Crônicas Cariocas

  • Escolher é renunciar!

    Na ausência de um momento saudável regado à saúde, família, amigos e um lar, desenhamos uma história com muitos instantes dentro de um vazio criado para ser preenchido a partir das possibilidades mais secas. Alguns questionam lutar para que? Para tudo, pela vida ainda presente. 

    Não é o suficiente sofrer? Releve, aproveite os dias que passam, abrace esse dom que ganhou, essa coisa linda que nos deram. Mas o fato de não lutar eventualmente, se abandonar e desapegar da escolha pela busca é escolher a morte, essa que dança com o nada e simplesmente é o sinônimo de desfecho do que foi respirado e sentido em toda plenitude. 

    A vida é tão única quanto a morte, e o poder vindo do universo para trazer uma criatura à existência se entende como um ato de exclusividade temporal nas coisas mundanas, por isso é necessária muita coragem para ter o direito a esse ato envolto a mistérios e segredos que compartilhamos por diversas existências.

    Somos um pouco de cada emoção que traça lentamente um destino desenhado por pincéis delicados. A raiva que sentimos após um evento catastrófico é uma reação comum e direcionada a você ou alguém, a sua fé, amigos e até familiares. 

    O medo que espreita nossas esquinas é do futuro, e de não darmos conta do novo necessário que deverá ser transpassado aos trancos.

    Nessa jornada encontre aquela pessoa que se comporta como a raiz de uma árvore, essa é a mais importante, porque ela não faz coisas para serem vistas. O desejo dela é te apoiar e ajudar viver.

    Esqueça as pessoas folhas, quase de papel, porque elas surgem somente por uma estação, assim que esfriar ou bater um vento elas se vão. 

    As pessoas galho são fortes e mais robustas, mas você necessita testá-las antes de pôr um peso. Elas podem ficar com você por alguns verões, mas quando as coisas apertarem ela quebra e te abandona.

    Por isso a escolha certa é o resultado que você deve gostar de estar inserido, confortável e com desejo de quero mais. Por vezes escolher é renunciar aquilo que te alimenta agora, e partir para uma sucessão de novas esquinas apresentadas pouco depois que sua resiliência entrega às novas cartas.

    É importante manter o respeito às suas próprias decisões porque elas são as bases para a manutenção de sua felicidade e paz de espírito. Não se julgue em demasia, falar mal de seu espelho é como falar mal do adversário durante a campanha, fica ruim pra você, por isso, não se maltrate, aquele rosto é do seu partido.


  • Um leão na beira da estrada

    Vi-o de longe e identifiquei o leão parado na beira da estrada. A juba grisalha e rebelde não podia ser de outra pessoa. Era ele no acostamento, apoiado em seu carro com o capô levantado. Tinha nas mãos um galão de plástico vazio e parecia aguardar uma carona. Eu passei de moto, capacete posto, só os olhos à mostra. Meu pai não me reconheceu.

    — Sem gasolina?”, perguntei.

    — Sim, que azar!, ele respondeu.

    — Sobe — indiquei com a cabeça o assento traseiro — Eu levo o senhor, tem um posto logo ali na frente.

    Meu pai ajeitou-se na moto, agarrou minha cintura com uma das mãos e, com a outra, segurou a alça do galão. Arranquei. Fazia mais de dez anos que não nos víamos ou nos falávamos. A última vez que trocamos um abraço foi no enterro de minha mãe. Depois, sem que tivesse acontecido nada relevante, fomos espaçando os telefonemas e os encontros, até que deixamos de nos comunicar. Filho único de um pai quase ausente, desisti de procurá-lo. Ele, pouco afeito a carinhos e movido por outros interesses, esqueceu-se de mim. Tudo muito natural, sem brigas ou discussões, só indiferença.

    Não tirei o capacete em nenhum momento. Não sabia qual seria sua reação ao me reconhecer. Melhor que pensasse que eu era apenas um rapaz que lhe prestava um favor na estrada. Percebi pelo espelho retrovisor como ele abaixava a cabeça para se proteger do vento, a juba dançando livremente sobre sua cabeça. O rosto de meu pai estava envelhecido, mas seu corpanzil — forte, vigoroso, saudável — mostrava outra realidade. Vi quando ele olhou para as minhas botas e percebeu que o salto do pé direito era mais alto do que o do esquerdo. Algumas vezes no passado, quando eu já era adolescente, meu pai me falara, num de seus rompantes de sinceridade, do desgosto que sentiu quando o médico, ainda na maternidade, contou sobre o meu defeito de nascença: uma perna mais curta do que a outra. Isso nunca me incomodou além das chacotas dos meninos do colégio, mas ele e minha mãe se sentiam envergonhados — talvez culpados — por esses centímetros a menos, ou a mais, segundo o ponto de vista de quem me olhava. Jamais consegui descobrir qual das minhas pernas era a defeituosa, se a mais curta ou a outra.

    Dirigi com habilidade e cautela, não me aproximando demais dos carros que iam à nossa frente. Notei que meu pai, em que pese o pudor de estar em contato físico tão próximo com outro homem, agarrava-se com firmeza à minha cintura com uma das mãos. Seus olhos não saíam do meu pé direito. Não conversamos durante o trajeto. Quem sabe ele não estava se perguntando se eu não poderia ser seu filho? Talvez estivesse se lembrando da série de médicos a que me levou quando eu era pequeno, as intermináveis radiografias, a sucessão de opiniões sobre a provável causa do meu defeito físico, até a sugestão feita por um especialista, afinal adotada, de colocar um salto maior que o outro nos meus sapatos, de maneira a compensar a diferença de comprimento entre as minhas duas pernas. Ou então estava revivendo o olhar de decepção que me dirigia quando me observava coxeando pelo chão da sala, eu menino, ainda ignorante do preconceito que sofreria vida afora.

    Ao parar no sinal vermelho, já perto do posto de gasolina, senti sua mão pressionando minha barriga, como uma demonstração de afeto. Não esbocei reação. Estacionei a moto ao lado de uma das bombas do posto, e ele desceu do assento traseiro. Falei, sem tirar o capacete e sem olhar em seu rosto, que não poderia levá-lo de volta, estava atrasado para um compromisso. Ele respondeu que encontraria sem dificuldade outra carona para voltar até seu carro. Percebi que tentava ver meus olhos e meu rosto pela viseira do capacete.

    — Muito obrigado, moço, você me fez um grande favor — disse meu pai, seus olhos insistentes na busca dos meus.

    — Não tem de quê — respondi e fui embora.

    À noite, já em casa, meu telefone tocou várias vezes.


  • Feliz Natal

    Ouvia logo cedo a música Why is it so hard, do Charles Bradley, enquanto bebericava uma cachaça Ambirá, trazida de Minas no verão passado. Acho que combinam, a música e a cachaça, fortes e encorpadas, uma canção não pasteurizada e uma pinga de alambique. Sim, sou dos que bebem pela manhã, sobretudo nas férias.

    Findava a primeira dose quando percebi estarmos em pleno 25 de dezembro. Uma data especial, sem dúvidas. Um dia para rezar, celebrar, agradecer, refletir. O natal é sempre tempo de rever conceitos, de perdoar, de amar o próximo. E, claro, de encaminhar um generoso feliz natal a todos.

    Começo, então, servindo uma segunda dose e desejando um feliz natal ao vizinho que ouve músicas pornográficas num volume absurdo em boa parte do fim de semana. Almejo, naturalmente, só o melhor para ele e para as caixas de som do seu Gol rebaixado. Feliz natal e boas noites de sono, vizinho!

    Noutro gole mando um feliz natal ao prefeito, ao vice e aos vereadores. Embora a opinião pública discorde, acho justo o aumento de 70% nos seus honorários, bem como os adicionais e férias. Nem todos demonstram essa coragem e discernimento, afinal, bons profissionais merecem salários compatíveis com a sua importância perante a sociedade e, além do mais, ainda há muito trabalho pela frente (todo, na verdade, pois recém foram diplomados e nem assumiram os tão almejados cargos). Queria eu ter a
    mesma sorte. Na adolescência, quando disse ao dono da serralheria que gostaria de ganhar duas vezes o que me oferecera, fui dispensado aos risos. Seria o meu primeiro emprego, veja só. Para os estimados políticos, entretanto, um ótimo, feliz e farto natal!

    Não posso esquecer do indivíduo que riscou o muro da minha casa na semana passada, desenhando nele um proeminente objeto fálico. Espero que descubra uma vocação artística e que esta data o faça refletir sobre onde enfiar os seus sprays. Gostaria de conhecê-lo, inclusive, pois se trata de um talento que merece ser enaltecido. Um feliz e protuberante natal!

    Feliz natal ao banco que jura meus débitos à velocidade da luz. Ainda aguardo o momento para debatermos o assunto, mas torço para que o 25 de dezembro o deixe amolecido, sobretudo quando negociar com esse pobre moribundo. Um rico e feliz natal! O Charles Bradley agora dá lugar à Janis Joplin, com Little girl blue. A trilha sonora perfeita para um trago.

    Nessa data importante, jamais deixaria de endereçar um feliz natal à Ford, que em irrelevantes tempos produziu um câmbio automático chamado Powershift e, naturalmente sem querer, causou-me um prejuízo de quase trinta mil reais. O importante é que essa mágoa já passou, ou melhor, está passando (depende também da colaboração do banco, mas isso é outra história). Torço por um natal renovador e cheio de esperanças para os engenheiros da marca. Um eficiente e feliz natal!

    Num último gole lembro dos Correios. Tenho certeza que os pequenos extravios ocorrem por motivos alheios à sua vontade. Devo dizer que hoje já não me importo com aquele livro raro perdido nalguma insipiente viagem dos seus caminhões Brasil afora. Talvez devesse pedir desculpas aos atendentes a quem ameacei. Quem sabe amanhã lhes envie um chocotone em sinal de paz. A estrada é mesmo sinuosa. Pois bem, apesar dos infortúnios, espero que desfrutem de um retilíneo e feliz natal!

    Antes de servir uma derradeira (ou não) terceira dose, desejo também um ótimo natal a você, amigo leitor! Anseio por dias melhores e realizações no próximo ano, com bebidas fortes e boa música, com harmonia e fraternidade. Que esta data o aproxime de Deus e que o bom velhinho não esqueça do seu presente. De minha parte, não se preocupe, rezarei por você. Feliz natal!


  • VIDA ESPECULATIVA

    .

    5,968
    6,009
    6,035
    6,094
    6,096
    6,267

    X- Gabriel Galipolo- MOEDA DOS BRICS
    Perfis do mercado… MUITA ESPECULAÇÃO
    Perfis localizados à direita de FORMA EXTREMA… MUITA ESPECULAÇÃO
    MUITA/MUITA/ MUITA.

    ES-PE-CU-LA-ÇÃO
    PÃ-NI-CO GE-NE-RA-LI-ZA- DO
    7,5?
    8,0?
    8.5?
    9!?
    ?????????????????
    ONDE A HUMANIDADE SE PERDEU? OU ESTAMOS PERDENDO A HUMANIDADE?


  • Poesias de 1 a 99

    04# – RÉQUIEM I

    Estou hoje calado
    como se houvesse
    roubado o silêncio
    dos mortos.

    Estou hoje tranquilo
    como se a calma
    fosse um atributo
    dos homens enfermos.

    Estou hoje festivo
    como se estivesse
    numa festa, e lúcido,
    como se a lucidez
    fosse a própria festa.

    Estou hoje vencido
    como se soubesse a verdade
    e sozinho vou indo mesmo
    a uma festa, atendendo ao
    convite dos mortos.


    05# – RÉQUIEM II

    cérebro inchado
    em recônditas gavetas,
    minha cabeça não deixa
    de doer. fui de mim
    o meu maior inimigo.


  • Robérvios

    À noite todos os gatos são pardos, e Robérvios estava certo de que Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Afinal, Saco vazio não para em pé.

    Sempre ouvira falar que Deus escreve certo por linhas tortas e que Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Mas Quem não chora não mama e Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato e, no seu caso, precisava urgente recuperar o ouro perdido.

    Pensou: Não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje. Essa é, portanto, minha chance, e O diabo não parece tão feio quanto se pinta. Está na hora da onça beber água.

    Foi até Onde Judas perdeu as botas, pois Todos os caminhos levam a Roma. Desceu a ladeira devagar, já que Para baixo todo santo ajuda e Devagar se chega ao longe, tendo em mente que A pressa é a inimiga da perfeição e ninguém precisava Tirar o pai da forca.

    Ia só, pois apesar de que Uma andorinha sozinha não fazer verão, nesse caso Antes só do que mal acompanhado; Não punha a mão no fogo por ninguém.

    A ocasião faz o ladrão. Lá vinha uma figura com uma capa Cor de burro quando foge. Onde há fumaça há fogo, pensou. Lembrou-se de que As aparências enganam e Não se pode julgar um livro pela capa. Em seu delírio achou que ali deveria estar escondido um pote de ouro, pois De médico e de louco todo mundo tem um pouco. Exultante, preparou o bote. Caiu na rede, é peixe.

    Preparou-se para a emboscada. Infelizmente, porém, Quando a esmola é demais o santo desconfia, e Nem tudo que reluz é ouro. Comprou gato por lebre mas agora Não adianta chorar pelo leite derramado. Como Seguro morreu de velho, pensou com seus botões: Mais vale um pássaro na mão do que dois voando e, afinal, De grão em grão, a galinha enche o papo. Além do que, A cavalo dado não se olha os dentes.

    Seguiu em frente. Mas… Quem é vivo sempre aparece e o Castigo anda a cavalo. A viatura de polícia surgiu do nada e Robérvios Foi pego com a boca na botija. O barato saiu caro pois Quem semeia vento, colhe tempestade, Escreveu não leu, o pau comeu. Sabia que iria Ver o sol nascer quadrado.

    Desgraça pouca é bobagem. O que fazer agora? Quando interpelado, nosso ladrão de provérbios Deu uma de João-sem-braço, fingiu que não era com ele. O policial esbravejou, ordenou que parasse, quis saber o que fazia ali. Sabiamente Robérvios se lembrou de que Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Deixou que ele gritasse pois Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha… e se calou. Em boca fechada não entra mosquito. O policial continuou sua ronda.

    Salvo pelo gongo.


  • SEM TÍTULO, dezembro dois mil e vinte e quatro

    Ler – sendo eu o “recheio de um sanduíche” composto pelo conjunto de lençóis praticamente novos, verdes, vacilando entre o algodão 100% liso e o de arabescos geométricos, aroma envolvente de quem acabou de sair da máquina lava e seca -, confortavelmente descansando as intermináveis horas de trabalho que se seguiram nas últimas semanas – mal tive tempo de me deitar ou introjetar minha nova idade, não fosse a viagem – que sempre faz parte do meu ritual de ano novo pessoal. Pois bem.

    Aqui estou eu, a ler um livro pelo qual me apaixonei a partir de uma minissérie na Netflix; nos esbarramos em uma feira de sebos na praça central da cidade, eu que passei e ele que segurou decidido meu braço esquerdo, em meio a profusão de outros livros, e disse “desculpe.. hey, oi, tudo bem?! Olha quem está aqui, que coincidência! vamos tomar um café e ir para um lugar mais… privativo?” Sem ter como contradizer a cantada – muito da bem arquitetada – e com o tal apetite de leitor faminto e sempre, sempre à caça literária a me cutucar, paguei pelo café, onde fomos logo em seguida nos conhecer, e trouxe não só o homônimo da telinha para casa, como um segundo volume do mesmo autor, muito superior em páginas. Me dou de presente esses momentos após uma exaustão daquelas, na qual o único conforto é por em ordem a caixola pensante, como se organizasse meus armários, limpasse o banheiro e ordenasse os itens que descansam ou apodrecem na geladeira. Zeca me acompanha, pêlos brilhantes e cheirosos do segundo dia pós-banho profissional no pet shop – e incontáveis lenços umedecidos, escovações de pêlos e dentes -, em suas poses que fazem meu coração transbordar de amor, de agradecimento por sua companhia fiel e vigília incanssável.

    Pela inteligência sem igual e sempre sorrisos – e pedidos de comidas e petiscos. Sobre a cama, eu e Zeca nos entretemos em nossas atividades, cada um na sua. Um mesmo colchão, dois mundos que não se misturam, mas convivem em perfeita harmonia. E para saudar as festividades de fim de ano, que estão em baixa por aqui pelas baixas que a vida nos impôs ao longo dos últimos meses, pedi a Alexa que tocasse músicas natalinas.

    Jingles conhecidos, outros novos, alguns jazz e assim seguiram-se 40 páginas. Meu ser de quatro patas prefere o chão duro e o espaço imediatamente acima – quase inexistente – entre o fundo da minha cama box e a superfície preferida pelos pés descalços à cama delícia, colchão de molas. Em questão de instantes, divido-o apenas com Anthony Doerr. Entre pernas que se entrelaçam – as minhas -, e as que me devoram – o livro -, este texto poderia muito bem se encaixar na coluna Contos Eróticos, inaugurada pela minha querida amiga e também sagitariana Carol Meyer, mas basta um pouco de imaginação para perceber que Zeca e Doerr estão sempre pela cama, e nada além de pêlos e palavras servem como prova de uma tórrida cena de prazer – há distintas formas de se gozar a vida. Qual não foi minha surpresa, contígua a um sonoro “Happy Christmans everybody”, o preto no branco da sentença do último parágrafo do capítulo em que pausaria a leitura desta noite:

    “Madame morreu, madame morreu”.

    Respirei fundo, encarei a dupla página que me contava a notícia, levantei o rosto em direção a uma Alexa festeira às 23h de uma sexta-feira pré Natal. “Alexa, volume 2”. Zeca ronca alto, a cama estremece. Como podem, também, os personagens terem suas mortes ressoando dentro de quem as lê?

    Respiro profundamente. Fecho os olhos, medito, rezo. Pondero sobre ler mais umas páginas para aliviar o novo luto. Faltam poucos dias para não ser mais 2024. Guizos chacoalham minh’alma

    “Must be Santa… Must be Santa… Must be Santa…. Santa Klaus!”


  • Nem tudo está nos cartões postais

    Quando o assunto é viagem a propaganda e as fotos quase sempre são melhores que a realidade, mas mesmo sabendo disso às vezes entramos em furadas. Uma observação óbvia que vale tanto para escolher um hotel quanto para iniciar um relacionamento à distância (risos).

    Arrisquei uma viagem de ferry com um carro de matrícula inglesa para ir à então belicosa Irlanda do Norte visitar a famosa ‘Calçada dos Gigantes’ (Giant´s Causeway), uma formação geológica à qual o guia Michelin, meu guia de viagens predileto desde sempre, atribuía a cotação máxima de três estrelas. É a maior atração turística do país e nas fotos parecia monumental. Se você é geólogo vai ficar encantado, para mim foi apenas um chão de pedras curiosas e bastante escorregadias, que se alcança depois de uma boa caminhada ou pegando um ônibus que sai do centro de visitantes. Para quem tiver disposição há formações mais afastadas que talvez valham a pena, mas o frio e o risco de cair me desanimaram. Dois dias de viagem quase perdidos.

    Gosto de conhecer a cultura e a natureza de outros lugares, porém evito gastar o meu rico e controlado dinheirinho para ver algo parecido ao que já tenho por perto. Infelizmente é inevitável que isso aconteça de vez em quando, por confiar na indicação de um guia de viagens ou participar de um passeio organizado primordialmente para estrangeiros. Em Portugal fiz uma trilha longa e exaustiva no Parque do Buçaco, que é lindo, mas parecidíssimo com a Floresta da Tijuca aqui no Rio. O dia teria sido bem melhor aproveitado visitando outra coisa. Faço turismo para conhecer o diferente.

    Na Tanzânia, debaixo de chuva e com pés afundando na lama, vimos uma floresta que era muito parecida com as brasileiras. Claro que havia algumas espécies de plantas diferentes, mas não compensava o sacrifício. O ponto alto da visita foi avistar um macaco no alto de uma árvore. Os gringos só não gritaram de alegria porque isso espantaria o animal. Um mico como tantos que afligem os cariocas que moram perto de áreas de mata quando invadem as casas para roubar comida. Em um estacionamento que costumo usar em Botafogo há montes deles caminhando pela fiação elétrica.

    Como parte do turismo gosto de experimentar a comida local, o que já me rendeu algumas formidáveis dores de barriga (para não usar palavras mais deselegantes). Sair do Brasil e ficar suspirando por arroz, feijão e bife só se justifica se a pessoa tem restrições alimentares, é exilada ou está longe há muito tempo. Também aí a gente se desilude: a comida chinesa que me serviram, considerada uma das mais sofisticadas do mundo, era apenas razoável. Por sorte, existe o reverso da moeda: a culinária húngara, da qual mal se ouve falar por aqui, mostrou-se excepcional.

    Sim, porque se há decepções, igualmente existem boas surpresas em viagens. Uma delas foi Muscat, capital de Omã. Temos a tendência de pôr no mesmo saco países que são próximos geograficamente. O mundo árabe, pouco conhecido dos brasileiros, não é um bloco compacto. Quando perguntarem a você se aqui se fala espanhol ou se a nossa capital é Buenos Aires, lembre-se disso e perdoe.

    Na Arábia Saudita, que está na minha lista de desejos, conheci somente a cidade de Damman, um importante porto comercial sem nenhum interesse turístico. No entanto foi o ponto de partida para visitar o Ithra Center, um espetacular centro cultural construído no meio do nada, maravilhoso pela arquitetura e pelo conteúdo. Você encontra fotos do Ithra na internet, mas garanto que não fazem jus à realidade. Um dos raros caso em que o cartão postal fica devendo.


  • Então é natal! 

    Então é natal!
    E o vendedor na esquina oferece milhares de produtos aos que passam. E vende-se isso e aquilo! E vende-se com muito brilho!

    Então é natal!
    E as filas dobram, triplicam, numa algazarra somente vista nesta época. Ninguém tem paciência para nada!

    Então é natal!
    E as vitrines anunciam roupas e calçados e eletrônicos dos mais variados tipos e tamanhos. Muitos e tantos produtos que não é possível imaginar!

    Então é natal!
    E a promoção de 50% na sandália é de enlouquecer! A promoção que só vale nesse único dia!

    Então é natal!
    E o trânsito dá um nó no nó! Ninguém vai! Ninguém vem!

    Então é natal!
    E o supermercado fica aberto 24 horas! O que importa é o trabalho!

    Então é natal!
    E as pessoas correm e correm e se estapeiam. Eu vi primeiro! Sai da frente! Só tem esse! É o último! Eu quero! É meu! Reserva pra mim! 

    Então é natal!
    E a mesa é farta e grande e bonita! Canções natalinas ecoam. Árvores de natal e sinos e bonecos de neve e papai Noel enfeitam portas e janelas… Bebidas e conversas, bastante gritaria!

    Numa manjedoura, alheio ao burburinho da cidade, nasce um menino, um menino Deus. Nasce num lugar pobre e distante, sem cartazes, sem ceia, sem outdoors e sem vendedores. 

    Então nasce a esperança de que um dia entendamos a simplicidade…

    Então é natal!


  • O desafio de manter o foco

    Hoje se fala muito em manter o foco. São incontáveis os livros sobre o tema, que a meu ver implica basicamente dois tipos de atitude: ter em mente um objetivo e persistir até alcançá-lo. Muitos não sabem o que querem e se esforçam em vão. Outros até miram com clareza o alvo, mas não têm constância para chegar até ele.

    O problema não atinge apenas pessoas comuns ou de mediana inteligência. Acomete também os gênios. Um caso famoso é o de Leonardo da Vinci, que costumava deixar os trabalhos pela metade (embora, segundo seus biógrafos, o motivo para isso fosse nobre: a sua imensa curiosidade por tudo). Outro caso é o de Jean-Paul Sartre; em texto que li há algum tempo, Wilson Martins criticava no filósofo existencialista, entre outras interrupções, o fato de não ter dado prosseguimento a “O ser e o nada”. Ele teria morrido devendo isso à humanidade.

    Quem não completa o que começou fica sobretudo em débito consigo mesmo. E, pelo número de publicações que o problema vem suscitando, são muitas hoje as pessoas nessa situação. A cada manhã começam algo novo, mas o impulso para sequenciá-lo só vai até a noite. No dia seguinte, ao acordar, parecem ter perdido o fio que as conectava ao antigo propósito e têm que recomeçar do zero.

    Não que esse pessoal queira se “reinventar” a cada dia. Esse verbo possui uma conotação positiva e se refere à capacidade, que poucos têm, de estar sempre renovando seus projetos. O recomeço a que me refiro consiste em reconectar os fios de uma deliberação que, por uma misteriosa química, a noite dispersou.

    Isso não é nada fácil, pois depende de uma aliança entre vontade e predisposição inata. Ou seja, a genética interfere. Sabe-se que, se não comanda tudo, ela tem um peso que pode amargamente contrabalançar o empenho com que o indivíduo procura reencontrar o seu rumo.

    A atenção que hoje se dá ao foco mostra que a dificuldade de estabelecer uma diretriz (intelectual ou existencial) está em boa medida ligada aos estímulos da vida moderna. Atualmente são muitos os apelos para seguir diferentes tendências de comportamento, grande parte deles potencializada pela instantaneidade da internet. Como se situar nessa avalanche de ideias que requisitam nossa atenção ao mesmo tempo que a despedaçam?

    Os inúmeros apelos à dispersão fazem com que o desafio de manter o foco seja sobretudo interior. Mais do que ficar atento ao que se passa no mundo, o indivíduo deve voltar a atenção para si mesmo. Deve escolher em função de “quem é”, e não “ser” em função do que escolhe. Pois muitas vezes as escolhas, ao contrário do que diz o mestre do existencialismo citado linhas atrás, são determinadas por ilusões que a sociedade inculca no indivíduo para adequá-lo ao seu funcionamento.

    Em tempo: o propósito desta crônica é um tanto terapêutico, pois também tenho dificuldade de manter o foco. Sei que, se me concentrasse suficientemente nas tarefas, produziria mais e talvez melhor. Já tentei menosprezar o problema fazendo uma frase: “Os gurus da autoajuda dizem que é preciso ter foco. Isso para mim não é problema; tenho vários.” Em seu humorístico nonsense, a frase pode ter ficado interessante – mas não afastou o abatimento que vez por outra a falta de constância nas metas provoca em mim.


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