, na minha terra, tem excesso de queijo, e queijo bom, fresco. Não queijo de supermercado, dentro de plástico. Queijo precisa respirar…
Eu, como bom carioca da gema, nunca havia tirado leite de vaca, muito menos sabia como fazer um queijo.
Mas Sílvia parecia ser uma expert no assunto:
– Por exemplo: você sabe a diferença do queijo frescal para o curado?
– Curado? O que é isso?
– É um tipo de queijo, menino… Ele tem mais sal do que o frescal, é mais firme, mais amarelado…
– Interessante. – Não consegui demonstrar nenhuma empolgação.
– Mas você parece que não veio aqui falar sobre queijo, não é?
Ela me olhou da mesma maneira maliciosa do dia da broa e – juro – eu não estava vendo coisas. Fiquei ruborizado e apenas mudei de assunto.
– O braço da senhora está melhor?
– Está tudo melhor, meu filho! Eu me sinto ótima, pronta para outra!
– Por favor, Sílvia. Não vá se machucar novamente!
– Se for da mesma maneira que da outra vez, vou adorar!
Senti novamente aquele incômodo, e ela percebeu.
– Me desculpa, querido… Não quero te constranger, mas não sou muito boa com as palavras… Sempre falei mais do que devia, fiz o que não podia e me dei mal quase todas as vezes.
– Você não parece ter se dado mal na vida, Sílvia.
– Ser mulher não é uma coisa fácil, meu filho. E para uma mulher que não se encaixa nos padrões, é muito pior.
Sofri muito por ser diferente, por gostar demais das coisas ditas “erradas”. Hoje vejo que os errados são os outros, os que fingem sentimentos, escondem as emoções e passam pela vida alimentando mentiras. Nunca fui assim, mas não me arrependo de nada.
– Mas a senhora parece ter tido uma vida tão normal… Foi casada, teve os seus filhos…
– E logo, logo, serei avó…
– Avó?
– Na minha época, a gente se casava muito nova. Faz as contas, Carlos: tive o meu primeiro filho ainda menor de idade. Então, com 54 anos, já posso ser avó!
Fiquei pensando que o seu corpo não condizia mesmo com a sua idade. Ela devia malhar ou aquilo tudo era fruto de uma excelente genética. Mas me desfiz dos próximos pensamentos, e continuei:
– Que coisa boa! Está vendo, não tem como ser mais… comum!
– Vamos deixar de ser hipócritas, Carlos. Você sabe muito bem o que eu faço todas as noites. Você me levou para o hospital depois de me ver na posição mais não-ortodoxa do Kama Sutra. Talvez nem você mesmo tenha experimentado a “Toda Poderosa”. É claro que eu não sou… comum!
Quando ela me chamou pelo nome, me senti como se minha mãe estivesse me levando para o castigo. Mas esse sentimento desapareceu assim que ouvi a palavra “Kama Sutra”. Não sabia como tratar essa mulher. Não me sentia homem suficiente perto dela. Não era filho, não era amante… Seríamos amigos?
– E eu até entendo esse espanto todo, pois com certeza você nunca ouviu uma mulher da minha idade falar sobre esses assuntos com tanta franqueza. E sabedoria, claro! Na minha época, a gente não tinha vez nem voz.
Éramos apenas enfeites, seres não confiáveis, carnes penduradas no açougue para serem compradas. Só tínhamos valor se acompanhadas de um homem, fosse pai, irmão ou marido. Se não tivesse marido, depois de certa idade ficava para cuidar da mãe, porque não tinha outra serventia. Já imaginou?
Claro que eu já tinha ouvido histórias assim, mas nunca de alguém tão próximo a mim. Apesar de ter nascido em plena revolução sexual, meus pais não eram de falar muito sobre esses assuntos e o máximo de conhecimento que obtive foi em filmes e documentários sobre algumas mulheres notáveis e o movimento feminista. Era chocante!
– Só que eu nasci na época errada, entende? Nunca abaixei a cabeça para o meu pai; questionava todas as ordens que me eram dadas; tinha uma curiosidade feroz. Nunca aceitei não como resposta e era muito atrevida. Nossa empregada, uma senhora doce e sábia, neta de escravos, sempre dizia que o meu nariz empinado era sinal de que ninguém iria me domar. Se fosse hoje, eu acreditaria. Na época, apanhava sempre que me negava a obedecer. Um dia, talvez cansado de me bater ou de brigar, meu pai resolveu me mandar para o colégio interno com a esperança de que voltasse domada e pronta para me casar.
Ledo engano. No primeiro dia de internato, machuquei as mãos na queda em um balanço e não conseguia me fazer entender. As freiras, francesas, viam minhas mãos sangrando e fingiam não ter como ajudar. Desesperada e com dor, fugi pela mata que circundava a escola. Me acharam toda suja e me levaram de volta. Fiquei uma semana de castigo por desobediência e lambia as mãos para acalmar o ardor das feridas. Quer mais café?
Eu ainda sorvia as últimas informações e o derradeiro gole de café. Aceitei mais, para continuar a conversa e experimentar a tal broa que eu mesmo levara.
– Claro! Está uma delícia! E vamos comparar as broas? Mas você acha que todas as freiras são ruins?
– Você tem alguma dúvida de que a minha é melhor?
Mas vamos experimentar a sua…
Enquanto servia fatias generosas daquela broa que, com certeza, não tinha nada de queijo no recheio, ela continuou:
– Sinceramente, acho que foi aí que começou o meu pavor por freiras. Bem, claro que nem todas. Durante um inverno muito rigoroso, meus lábios estavam muito rachados e não tínhamos acesso a quase nenhum remédio. Eu passava a língua, mas quanto mais a saliva entrava em contato com as freiras, mas meus lábios sangravam. Uma dessas freiras, bem novinha… – Não, ela ainda era noviça, ou seja, não havia se tornado freira – … pegou um pouco do óleo que alimentava as luminárias da igreja em que rezávamos e passou de maneira abundante na minha boca. As rachaduras sugaram aquele manjar e, em dois dias, eu já estava curada. Mas ela não precisava ser freira para fazer uma boa ação. Quem disse que para ser fiel a Deus temos que fazer voto de castidade? Quem disse que sexo é pecado? Você realmente acha que Jesus era casto?
– Bem, diz a Bíblia que sim…
– Bobagem, meu filho! Ele seria casto por quê? Na época dele não existia a tal Igreja Católica com todas essas regras sobre todas as coisas. Você acha mesmo que Deus nos daria tantas possibilidades de prazer se não pudéssemos usufruir delas?
– Esse é um ponto interessante…
– Mas é claro! O pecado está na cabeça de cada um. Errado para mim é proibir alguém de ser feliz. Imagina quantos padres não devem ter deixado de viver suas paixões por outros homens ou mulheres por acreditarem que era pecado? Muitos entravam para a Igreja porque as famílias eram pobres e não tinham como arcar com uma educação de qualidade. Na minha cidade mesmo tinha um que sempre almoçava nas casas das famílias mais abastadas. Minha mãe, carola que era, fazia questão de convidá-lo e sempre que ele ia embora, ela lhe emprestava um livro da coleção Saraiva. Eu era encarregada de buscá -los, mas não podia sair sem meu irmão mais velho. Em uma dessas idas até a casa paroquial, ele pediu que eu buscasse outro livro e deixasse meu irmão lá. Quando voltei, ele estava nu e meu irmão lhe acariciava o pênis. Fiquei tão chocada que deixei o livro escapar e os dois se assustaram com o barulho. Saí correndo e nunca contei a ninguém. Sabe por quê? Porque ninguém iria acreditar em mim. Também nunca perguntei se aquilo era consensual ou não para o meu irmão. Acho que prefiro não saber.
– Mas os seus pais nunca desconfiaram?
– Pai e mãe nem olhavam direito para os filhos. Imagina. Éramos sete, meu pai ficou viúvo quatro vezes, eu dava trabalho pelos outros seis. A gente nem abria a boca; tinha medo até de respirar mais alto.
– Mas, e o colégio interno? Conseguiu endireitar à senhora?
– É claro que não, né, Carlos? Fui expulsa por ter modos lascivos já no primeiro mês. Eu tinha comichão sexual, se é que posso dizer assim. Queria entender o meu corpo, tinha um prazer louco quando me tocava. Mas em um local com 20, 30 pessoas dormindo em camas muito próximas, era loucura se manifestar. Como tudo era pecado, abafava meus gritos no travesseiro e me esfregava no lençol depois que todas já estavam dormindo. Mas eu gozava de maneira abundante e meus lençóis amanheciam sujos e com cheiro de sexo. As freiras começaram a desconfiar e passavam a noite me observando. Me descobriram e me expulsaram.
– E como seu pai aceitou isso?
– Ele não aceitou. Me mandou para outro colégio, em outra cidade, pagou uma fortuna para que as freiras me endireitassem e deu ordens expressas de que eu só sairia de lá casada. Não o culpo, coitado. Ele não tinha a menor condição de cuidar de tantos filhos e ainda de uma fazenda. Não existiam pais solteiros nessa época; os homens não eram criados para essa função.
– E então? Esse outro colégio deu certo?
– Bem, para o meu pai, sim. Saí de lá casada com um bom moço. Muito bom, na verdade. Meu marido se apaixonou pela minha impetuosidade, mas não sabia o que fazer comigo na maior parte das vezes. Ele estudava em um colégio militar, bem próximo ao meu. À tarde, quando tínhamos permissão de ficar no pátio, alguns dos alunos desse colégio passeavam próximos às altas grades e deixavam bilhetinhos para as suas escolhidas. Se fossem aprovados pela família, os relacionamentos evoluíam – sob os olhares rígidos das freiras – e bons casamentos eram arranjados. Era uma excelente solução para a maioria das famílias, que garantiam filhas virgens e os rapazes não eram desmoralizados na sociedade.
– Deve ser muito estranho se casar com alguém que você nem ao menos transou.
– E transar com alguém garante que vocês serão felizes para sempre? É por isso que tudo hoje em dia termina tão rápido. As pessoas já perderam o mistério, não conversam mais, se impacientam rapidamente com os defeitos um do outro. Na minha época, o primeiro beijo era um acontecimento! Pegar na mão tinha a sua magia! Hoje, vocês mudam de parceiros como mudam de roupa.
– E transar com alguém garante que vocês serão felizes para sempre? É por isso que tudo hoje em dia termina tão rápido. As pessoas já perderam o mistério, não conversam mais, se impacientam rapidamente com os defeitos um do outro. Na minha época, o primeiro beijo era um acontecimento! Pegar na mão tinha a sua magia! Hoje, vocês mudam de parceiros como mudam de roupa.
– Olha, Carlos, o que eu faço todas as noites não tem nada a ver com amor. E o amor, de verdade, não tem a ver só com sexo. Eu já vivi o tal amor com o pai dos meus filhos. Não éramos exatamente Romeu e Julieta, mas nos amávamos. Construímos uma bela família e tivemos uma vida feliz. Nunca lhe faltou sexo, porque eu gostava até mais do que ele. Gostava não, gosto! Se não tivesse me casado com Augusto, acho que seria puta. Você já foi a um puteiro?
– Não…
– É tão alegre e festivo! Claro que nunca entrei em um, aí também seria demais. Mas um dia, voltando da escola – devia ter uns sete anos –, quis saber o que tinha em uma rua sem saída, um pouco afastada da praça principal da minha cidade. Sempre quando passava por lá com a minha mãe, ela se virava para o outro lado e fazia o sinal da cruz. Eu nunca entendia o porquê e morria de curiosidade de saber o motivo. Nesse dia, tomei coragem e entrei pelo beco. As putas ainda estavam se levantando após a noite de trabalho – e prazer – e pareciam seres quase angelicais. Elas estendiam as roupas íntimas nas janelas e lavavam os cabelos com água de alfazema. Era um mundo paralelo, com cores vivas e canções misteriosas, que nunca havia escutado nas missas dominicais. Mas todas, sem exceção, tinham expressões felizes. Muito tempo depois consegui entender o motivo.
– Não vai me dizer que elas tinham uma vida fácil?
– Claro que não. Mas eram livres! Exatamente por serem tão marginalizadas e colocadas de lado pela sociedade, elas podiam fugir dos padrões e usar calcinhas vermelhas e cantar músicas de cabaré sem nenhum pudor. Muitas apareciam nuas nas janelas e varandas, mas aquilo não me assustava, porque elas não tinham vergonha do seu corpo. Era tudo natural, livre, como deveria mesmo ser.
– A senhora acha que deveríamos ficar nus nas janelas?
– Ai, Carlos! Você é muito literal! Claro que não. Mas o que deveria causar mais vergonha? Um seio nu ou uma criança morrendo de fome?
– Acho que não estamos preparados para as suas ideias!
– Nem hoje, nem naquela época. Quando cheguei em casa e fui perguntar à minha mãe por que ela fazia o sinal da cruz quando passava pelo beco das moças alegres, levei um tapa no rosto que me feriu a alma. Entendi menos ainda o porquê de tanta raiva daquelas mulheres e fiquei algum tempo sem conversar com minha mãe. Ela morreu meses depois e não tive tempo nem de me desculpar. Ou de me fazer entender. Hoje, sei que a felicidade das putas era algo que deveria irritar profundamente uma mulher que só fazia parir e obedecer ao meu pai. Será que minha mãe gozou alguma vez na vida?
– A senhora já?
Sílvia me olhou, pela primeira vez, assustada. Não imaginava que eu, logo eu, seria capaz de constrangê -la.
– Sim, Carlos, já gozei. Algumas vezes, com meu marido. Outras, com um belo amante que tive enquanto éramos casados.
– A senhora teve um amante?
– Ah, Carlos… Chegamos a um ponto do nosso casamento em que os filhos estavam criados, meu marido estabilizado e eu ainda me sentia inquieta. Chamei Augusto para conversar e acredito ter sido a precursora do tal “relacionamento aberto”. Mas não poderia imaginar que ele só aconteceria para mim. Meu marido ainda era apaixonado pela menina que conhecera no colégio interno e não admitia sentir desejo por outra mulher. Ou, então, fingia muito bem. Mas ele sabia que não poderia me segurar por muito tempo, e como não cogitávamos nos separar – não por comodismo, longe disso, éramos grandes amigos –, fomos até o final. Resolvi propor um acordo. Se eu me sentisse muito atraída por outro homem, proporia a ele termos um relacionamento consensual e discreto, apenas em locais que não seríamos descobertos, muito menos que pudesse expor Augusto de alguma forma.
– E deu certo?
– Deliciosamente! Conheci meu amante em um jantar da Sociedade Brasileira de Medicina. Ah, sim! Augusto era cardiologista, renomado. Ao sermos apresentados, esse homem beijou a minha mão de tal maneira que imediatamente criou uma corrente elétrica. Ela percorreu todos os recantos do meu corpo e conseguiu arrepiar a minha nuca. Tive a certeza de que seria ele, e Augusto também notou. Fiquei eufórica a noite toda, tomava champagne sem parar e quase fiz uma bobagem. Era correspondida de maneira eletrizante e flertávamos sem parar. Mas meu marido era um homem muito elegante; me chamou para conversar longe de todos e disse: “Se você quer tanto dar para ele, pelo menos marque em um local que ninguém os conheça”.
Consegui me conter pelo resto da noite, mas logo pela manhã, com o cartão dele em mãos, liguei. Trocamos poucas e necessárias palavras e já estávamos juntos naquela mesma tarde. Me senti como a Belle de Jour, a própria Catherine Deneuve do filme de Buñel.
– Quem?
– Ah, Carlos! Se você soubesse mais eu seria sua…
Alguns dias até me inspirava nas roupas da Belle de Jour para me encontrar com meu amante. Queria ter aqueles belos cabelos louros…
Bem, tínhamos tardes tórridas, sempre em locais diferentes e longínquos. Dávamos nomes falsos, algumas vezes cheguei a usar perucas louras e ruivas para despistar algum curioso e, também, satisfazer as fantasias do meu novo homem. Éramos felizes por instantes eternos antes de voltarmos para as nossas realidades.
– E por que vocês não ficaram juntos? Não se amavam?
– Não sei se o que tivemos foi amor. Sei que eu precisava do sexo, da aventura. Ele concordava com a situação; também era casado e parecia mais carente do que exatamente com tesão. Tivemos uma atração muito forte no início, como duas almas que buscam a liberdade. Mas era só aquilo, tudo terminava no seu princípio. Não imaginava apresentá -lo aos meus filhos, refazer minha vida com ele. Era uma fuga, um… Momento feliz.
– A senhora foi feliz?
– Eu SOU feliz, Carlos. Por mais que todos pensem que sou uma mulher vulgar por pagar para ter prazer, sou uma pessoa totalmente realizada. O dinheiro é meu, faz parte da minha herança, e se posso ajudar alguns rapazes bonitos e me satisfazer, que mal tem? Cansei de lutar contra a minha natureza. Meus filhos até hoje não me aceitam. Acham que sou escandalosa, criticam meus decotes, minha risada alta, meu batom vermelho, minha alegria estampada. Acham que eu não respeito a memória do pai. Como não, se eu dei a ele, em vida, tudo que ele me pediu e mereceu? Se até na hora de trair eu o fiz com respeito? Tínhamos nossas diferenças, mas nunca deixamos de nos amar e de confiar um no outro. Nunca passamos dos limites que colocamos para a nossa relação. Já tentaram me exorcizar, Carlos. Já tentaram me podar de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Diziam que eu tinha o capeta no corpo, que nada daria jeito em mim, que ninguém jamais me escolheria do jeito que eu era. Mas fui escolhida, amada e respeitada como merecia. Nunca condenei ninguém, mas sempre me condenaram por crimes que não cometi. Pelo menos, não eram crimes para os meus valores. Hoje, eu canto para esquecer a saudade dos meus amores. Meu marido, meu amante, meu pai, que nunca me entendeu. Se me relaciono com garotos é para fugir um pouco da solidão, sentir um corpo quente no meu, receber um carinho. Meus filhos nem ao menos me abraçam. É muito fácil julgar as pessoas sem conhecer as histórias, os caminhos. Não quero ser exemplo. Só quero ser feliz. Já sofri muito, querido. Não preciso de mais dor nesta vida. Com um suspiro, percebi uma chuva chorosa através da janela. A tarde havia passado e a noite já chegava. Minha cabeça rodava entre desabafos e cenários que fui montando em minhas histórias. Repensei toda uma vida em uma tarde e mesmo assim não sentia cansaço, mas uma vontade louca de encher páginas e páginas dos mais delirantes diálogos. Já Sílvia Maria parecia exausta. No fim da última frase, uma rouquidão surgia e sua voz ficou quase sexy. Juro que não havia nenhuma intenção, apenas uma constatação. Precisava ir embora, mas não sabia exatamente se queria. Ficamos em silêncio por alguns segundos, como se digeríssemos todas as informações.
– Já está tarde, Dona Sílvia, eu…
– Mas é claro, querido. Te prendi aqui tempo demais. Já está tarde. Quase na hora da minha novela.
– A senhora gosta de novelas?
– Você mesmo não disse que eu sou bem normal?
– Rs… Ainda temos que comparar as broas!
– Volte quando quiser para tirarmos a prova… Mas acho que a minha ainda é imbatível!
– Volto sim, Dona Sílvia.
Voltamos a ser como no começo de nossas conversas e nos demos um abraço, como há muito eu não dava em ninguém, e que ela também não recebia. Foi rápido, como em novos amigos, mas suficiente para um bom começo.
E durante toda a madrugada em que escrevi, com uma inspiração fluida, o meu novo romance, e durante todas as outras tardes e noites que trocamos impressões sobre bolos e memórias, ninguém mais subiu para o apartamento de Dona Sílvia. De uma forma estranha e até meio torta, nos bastamos.
Natal, para mim, sempre significou o Natal do meu avô, o Natal de nossa família em sua casa e ao seu redor. Mesmo hoje – após a sua partida e o fim do que vivenciei por anos –, é a memória daquele apartamento e daqueles dias que me vêm à mente ao chegar dezembro. Ainda hoje, para mim, esta data continua a significar o Natal do meu avô.
Antes de chegar a tão almejada noite, eu já a vivia. E a vivia com fervor e cupidez. A sua semana, os dias que a antecediam, era de expectativa e preparação. Fantasiando a respeito de como seria neste ano, ansiava que chegasse logo o momento de eu me entregar às brincadeiras e às delícias da mesa. A preparação imaginativa era ladeada pela preparação dos presentes e dos alimentos, das quais eu participava ou apenas acompanhava com vivo entusiasmo. Dos mais simples dos feitos aos mais notáveis, tudo aparecia dotado de um encanto singular, que só poderia ser vivido nesta época.
Eis que era chegada a véspera e, assim, dirigia-mo-nos para a casa de vovô Chico, onde toparíamos com nossos velhos conhecidos. Tios, primos, parentes distantes e amigos se reuniam naquele recinto, com os mesmos abraços e os mesmos votos de todos os anos, que jamais fatigaram a criança que a tudo assistia. Era o momento da família se reunir, hora de vermos os que sempre víamos e encontrar os que só anualmente encontrávamos. Era a ocasião ideal para isso. Sem ela, possivelmente, tais contatos não viriam a ocorrer.
Os parentes mais velhos e as visitas – ou, os adultos, como dizíamos – iam conversar, contar as novas e as antigas e bebericar na varanda, onde não faltava o Old Parr de meu avô e o pistache de meu tio. A felicidade tomava conta das crianças, afinal, teriam colegas para brincar a noite inteira. Reunidos os primos e incorporados os filhos dos amigos da família, folgueávamos pela sala. Depois, era a vez de passarmos aos quartos, procurando nos esquivar dos olhares vigilantes dos pais, que, a certa altura, nada mais vigiavam.
As idades separavam os convidados, mas a comida sempre os unia. Postos à mesa, todos se entregavam às iguarias, das quais voltaríamos a nos servir no almoço do dia seguinte. E lá estavam a batata gratinada, o famoso salpicão de minha mãe e o indispensável peru, do qual a tradição sempre reservava a coxa ao meu avô.
Sei que estas lembranças têm algo de idílico, fruto da afetividade dessas memórias ou da cândida visão de uma criança. Em boa parte de minhas recordações, já não estavam todos os meus. Perdi minha avó muito cedo e muito cedo se iniciaram as cisões. Não obstante, durante toda a minha vida, naqueles momentos, sentia a união da família, sentia a minha família.
Quando vovô se viu doente e já não integrava a festividade como antes, o Natal seguia ocorrendo em torno dele. Com menos convidados, com menos comida e com mais silêncio no meu avô, celebrávamos. Todos os anos, continuávamos a nos dirigir à sua casa e a desejar passar aquela data ao seu lado. Como por uma força inata, ele – passivo e inconsciente – seguia a agrupar a família e a fazer com que prosseguíssemos juntos.
Porém, dias obliteraram anos. Com sua ida, foi também o seu Natal, foi o nosso Natal. No vendaval que se seguiu, os conhecidos se desconheceram e os afetos que pareciam tão sólidos se evanesceram no crepúsculo familiar. Desde então, as noites do dia 24 passaram a ser menos luminosas, embora a luz de meu avô siga a brilhar na memória do seu Natal perdido.
Acendi uma vela, e me veio De outro plano que não eu, mas era eu, também Acender 8 o 8, deitado, é o infinito 8, em pé, conforme as coloquei tornou-se fogueira
O fogo ardeu, ardeu e enquanto eu vivia o momento presente As duas coisas ligaram-se Dançado ardentemente Pavios como mãos dadas Fogo fátuo, feito, farto
De repente minha atenção recor- tou-se em du-as duas e eu estava um olho em algo, outro na labareda, e quando as parafinas finas de cada vela comprida – enfim fundiram-se em uma só coisa ardente pude ver-me eu como mãe de mim mesma e minha filha – que ainda não veio e mais um ser, nós duas em 1 Três Três Três chamas que dançavam como que se conversassem por horas Anos Gerações E então o ar tornou-se perfume o perfume das mil velas que queimam dentro das catedrais E meu ventre tal qual um oráculo divino Escureceu Não era peso ou dor, Mas silêncio um peso nuvem Um descanso
Hibernação Libertação dentro de uma jornada que se finda
Aos poucos Infinitamente Para Três Três almas Três sabores a vida lançou-se para o infinito para cima potência de início – a chama única dentro do pote de vidro enegrecido abraço de fim. E Adormeci Nova para um novo amanhã
Arrumando a mala para viajar no final de ano, separei as roupas que iria usar: roupas leves e confortáveis para o dia, pois vou para o calor, uma opção mais elaborada para o réveillon, traje de praia, sandálias e uma roupa de caminhada. Enquanto pensava na mala e em como conseguir selecionar o básico, essencial, aquilo de que realmente preciso, comecei a refletir sobre o que quero levar de mim para 2025, e o que pretendo deixar pelo caminho.
O ano que passou foi marcado por altos e baixos. Sopros de esperança dissipados rapidamente pelo peso de nuvens espessas de uma realidade de conflitos e violência, que nublaram o sol pelo mundo afora e o meu em particular. Mas foram importantes para aguçar meu olhar interior, a consciência do quanto se acomodar, ser indiferente ao que se passa com quem se abriga na sombra dos becos, é o mesmo que negar sua existência. Essa luz quero levar comigo para 2025.
Como um Tifão, monstro de cem cabeças que, com seus braços, tocava do Oriente ao Ocidente, as catástrofes climáticas apavoraram o mundo e me fizeram refletir sobre o quão imperativo é o respeito à natureza, da qual somos parte integrante. Uma célula desse organismo vivo a que pertencemos entrou em fúria, clamando por um basta! Fechando o foco para meus próprios hábitos, percebi que, no quesito ambiental, tenho muito, muito mesmo a mudar na forma de consumo dos recursos essenciais daqui para frente. Anotado para iniciar uma nova prática em 2025.
E por falar em consumo, o período de isolamento que enfrentamos na Pandemia nos deixou perplexos em relação à inutilidade de tantas coisas que compramos, acumulamos, desejamos. Para muitos, como eu, teve um efeito libertador – usar o que tem, o mais confortável, mais despojado, mas que dê a sensação de “pronta para sair”. Reciclar e reaproveitar foram lemas desse período e foi bom, muito bom mesmo, mas perdeu um pouco de sua força com o passar do tempo. Uma proposta a recuperar e aprofundar em 2025.
Sigo então para o próximo ano com a consciência de que é chegado o momento de arear minhas panelas. Despregar lá do fundo aquilo que algum dia teve sabor, consistência, colorido, mas deixou resíduos cinzentos que só servem para tirar seu brilho. Adotar um novo cardápio, sentir o frescor, a leveza, a delicadeza de uma Nouvelle Cuisine.
É hora de lustrar o caldeirão para receber as cozeduras que a vida me reserva.
O momento é propício à elaboração de listas de desejos e promessas para 2025.
É tempo de mergulhar nas mais diversas ilusões de si mesmo; de vibrar intensamente com a motivação sazonal para trocar de pele, personalidade e modus operandi.
Essa é a magia de dezembro: fazer com que cada um acredite em sua meteórica transmutação.
A mensagem subliminar é poderosa: Seremos, em breve, o que jamais fomos até aqui, mas seremos! Acredite, no pipocar dos fogos de Réveillon, nascerá, a termo, aquele sujeito disciplinado, fitness, organizado, estudioso, persistente e focado que vive soterrado em você nos outros onze meses.
Os descrentes, por favor, não se pronunciem. Não atrapalhem o parto.
Os de fé repliquem o mantra: Eu vou mudar, fazer, ser, conseguir, alcançar meus objetivos a partir de 1 de janeiro.
Não importa que essa seja a promessa fracassada dos últimos trinta anos. Viver é um eterno recomeçar.
Para garantir sucesso nessa empreitada de renascimento, acelere as contrações com esperança, ânimo e coragem.
Enquanto aguarda a hora do novo eu vir ao mundo, sugiro rascunhar uma carta de agradecimento e perdão para essa criatura que em 2024 fez o que era possível para dar conta das infinitas demandas de sucesso, performance, resultados e excelência.
Ainda bem que temos a chance de zerar o jogo e começar nova partida.