Crônicas Cariocas

  • A Dama e o Vagabundo

    Minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é a que me faz viver (Gilberto Gil, Super-Homem)

    A humanidade vem sendo regida há milhões de anos pelo macho da espécie. Chegou a hora de reconhecer: não deu certo! Como genuíno representante do sexo masculino, declaro peremptoriamente que entrego os pontos. Desisto! Nós, homens, já fizemos burradas suficientes. De minha parte, anuncio que passo o bastão às mulheres a quem humildemente me submeto, elegendo-as para cargos de comando e alçando-as a todas as atividades que envolvam exercício de poder. Pior do que está não vai ficar. Sei que não serei acompanhado por outros da minha estirpe pois conheço bem o tipinho que encarno: viril, orgulhoso, não dá o braço a torcer.

    Tenho um argumento infalível para convencer meus iguais. Já que você, ô marmanjo, não tem brio suficiente para admitir sua incompetência, pense nos seus filhos e netos. Se você os ama, dê-lhes ao menos a oportunidade de terem um futuro nesse mundo em frangalhos que sua gestão infeliz produziu.   

    Não imagino, por exemplo, que alguma mulher faria a insanidade de lançar bombas em cidades, assassinar adversários em massa, promover chacinas e genocídios, cultuar armas e perpetrar outras bárbaras atrocidades a seus semelhantes. As exceções que me recordo são as mulheres-bomba, que agiram a mando de… homens.

    Ou viramos a mesa ou o dito “homem” – por extensão, a raça humana, aí incluídas não apenas as mulheres mas as inúmeras categorias sexuais intermediárias emergentes – estará em poucas dezenas de anos extinto do planeta.

    O mundo como hoje conhecemos, vulnerável a vírus letais, ameaça nuclear, tragédia social, apocalipse ambiental, foi uma construção masculina, tem a face grotesca e brutal do inepto bicho-homem. Ou colocamo-lo sob nova administração, ou dito cujo já era.

    Trata-se de uma constatação lógica e me admira que a grande maioria dos indivíduos (especialmente aqueles que se orgulham mais do seu pênis do que do seu cérebro) não tenha ainda chegado a essa conclusão tão evidente.

    Não, não estou me rendendo às teses feministas. A pauta da sociedade igualitária não me fascina. Homem e mulher são seres biológica e psicologicamente distintos. O homem prima pela força física, pela razão, pela lógica. Já o chamado “sexo frágil” (que piada!) distingue-se pela formosura, pela sensibilidade, pela intuição, pela resiliência. Por ter o atributo da força, o gostosão impõe-se à delicada mulher que se submete a seu algoz que usa da bestial violência para ditar suas regras. 200 mil anos de civilização não foram suficientes para revogar a lei do tacape.

    O capitalismo adaptou-se perfeitamente ao patriarcado e definiu o papel de cada gênero no sistema. Ao homem, ‘chefe’ da prole, cabe negociar suas habilidades no mercado de trabalho e com a grana obtida, sustentar os gastos domésticos. A mulher fica em casa lavando louça, limpando a privada e cuidando das crianças, trabalhos ‘inferiores’ sem remuneração, não monetizados pelo mercado. Que sistema hipócrita! Gratifica apenas as atividades que interessam ao capital, exercidas pelo membro empoderado do casal. A fêmea desempenha a incumbência ‘acessória’ de amamentar o bebê e manter estruturado o lar, sendo dependente financeiramente do varão folgado que se embebeda e farreia nos botequins. Sejamos honestos: isso é uma deslavada exploração de mão-de-obra.

    A natureza concedeu à mulher uma função muito mais nobre e, para que ela a exerça com louvor, não precisa ocupar o espaço do homem. Se pleitear isso, estará admitindo que os valores masculinos são superiores. O que é preciso é que seja reconhecida a importância do seu papel, muito mais imprescindível que o do provedor financeiro.

    A mulher para brilhar não tem que ser cientista, filósofa, soldada, enxadrista, jogar futebol, lutar muay thay. Deixe os homens se sobressaírem nessas áreas. As damas têm habilidades muito mais indispensáveis na preservação do equilíbrio social do que as dos vagabundos, inclusive a principal de todas: gerar a vida.

    Por isso, caro amigo e cara amiga, está na hora de corrigir o rumo e mudar as regras do jogo. A começar por redefinir quem deve dar as cartas.

  • Essa superestranha

    Há poucos dias estava em busca de alguma série ou filme que tivesse como locação a Turquia. Viajo para lá em junho e queria me ambientar antes da partida. Adoro passar pelos lugares e ter o prazer infantil de apontar e dizer: olha ali! Lembra daquela cena? Nessa busca inglória, me deparei com uma novela turca cujo nome, por si só, já me fez dar uma risadinha debochada — A sonhadora. Pensei em desistir, mas acabei deixando de lado as minhas críticas ferinas. “Que coisa brega, deve ser igual à Sabrina, aquela revista tosca da minha adolescência”, “mais uma história de mocinha apaixonada” e apertei o play para o primeiro episódio. 

    Como imaginei, era tudo muito ruim, quase péssimo. Interpretações exageradas, furos de continuidade, diálogos e cenas sem consistência lógica, um sururu sem fim. Para não ser injusta, os protagonistas Can e Sanem embelezavam a tela sempre que apareciam; os cenários coloridos e as paisagens também eram lindos. Mas nada além disso. 

    O esperado era que eu desistisse de perder tempo com aquela besteira sem atrativos intelectuais que eu pudesse exibir para os amigos, mas não! Mesmo achando tudo muito esdrúxulo, questionando o mau gosto e a minha sanidade mental, acolhi inteiramente meu desejo e assumi: quero!

    Que me julguem. Essa também sou eu.

    Resumo da história: fiquei viciada nessa comédia romântica, perdi várias noites de sono para assistir os 160 capítulos da Sonhadora, me afeiçoei aos personagens, reencontrei lembranças minhas, senti brotar inspirações para um novo livro.

    Foram dias intensos. Aguardava ansiosa pela hora de estar no sofá e continuar a aventura de flanar pela trama, dar risadas, lágrimas, suspiros junto com eles.

    A história foi seguindo o caminho do fim. Eu fui seguindo o caminho de mim. Encontrando placas, avisos sobre a imprevisibilidade da existência e os milhões de fragmentos possíveis e inesperados que compõem esse vir a ser que me habita. De quebra, ainda pesquei algumas conclusões sobre quem efetivamente sou até então.

    O amor romântico é uma praga que me cativa inteira; a graça de viver flutua fora da caixa do padronizado; as coisas bobas da paixão me fazem rir com sincronia entre os lábios e a alma. 

    Foi maravilhoso rever essa estranha-familiar que aparece quando tudo some e só restam nós duas: eu e essa menina enamorada pelo poder da paixão na sua raiz mais clichê. Não julguem. O indicado, apropriado, o certo a se fazer numa escolha é circunstancial. Aceitem. Às vezes, o melhor que desejamos não é tão apreciável assim pelos outros. E daí?

    Nada é mais divertido do que ser o que se é, a despeito do que se pretendia ser para atender às demandas sociais.

    Obs: acabo de apertar o play para assistir o primeiro capítulo novamente. Estou viciada nessa alegria. Aceito sugestões de outras novelas e séries. Não precisa ser nada profundo, nobre, intelectualizado, culturalmente valorizado. Basta que seja leve, doce e despretensioso. Bom demais não precisar pensar, avaliar, entender, julgar, criticar, analisar. Só ser, sentir e viver.

  • O oposto da hipérbole

    Sempre que pergunto em classe qual o oposto da hipérbole, a turma responde que é o eufemismo. Não me deparei com esse equívoco apenas em sala de aula – também o constatei em portais de língua portuguesa. 

    A verdade é que o contrário da hipérbole não é o eufemismo. Essas figuras não podem se contrapor, uma vez que se situam em áreas diferentes. A hipérbole diz respeito ao “pathos” (paixão), enquanto que o eufemismo está ligado ao “ethos” (caráter).

    Quem produz uma hipérbole o faz abalado por forte impressão emocional. Exagera para comover ou suscitar empatia: “estou morto de fome”, “ele tem uma vontade de ferro” (hipérbole metafórica), “daria a minha vida por você”.

    Um conhecido exemplo de hipérbole aparece neste quarteto de Augusto dos Anjos:

            “No tempo de meu pai, sob estes galhos,
    Como uma vela fúnebre de cera,
    Chorei bilhões de vezes com a canseira
    De inexorabilíssimos trabalhos.”

    Os versos constam do soneto “Debaixo do tamarindo”, em que o poeta confessa o seu amor pela árvore que ensombrava a casa-grande do engenho onde nasceu. Revelam o desespero diante da morte e a esperança de continuidade pela fusão com o organismo vegetal (lê-se no final do poema: “Abraçada com a própria Eternidade/ A minha sombra há de ficar aqui!”).

    A referência ao pranto “bilhões de vezes” chorado e aos “inexorabilíssimos” trabalhos busca traduzir a intensidade de uma Dor que transcende a esfera pessoal. Não é apenas o sofrimento de um indivíduo, mas de toda a espécie humana, com a qual o eu poético se identifica.

    No eufemismo, atenuamos um conteúdo desagradável com a intenção de não ferir nem chocar. O que anima esse propósito é a ética, o recato, por vezes a conveniência social. Podemos dizer de alguém muito feio, por exemplo, que “seus traços não são harmoniosos”. Ou, de uma pessoa estúpida, que ela “não tem um cérebro brilhante”. O eufemismo preserva o conteúdo e suaviza a forma.

    O seu oposto é o disfemismo, que consiste no uso de expressões deselegantes, grosseiras ou chulas. Na versão disfêmica, o muito feio passa a “horrendo”, “um parto”, “um frankenstein”. O pouco inteligente é chamado de “anta”, “burro”, “quadrúpede”. O disfemismo é uma intensificação pejorativa e visa agredir ou chocar.  

    Numa de suas crônicas, Adriano Silva critica os que nada fazem sem escutar a opinião alheia e são capazes de perder o dia caso não recebam um sorriso de aprovação. Ele diz invejar os indivíduos autossuficientes, que “resolvem suas inseguranças (…) sem expor o traseiro nu na janela”. Essa referência ao “traseiro nu” é uma imagem disfêmica; por meio dela o autor critica os que costumam expor aos outros a sua intimidade.

    Qual é então oposto da hipérbole? É a hipossemia, que se caracteriza pela diminuição do conteúdo significativo das palavras. Ela ocorre, por exemplo, quando alguém afirma ter sentido “uma dorzinha” que o levou ao a passar três dias no hospital; quando a mãe ameaça dar “umas palmadas” no filho (em vez de uma surra); ou quando o ricaço diz que deu “um pulo” na Europa para saber as novidades.

    Vejam que nesses casos, ao contrário do que ocorre no eufemismo, não existe o propósito de suavizar um conteúdo desagradável. O emissor minimiza o sentido para reduzir a dimensão do que faz, e não para evitar agredir quem quer que seja. O que determina as escolhas é menos o decoro do que o afeto, a emoção.

  • Cecília, Paulo e Lucas

    Lucas tem sete anos e mora com Cecília. Cecília é sua mãe. Lucas passa os fins de semana na casa de Paulo. Paulo é seu pai.

    Paulo e Cecília não moram juntos há muito tempo, desde que Lucas tinha um ano. Ou desde que Paulo deu a primeira e única bofetada no rosto de Cecília. Cecília ficou três dias com o olho direito inchado. Saiu sangue de seus lábios. Paulo e Cecília brigaram na frente de um juiz pela guarda de Lucas. Cecília ganhou, era a mãe do menino e esse foi o desfecho natural. Cecília e Paulo quase não se falam, só o necessário e só quando o assunto é Lucas. A escola de Lucas, a saúde de Lucas, as roupas de Lucas, os sapatos de Lucas, o videogame novo de Lucas.

    Paulo vai à casa de Cecília toda sexta-feira à noite para pegar Lucas e todo domingo no fim da tarde para devolver Lucas. Lucas passa os fins de semana jogando videogame e vendo filmes com o pai. Os dois gostam de filmes com muita ação. Quando o bandido toma um tiro, Paulo grita Chupa! Lucas repete Chupa! Lucas se diverte muito vendo filmes com seu pai.

    No último domingo, quando devolveu Lucas para a mãe, Paulo falou: O menino tá com caspa e tem dificuldade com a matemática. Paulo falou essas coisas sem olhar nos olhos de Cecília, como se o problema fosse dela. Cecília passou a semana inteira tentando acabar com as caspas de Lucas. Comprou xampu anticaspa, loção anticaspa, creme anticaspa. Gritou com ele, atrás da porta fechada do banheiro, para esfregar bem a cabeça e o cabelo no banho. Também gastou toda a semana discutindo com Lucas para largar a porcaria de videogame e estudar matemática. Lucas detestava matemática e ficou com raiva de Cecília. Ficou com muita, muita raiva de Cecília.

    Nessa sexta à noite, enquanto Paulo o esperava no carro, Lucas não quis se despedir de Cecília com um beijo, como costumava fazer. Só falou: Estou com raiva de você, vou pedir pro meu pai te cobrir de porrada.

  • No fundo do espelho de seu quarto

    A ética produz alegria, respeito e felicidade. O conceito passa por dignificar uma parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam e orientam o comportamento humano.

    Eu deveria sair na rua distribuindo sorrisos e elogios, ao invés de resmungos a tudo que me vier aos olhos, para aliviar meus problemas diários, utilizando como desculpa o que vi pela frente. 

    Tudo isso sem que me desse conta da ausência de ética e respeito ao próximo, nesses instantes de surto desproporcional. 

    Por isso é lamentável observar um ataque pessoal partindo de um indivíduo com cargas emocionais de natureza muito próximas de suas carências, ou questões complexas, que escolheu alguém aleatoriamente como alvo para desafogar seu peito carregado.

    Opções assim, são similares a muitas doenças médicas, como câncer de pulmão ou diabetes tipo II, que muitas vezes são produtos de nossas escolhas durante anos de maus tratos em nossos.

     Muito cigarro, descanso á sombra fresca em demasia, e docinhos apetitosos diariamente na sobremesa diária, promovem um prazer divino, mas são artimanhas de lúcifer para nos consumir.

    Porém, nossos transtornos cognitivos, característicos de uma doença mental que nos atinge, é um termo amplo, que necessita dados psicológicos que mostrem a existência de doenças mais graves para desenhar caminhos ao diagnóstico correto. De forma alguma a expressão “doença mental” é utilizada para caracterizar a todos como indivíduos “loucos”

    Mas a psicopatia, onde os indivíduos são carentes de empatia e culpa de suas ações, tem raízes mais densas no caráter doentio, e mentes atormentadas com esse diagnóstico, dolorido aos outros. Não imaginamos que haja necessidade de instalarmos um “freio de repreensão”, pressionando a língua nessas pessoas falantes e maldosas para cessar o problema. 

    Essa técnica foi utilizada para calar a boca de pessoas fofoqueiras na idade média. 

    O falar livremente hoje é saudável, e essa é técnica da psicoterapia, que corre junto de muitas soluções médicas na cura das dores emocionais, incluindo a medicamentosa, que salva a pátria de muitas relações humanas a espera de bons momentos sem aflições. 

    Existem os vazios que tecem a teia de nossas vidas, escondidos em armários ou gavetas à mostra num cenário quase ininteligível, e frequentemente á vista do cego que não quer ver.

     Apalpar nossos dramas com imagens quase hipnóticas, nos possibilita enxergar um caminho para solucionar nossos entraves humanos. Se o curioso olhar mais longe, vale o esforço na busca de si mesmo, no fundo do espelho de seu quarto.

  • Dominância imposta é ultrapassada, mas a hierarquia é real e necessária

    Sou da época em que se adestrava cães com base na força, dominação e autoritarismo. Havia um consenso de que o ser humano precisava ser o “alpha” da relação para impor mais respeito. Quase todos os profissionais seguiam esse caminho, ensinando-o com tanta convicção que sequer se cogitava outra possibilidade.

    A própria ciência veio corrigir esse conceito ao mostrar que a dominância não é um traço fixo de personalidade, mas uma construção relacional, que depende do contexto e da interação entre os indivíduos. Estudos mais recentes, conduzidos com observações de lobos em ambiente natural — e não mais em cativeiro — demonstraram que os vínculos dentro do grupo se organizam de maneira cooperativa e dinâmica, baseando-se mais em afiliação e estabilidade do que em confrontos contínuos por poder. Essa revisão ajudou a quebrar os grilhões. Mas, nesse processo de compreender melhor a natureza social dos cães, muitos jogaram fora também o bom senso. Abandonaram o conceito de dominação e, junto com ele, a ideia de hierarquia. A meu ver, erraram por excesso.

    Mas vale esclarecer uma coisa: medo não educa, tampouco promove bem-estar. O medo paralisa, mascara sintomas e instala um estado de alerta crônico nos cães, que acabam reagindo como forma de defesa. Tornam-se explosivos, desconfiados e inseguros. “Não se combate medo com mais medo”.

    A verdade é que cães não precisam ser subjugados, mas precisam ser guiados. Sem hierarquia funcional, não há convivência saudável. Na ausência de uma figura estruturante, o cão reativo cria sua própria lógica: ataque preventivo, defesa do território e controle do grupo. Ele não quer mandar, quer sobreviver. E, para isso, antecipa riscos, testa forças, impõe regras. Muitas vezes, busca se posicionar dentro do grupo da qual faz parte.

    Quando o cão está à beira do abismo emocional, é o passo firme do humano que o salva.

    É nesse momento que surge a necessidade da hierarquia, não como tirania, mas como construção. Um cão perdido se apega a certezas. Se o humano estiver preparado, pode se tornar esse ponto de referência. Não por grito, mas por constância. Não por opressão, mas por coerência.

    Muitos confundem controle consciente com opressão. Mas a dominância, de que se trata, não é ausência de liberdade, e sim presença de clareza. Não é leveza o tempo todo. É profundidade constante. Assumir o controle na relação não é prepotência nem covardia. É se colocar com previsibilidade, coerência e foco, de modo que a liderança se instale de forma silenciosa e se mantenha coesa a partir do alinhamento entre presença e ação.

    E quando o cão ultrapassa todos os limites? Quando já não há mais margem para técnicas suaves? Quando o medo se espalha entre aqueles que convivem com ele? Nesse cenário, sim, pode ser necessário agir com firmeza. O alpha roll — tão marginalizado pelos adeptos do reforço positivo —, quando aplicado com equilíbrio, não é punição, mas contenção. Não é humilhação, mas um modo de estabelecer limites e regras. Os métodos que o condenam, muitas vezes, não compreendem plenamente a ideia do reforço positivo, pois, sob nenhuma hipótese, o cão deve deixar de ser recompensado por algo que você intencionalmente comandou.

    Nietzsche dizia: “Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.” No caso dos cães, o porquê é o vínculo. O como é o método. E o erro nunca está na técnica isolada, mas na emoção que a move. Um gesto bruto com raiva destrói muito mais. Um gesto firme, sem pena, transforma além do previsível.

    Treinar não é vencer. Educar não é subjugar. Criar não é libertar sem rumo. É construir uma convivência em que o humano assume a condução e o cão encontra espaço para confiar, ter segurança e obedecer. Não, obedecer não é antiquado. O equilíbrio é um templo onde se possa, enfim, baixar a guarda sem perder a autoridade. Mas isso só acontece quando o humano não cede nas primeiras dificuldades nem recua diante da responsabilidade de guiar.

    Sejamos claros: a dominação imposta está ultrapassada. Mas a liderança real continua sendo indispensável. Um cão que já mordeu não se corrige apenas com petiscos. Ele precisa de direção. E quem não souber oferecer esse caminho corre o risco de se tornar só mais uma voz fraca num mundo que o cão já decidiu ignorar. Porque, no fim das contas, nenhum ser fraco será respeitado por uma espécie diferente da sua.

    Educar é assumir a responsabilidade de guiar com firmeza, mesmo quando o processo é instável. Oferecer uma direção sem anular a essência do outro. Para o cão, isso significa confiar sem medo, porque sabe que alguém finalmente assumiu o comando. Confiar, para o cão, é ter o direito ao descanso. Não por se sentir submisso, mas porque enxerga a liderança humano como um pilar de harmonia e sustentação.

  • A falta que faz

    Falta-nos um Nobel. A tão cobiçada e destacada honraria máxima de que ainda carecemos. Nós, o país mais exuberante. O país do samba, do Carnaval, do futebol. Temos de tudo um pouco e fazemos de tudo um pouco. O Brasil é um mundo particular que ninguém jamais decifrou completamente. Além disso, como sabemos, Deus é brasileiro. Só o resto do mundo ainda não percebeu. A Academia Sueca, então, nem se fala, parece querer constantemente desviar da terra de Deus. E nós continuamos sem um Nobel.

    Conquistamos cinco copas. Somos os maiores da história do futebol. Não interessa se estamos numa fase ruim ou se a Argentina nos humilhou na última partida, as cinco taças são nossas, ainda que uma delas tenha sido roubada. Isso, de fato, pouco importa. O mundo esteve literalmente aos nossos pés em 58, 62, 70, 94 e 2002. E, vamos combinar, a única coisa mais bonita do que as cinco estrelas na nossa camisa é imaginá-la com seis. A Olimpíada, que por muito tempo foi o nosso Calcanhar de Aquiles, conquistamos logo duas em sequência para mostrar quem é que manda. A primeira, por acaso, foi aqui no Brasil. Um capricho dos Deuses do futebol. Agora também voltamos a ter o melhor jogador do mundo. Tudo nos conformes. Do 7 a 1 nem lembramos direito, foi um vacilo momentâneo.

    Mudemos o foco por um instante. O Brasil tem as maravilhas da natureza. Me desculpem os europeus, os americanos do norte e o baixo clero dos países do médio oriente. Nós temos o Pampa, o Cerrado e o Pantanal. Nós temos a Amazônia e o litoral mais bonito do mundo. Nós temos as Cataratas do Iguaçu e o Cristo Redentor. Nós temos os Lençóis Maranhenses, o Monte Roraima e a Chapada Diamantina. Nós temos o Delta do Parnaíba, as Piscinas de Maragogi e a Gruta do Lago Azul. Nós também temos as cidades históricas de Porto Seguro, Ouro Preto e São Miguel das Missões. Salvador, São João del-Rei e Morretes. Petrópolis, Olinda e Manaus. E muito, muito mais. Não fosse a inflação um tanto descontrolada e o preço caloroso da gasolina, estou certo de que a população do país inteiro visitaria todas essas cidades. O turismo é claramente um dos nossos pontos fortes, mas é sempre bom ficar atento com carteiras, celulares e afins.

    Além dos conhecidos festejos carnavalescos de início de ano, invejados silenciosamente pelos países mais introvertidos, por assim dizer, temos também o Festival de Parintins e a Semana Farroupilha. Cada um com uma música, uma comida, uma história própria. Nós somos o país do forró, do baião e da bossa nova. Do xote, do frevo e do maracatu. E, apesar de estarmos novamente com um ex-presidente preso, no geral, somos boa gente.

    Agora temos um Oscar para chamar de nosso. Quem diria, hein? Até um Oscar conquistamos, numa festa digna de final de copa, com transmissão simultânea em várias capitais. Somos realmente bons na comemoração das nossas conquistas. Quem não lembra das cambalhotas do Vampeta na rampa do Palácio do Planalto?

    De fato, não sei de onde tiramos coragem para viver assim, tão bem, tão plenamente, sem um prêmio Nobel. Até me envergonho um pouco quando penso nisso durante as caminhadas matutinas. Talvez, se tivéssemos um Nobel, poderíamos tentar evitar o provável colapso financeiro dos próximos anos, sobretudo na Previdência. Talvez, se tivéssemos um Nobel, teríamos evitado o mensalão, o petrolão, os mandos e desmandos na pandemia, o desmatamento na Amazônia, os dólares na cueca, as fraudes no INSS. Pois é. A falta que faz.

    O curioso é que o prêmio Ig Nobel não nos falta. Aliás, até nos sobra. Temos oito. E Nobel que é bom, nada! Deus, que, sendo brasileiro, tem piedade de nós, desprovidos de Nobel, também perdoa, por certa conjuntura divina, a Academia Sueca, que não pousa os olhos sobre nós, os brasileiros, seus tão estimados conterrâneos. E Deus sabe o que faz. A Academia Sueca, por sua vez…

    E olha que nem estou falando das injustiças. Ao que tudo indica, Oswaldo Cruz deveria ter sido o primeiro laureado em terras tupiniquins. Não foi, entretanto. Também esqueceram do Carlos Chagas e do César Lattes. É desolador. Mal posso imaginar como seria avultado nosso orgulho patriótico com um prêmio Nobel. Só de pensar já fico alvoroçado. Não que precisemos de avultamentos dessa natureza, óbvio, e nem precisamos provar nada para ninguém. Mas, particularmente, não entendo como, na literatura, Guimarães Rosa não recebeu tal distinção. Nem ele nem a Lygia, a Clarice, o Cony e o Jorge Amado. É realmente constrangedor, Academia Sueca. Mas deixemos os traumas para outra hora.

    Como dizia, Deus é brasileiro e nos ensinou a não desistir. Então, ainda guardo uma fagulha de esperança de que, em 2025, o Brasil seja finalmente contemplado com um prêmio Nobel. O pesquisador Miguel Nicolelis é sempre um ótimo candidato. Há também outros grandes nomes da ciência no país, como Marcelo Labruna, Fernando Cunha e Carlos Barrios. Alô, Academia Sueca, chegou a nossa vez, não?

    Caso nenhuma dessas opções esteja à altura de tal distinção, tenho certeza de que temos ainda muitos candidatos ao Nobel de economia, visto que as livrarias estão empanturradas de publicações contendo infalíveis dicas para o leitor sair do salário mínimo diretamente para o bilhão em meses, às vezes em semanas, quiçá em horas. Dependendo, claro, de pormenores insignificantes. As cartas estão dadas, Academia Sueca.

    Por fim, com um Nobel poderemos deixar o ostracismo e nos tornar uma potência mundial. Num futuro não muito distante, lembraremos aos risos do tempo em que sustentávamos a síndrome de vira-lata. Abandonaremos, enfim, esse vice-campeonato moral para nos tornarmos golden retrievers, do alto da sua elegância despreocupada. No entanto, para isso, ainda nos falta um Nobel.

  • Cachaça, reza e um Papa gente boa

    Naquela segunda-feira chuvosa em Ipanema, o sol tirou folga. Depois de um fim de semana vaidoso, ensolarado e cheio de turistas na areia, ele se recolheu como quem respeita um luto.

    No lugar dele, veio a garoa. Capas de chuva nas calçadas, cangas de folga no armário e um silêncio molhado pairando sobre a cidade. Eu, mineiro de férias no Rio, escrevia umas crônicas no bloco de notas do celular quando veio a notícia: Papa Francisco morreu.

    Fiquei abalado. Abaladíssimo. Nem sou católico — sou do time que entra na igreja pra admirar o forro de madeira —, mas meu amigo é. E com ele, missa é antes do café. Domingo mesmo fomos ao Mosteiro de São Bento, na Praça Mauá. Missa linda. Depois, um café da manhã  na Visconde com Farme.

    Dizer que o céu chorava pode parecer exagero. Mas ali, com meu amigo ao lado e o coração um pouco apertado, chorei debaixo do guarda-chuva.

    Gostava de Francisco como se gosta de uma avó italiana: ele falava com firmeza, ria com os olhos e dava bronca com afeto. Canonizou Irmã Dulce, beatificou Frei Galvão, estendeu a mão pros refugiados, acolheu os gays e soltava frases que viravam camiseta.

    Um dia, disse a um brasileiro: “Vocês não têm salvação. Muita cachaça e pouca reza.” Depois, deu a bênção com seriedade franciscana.

    Talvez nenhum outro Papa tenha entendido tão bem o Brasil. Nosso jeito de rir da desgraça, de rezar e de fazer piada ao mesmo tempo. Francisco era argentino, mas ganhou a alma da gente.

    Ali, naquela manhã nublada de Ipanema, eu não rezei um terço. Mas agradeci em silêncio.

    Obrigado, Papa Francisco.

  • Poema #21: Eu Queria Fazer um Poema pra Você

    Numa ocasião em que eu estava
    (como das outras vezes) prestes
    a me naufragar no abismo do delírio,
    houve um sorriso de dentes postiços.

    Mas eu já não queria mais cair
    na cilada do amor fugaz e preferia
    estar quieto e fugir para longe do
    alcance de uma outra decepção.

    Então eu me internei num hospício
    e amarrei as minhas mãos ao pé
    de uma árvore frutífera de onde
    eu poderia escavar o chão de barro.

    Ao fim do terceiro dia de psicopatia
    veio a diretora dizer que eu deveria
    partir para um lugar que não sabia
    e me deram um endereço e o contato.

    Era um lugar acolhedor e distante
    coberto de grama e cerca de arame
    mas quando fui atravessar a ponte
    um cão vampiro me atacou de noite.

    Sobrevivi como alguém que se esqueceu
    da longa noite passada e caminha como
    se o dia estivesse amanhecendo de novo,
    apesar do rastro de sangue e a boca seca.

    Havia uma casa deserta e eu pensei em
    largar tudo o que eu não nunca tive e
    vir morar aqui no meio dos bichos que
    comunicam-se através de sinais e apitos.

    Lembro de uma escada pintada de verde
    e uma mulher bonita que veio me atender
    com as mãos estendidas e um sorriso
    encorajador para que eu dissesse tudo.

    Não havia o que contar além do fato
    de eu ter andado ausente e perdido
    e que, nesse período, eu havia criado
    enredos irreais para me manter vivo.

    Tudo era então uma simples questão
    de fechar os olhos para os pássaros e viver
    tranquilo como os homens banidos de si
    e que se refugiam no labirinto do amor.

    Ai que delícia que é poder acordar e dizer
    que estou vivo, mesmo não tendo nada
    ao redor a não ser o microfone em que
    digo isso e acompanhar o seu eco no abismo.

    O Jardim Simultâneo

  • Dons de domingo

    Frestas na janela forrada com tecidos nobres, trilho suspenso, que corre e fica. Luz matinal que avança, intrépida, vaporosa, deslumbrante.

    É manhã de domingo, os pássaros conversam, uma ou outra garagem desperta, eu também. Alguns dormem. Tantos tomam café, outros fazem cooper, yoga, amor, nada.

    Alguns compram jornais impressos. Alguns jogam virtualmente, desde ontem. Praia, cachoeira, trilhas, um bom livro. Os asfaltos e paralelos têm horas de menor pressão; poucos são os veículos que por eles transitam. Pessoas caminham, cachorros levam seus tutores para passear com mais qualidade.

    As conversas fluem sem tanta pressa. Os olhares se perdem ao sabor do tanto faz. Respira-se mais.

    É chegado mais um domingo, uma ode ao sol, ou um tipo de sorvete _ sunday. Dia de descanso, preguiça, pausas, refeições demoradas, o sabor e vapor de xícaras fumegantes, ócio criativo, prazeres e o que quisermos.

    Aos domingos, as frestas dominam.

  • Crônica apressadinha

    Eu quero escrever uma crônica agora, mas você sabe como é que é… Tenho que fazer isso e fazer aquilo e passar em um monte de lugares e depois de fazer isso tudo, ainda tem mais coisa pra fazer!

    Espera ai! Uma mensagem chegou!

    E o olhar para a tela fica congelado! Os dedos digitam algo! Outra mensagem e mais outra!

    Bom, como eu ia dizendo, quero escrever uma crônica, mas a pressa de nosso mundo é grande!!! Eu sei! Eu sei! A pressa é inimiga da perfeição, mas o que fazer se é preciso correr o tempo inteiro?

    Um instante! Notificação! Dedo que desliza na tela e passa e passa e passa sem parar! Uma imagem e mais outra e outra mais!

    A crônica que quero escrever é sobre essa pressa nossa! A gente vive sem tempo! E não faz…

    Mais uma mensagem! Aqueles vídeos engraçados de cachorro! E já são quatro vídeos! Rapidinho…

    Eu não quero escrever uma crônica! Eu queria, mas com toda essa pressa, não vou conseguir nem pensar sobre! Se não tivéssemos tanta coisa pra fazer!

    Notificação…

  • O fim da fila

    Andei tendo pesadelos com filas — fila do cinema, fila do caixa do supermercado, fila de embarque no avião, fila no atendimento do banco… eu ali, imprensada, empurrada, as pessoas passando na minha frente sem a menor cerimônia, ignorando que se tratava de uma pessoa idosa.

    A cada dia, uma nova imagem dessas me atrapalhava o sono e, num sobressalto, eu acordava. Ao abrir os olhos, respirava aliviada ao perceber que era só um pesadelo. Afinal, eu vivia em um país em que os maiores de 60 anos têm um privilégio garantido por lei — o Estatuto da Pessoa Idosa, de outubro de 2003, assegura prioridades que nos ajudam a envelhecer com um pouco mais de dignidade.

    Com o tempo, os pesadelos sumiram, e eu me vi aproveitando, feliz, os pequenos privilégios da “melhor idade”: o prazer de encontrar uma vaga exclusiva em um estacionamento lotado, de entrar primeiro no avião e me acomodar sem atropelamentos, de sentar tranquila no transporte coletivo. Compensações merecidas pelos percalços do envelhecimento, eu pensava.

    Outro dia, no entanto, fui assistir a uma peça de teatro e me deparei com uma cena inesperada. Ao me dirigir à entrada reservada aos idosos, fiquei desnorteada: onde estava a fila? Em vez de uma ordem civilizada, havia um aglomerado de cabelos brancos e cabeças carecas que se acotovelavam num tumulto para marcar seus bilhetes de entrada.

    Olhei ao redor e compreendi: praticamente todos ali já tinham passado dos 60. Se fosse para haver uma fila especial, ela deveria ser para os “não idosos”.

    Naquela hora, lembrei dos meus antigos pesadelos. Eles não eram delírios, mas premonições. Nossa população está envelhecendo, e não vai demorar muito para que o privilégio mude de lado. Talvez passemos a ver filas exclusivas para os menores de 60 — mais ágeis, mais rápidos, mais conectados —, enquanto nós, os da “melhor idade”, vamos amargar as filas comuns, onde tudo demora.

    Porque um esqueceu o documento, outro não consegue abrir o QR code no celular, um terceiro precisa desmontar a mala na esteira para encontrar a tesourinha esquecida. Sem contar aquele senhor na minha frente que mal consegue subir as escadas do ônibus e, por isso, a porta acaba se fechando antes de mim.

    Segundo o IBGE, em 2070 o Brasil terá cerca de 75,3 milhões de idosos — quase 40% da população. Bem… pelo menos eu não estarei entre esses milhões de ex-privilegiados.

    Já é um consolo.

  • Almas

    Almas rasas, almas profundas. Almas quietas, almas inquietas. Almas glutonas. Ou seriam corpos glutões? Almas machucadas, doídas, que não são percebidas. Almas irmãs, almas curiosas, almas altruístas.

    Olhar, esquadrinhar, perscrutar…

    É desonesto? É como espiar pelo buraco da fechadura? É pretensioso?

    Não sei… mas não consigo evitar. Meu olhar atravessa os corpos, vasculha os gestos, decifra os silêncios. Cada passo que vejo guarda uma história, cada olhar desviado esconde um receio. Há almas que se mostram sem perceber, e há outras que se escondem, mas não o suficiente.

    Ah, meus amigos…

    Como eu gostaria de ser uma alma bebê…

    Só assim eu deixaria de ver. De perceber. De saber.

    Uma alma inocente não veria malícias, subterfúgios, intenções. Não distinguiria as sombras dos sorrisos, as hesitações dos fingimentos. Viveria sem o peso da consciência, sem essa insuportável necessidade de compreender o que deveria passar despercebido.

    Quisera eu ter a inocência de estar desnuda e não perceber…

    Mas não! Prefiro estar oculta a estar desnuda…

    Afinal, para quê saber das fragilidades, da inocência, da malícia?

    Por quê? Para quê? Essa é a pergunta que atormenta a MINHA ALMA…

    E ainda assim, eu continuo olhando.

  • Toda verdade é ato

    Ao tomar ciência da morte do Papa Francisco, um lamento silencioso me abraçou forte. Não frequento igrejas ou missas nem o conhecia pessoalmente, mas senti o pesar que a partida de um amigo distante e querido inaugura.

    A exploração excessiva da mídia, a monetarização advinda do uso selvagem da notícia do seu falecimento, a pequenez do mundo, tornou ainda mais evidente a grandeza rara desse homem que escreveu com atitudes o brado de uma ética de humanização do viver.  

    Seu maior legado talvez seja a mensagem cifrada em todas as suas ações: o amor genuíno, curandeiro de todo o mal, só floresce do respeito e da empatia entre os seres.

    Ele se foi, mas uma fração da sua eternidade ficou em mim.

    O bem reverbera!

    O Amor é colo que acolhe sem mimar.

    A verdade dos afetos e dos intentos vive nos gestos. O Papa Francisco escolheu ser sepultado na Basílica de Santa Maria de Maggiore em Roma, quebrando a tradição centenária de sepultamento na Basílica de São Pedro.

    Quantas coisas são ditas com esse ato…

  • Da glória ao fracasso

    Impressionam-me os casos, muito noticiados pela mídia, de pessoas que eram famosas, endinheiradas, e depois perderam tudo. Geralmente são artistas ou ases do esporte. Sabe-se que o sucesso é fugaz, mas há uma diferença entre sair dos holofotes e mergulhar na escuridão do anonimato ou nos confins da miséria.  

    Recentemente se noticiou o caso de Mário Gomes, que teve a mansão leiloada para pagar dívidas trabalhistas. Desconsolado, o ator revelou que estava por enquanto na casa de uma filha e não tinha ideia de onde ia morar – talvez “embaixo de uma ponte”!  

    Há muitos outros casos. Entre eles está, por exemplo, o de Regininha Poltergeist; depois da fama nos anos 1990, ela perdeu  o que havia conquistado e chegou a morar num posto de gasolina. Outro é o do ator César Macedo, que atuou na “Escolinha do Professor Raimundo” e, fora da TV, enfrentou muitas dificuldades financeiras. Veio a morar nas ruas depois que a esposa morreu.

    E quem não se lembra do ator Rubens Sabino, que fez o papel de Neguinho  no filme “Cidade de Deus”? Depois de abandonar a carreira, ele chegou a viver na Cracolândia, em São Paulo, por cerca de quatro anos.

    Muitos perdem seus bens e ficam mesmo sem ter onde morar. Caso não sejam amparados por um algum parente generoso, têm que apelar para a generosidade dos transeuntes. Na melhor das hipóteses, passam a vender cachorros-quentes, bombons ou água para sobreviver.   

    Se a ambição maior deles é galgar a escada da fama, o que os faz descê-la de forma assim melancólica? A explicação comum, e um tanto óbvia, é que não pensam no futuro. Deslumbrados com os aplausos e paparicos dos fãs, esquecem que essas manifestações passam e com elas o dinheiro que lhes permite o conforto de uma boa vida.

    Alguém já disse que, a ter e perder, é preferível nunca ter tido. A memória dos bons tempos dói mais do que a tristeza por eles nunca terem chegado. Enfim, não se perde o que não se teve.

    Outros atribuem a derrocada à fatalidade, que escolhe algumas pessoas para nelas imprimir negativamente a sua marca. Mas fatalidade não é destino. Para que nele se transforme, é preciso que a vítima de algum modo aceite o que lhe é infligido, ou vá ao seu encontro.   

    Talvez os que descem do chamado “pedestal da glória” façam isso por não se julgarem aptos a lá estar. Talvez procurem a obscuridade por não se acharem merecedores de ficar sob a luz. Nesse caso não é o descuido com o futuro que os leva a tal situação, mas algum tipo de prisão ligada ao passado.   

    Há quem ache que não faz jus ao sucesso que a vida lhe concedeu. Por alguma obscura falha interior, considera injusto o que alcançou na arte, na profissão ou mesmo nas relações sociais. Trata então de “reparar o engano”, infligindo-se um fracasso que compensa o que por equívoco lhe teria sido dado. A alma humana tem desses mistérios.

    Essa tese psicológica não se aplica a todos os casos e pode ser contestada. Mas não deixa de nos fazer pensar. Só ela explica que chegue ao declínio alguém que tanto lutou para alcançar o apogeu.

  • O meu amiguinho

    Sei que ele está indo embora, é só uma questão de tempo. Está mais fraquinho a cada dia, alimenta-se mal, come sem apetite. Cabisbaixo, calado, triste, tão diferente de outros tempos, não passa agora de uma sombra do que costumava ser. Sempre achei chato olhar para ele pelas grades da gaiola, mas com o tempo me habituei. Ainda que possa parecer egoísta, eu ficava reconfortado por saber que ele estava ali, pertinho de mim. Sua companhia me fazia bem e eu só posso agradecer por tanta generosidade. Com a presença dele, a solidão pesava menos. E, quando ele cantarolava, eu juntava minha voz à dele e éramos os dois mergulhados numa só melodia.

    A vida prática, porém, ensina que não é bom tomar-se de tanto carinho pelos bichinhos de estimação. Quando eles morrem, a gente fica só, desarvorado. A gente fica sem chão e tudo passa a não ter mais sentido. Como acontece agora. Meu amiguinho está indo embora e eu me sinto muito triste. Perdi a melodia, minha garganta secou. Minhas penas vão logo perder a cor e o brilho. Agora só penso com qual dos dois filhos do meu amiguinho eu vou ficar. O mais velho nunca se importou comigo. Talvez o mais novo queira me levar, não sei.

  • Poema #20 – CONFIDENCIAL

    Nada consta.
    Consta que seja um nada
    em face a uma constância
    de extremos inarredáveis.
    Enfim
    um nada consta sobre
    outro consta um nada
    — A vida incerta do homem —
    Nas folhas gastas do mundo
    não consta nada em
    detrimento desse nome.
    Um simples nome em meio
    a tantos outros no arquivo
    de uma gaveta metálica.

    O Acaso das Manhãs

  • Missão Pascal

    .

    Conto baseado na poesia de Gabriela Mistral, Prêmio Nobel de Literatura 1945.

    Pascal foi incumbido de escolher a imagem de Cristo que iria ser utilizada na pregação da Sexta-Feira Santa. 

    Saiu à procura daquela que fosse capaz de comover a consciência dos fiéis, nesses tempos tão sombrios de conflitos, intolerância, violência e genocídios. 

    Buscava algo que transmitisse o sofrimento do Criador, não por sua condição de torturado no alto de uma cruz, mas sim pelo reflexo de sua dor naqueles que padecem no mundo dos vivos.

    Queria uma imagem que iluminasse o coração e o cérebro dos que a ela elevassem os olhos, e fosse capaz de acender uma centelha de reflexão, primeiro passo para a expiação das culpas de um rebanho desgovernado.

    Percorreu céus e terras analisando representações de Jesus talhadas em madeira, mármore, granito, mas, apesar de sua beleza, nenhuma delas conseguia transmitir o sofrimento terreno que achava importante representar nesta sexta-feira.

    Sentou-se para descansar em um banco de praça, e logo se deparou com uma cena cada vez mais comum na cidade. Uma família, abrigada na cobertura da marquise ao lado. Voltou-se para a mulher que embalava a criança e o observava com um meio sorriso. O que buscas? — Perguntou a desconhecida.

    — Estou à procura de uma imagem de Cristo para a pregação da Sexta-feira Santa. Uma que represente todo o sofrimento do Criador ao ver que sua palavra não tem conseguido refrear as injustiças, a violência e a falta de solidariedade de seus seguidores — respondeu Pascoal.

    — Se queres retratar o sofrimento, não procures nas estátuas, nos altares e templos. Vá buscar essa imagem nas ruas, entre as pessoas sem teto, onde há gente morrendo, crianças famintas, mulheres vítimas do abuso. Você vai encontra-la entre os pobres, uma imagem de carne e osso. 

    Pascal fechou os olhos por um instante para refletir sobre a revelação. Quando os abriu novamente, a mulher e a criança tinham desaparecido, como por encanto.

  • Ela morreu

    Sentada à mesa de um restaurante, aguardando uma amiga para o almoço de celebração da nossa amizade, chegou aos meus ouvidos uma frase, com efeito de fogos de artifício, dita por uma voz feminina, provavelmente da mesa ao lado:

    — Eu confiava nela. 

    No momento que decodifiquei o som e o sentido se fez claro, fui tomada por uma tristeza absoluta e uma identificação imediata com a enganada da vez. 

    Sem que nos conhecêssemos ou tivéssemos intimidade, experimentei, por osmose, a dor causada pelo corte profundo da decepção. O sangrar hemorrágico de um fim que se impõe mesmo diante do perdão. Toda falsidade ou traição fere a eternidade do sentimento, a ingenuidade da confiança. Sem isso, ela é outra coisa. Perde o viço, a raridade, o estado nato de berço. Mas tem quem não se importe, quem acredite que uma vez ferida, ela, a confiança, feito lagartixa, se regenera. Quanto engano! 

    Seu ferimento tem dor profunda, pulsante e incurável. Sua cicatriz é feita de queloide. Impossível retornar ao conforto inicial de sentir-se em casa diante do outro. Esse é o maior luto. A certeza de que não se volta ao estado natural de ingenuidade. Impressionante que as pessoas não se deem conta do que perdem com o fim da fé em si. 

    Eu confiava nela. Que triste! 

  • O que perdemos com o Wi-Fi

    A tecnologia nos trouxe muitas coisas. Mas o que ela levou embora? Creio que a pergunta poderia ser: as crianças ainda brincam? Acredito que brincam bem menos do que eu, meus irmãos e amigos! Os tempos mudaram.

    Ninguém mais fica na rua, na frente de casa. As famílias não têm tantos filhos. E com isso perdeu-se também o maravilhoso programa de irmos à casa da vó, onde os primos se encontravam e saíam esbaforidos para aproveitar o tempo e brincar.

    Passar anel, esconde-esconde, amarelinha, rolimã, pique, queimada, cabra-cega, “adivinha o que é?”, pular corda, cabo de guerra, telefone sem fio, cantiga de roda…

    Essas eram as brincadeiras antigas, normais e lícitas. Existiam também as perigosas: subir em árvores, descer de rolimã, guerra de sementes de mamona, roubar frutas nos quintais alheios, soltar espoletas…

    Quanta coisa existia em nosso mundo infantil! E os insetos? Será que as crianças conhecem os louva-a-deus, cigarras, esperanças, joaninhas, vaga-lumes?

    Os perigos eram conhecidos: não andar descalço para não entrar espinho no pé ou pisar em cacos de vidro; não subir no telhado para pegar a rabiola da pandorga; não sair sem avisar a mãe…

    A tecnologia mudou a vida dos adultos e a das crianças também.  Estimulou o aprendizado, os jogos lúdicos aumentaram a atenção e o foco, desenhos e filmes facilitaram o interesse por outros idiomas. Quem já não ouviu delas : Tem Wi-Fi?

    Em todos os tempos existirão brincadeiras inocentes e perigosas. Algumas desconhecidas… Na sala de casa, um celular e um frasco de desodorante podem ser fatais.

    Crianças são crianças.

  • Retorno às névoas perfumadas

    Chegou antes da hora marcada. Uns minutinhos somente mas tempo suficiente para se acomodar no café. Escolheu uma mesa na parte externa que dava para o jardim interno da ala elegante do shopping. E ficou ali.

    Marcou o encontro com uma amiga de anos e escolheu aquele lugar para agradar a ela e, sendo sincero, também a si mesmo. A atmosfera do ambiente fazia seu senso estético se manifestar contente. A idéia do encontro era marcar o fim de dois anos de isolamento forçado. Eles não estavam desatualizados a respeito dos respectivos assuntos particulares e comuns. A internet ajudara bastante a manter as conversas constantes. Porém, faltava a proximidade física.

    Os dois encaravam aquele encontro como sua celebração pós pandemia. A volta ao mundo real. Mas o que ela não sabia é que para ele havia um algo a mais por trás daquele encontro. Sem alarde e em segredo ele decidira começar naquele dia um ritual íntimo que ele chamara de retorno às névoas perfumadas.

    Das ausências provocadas pela pandemia em sua vida uma das mais significativas foi a falta de aspirar perfumes. Conversar com as pessoas, manter um contato mínimo, pôde ser contornado com as webconferences. Mas sentir aquele aroma agradável especial, sem chance.

    Não perfume do vidro mas sim aquele cheiro perfumado que sobe das pessoas. Esse é insubstituível. Fica gravado na memória para sempre.

    E sua predileção era pelas fragrâncias que envolviam as mulheres. Sentia uma falta imensa de encontrar alguma mulher perfumada.

    Logo que tomou coragem para sair de casa, tentara um paliativo que era circular pela rua ou pelo shopping e passar pelas pessoas que emanassem nuvens perfumadas. Não dera certo.

    Tinha que entrar em contato com as mulheres para sentir de perto o perfume feminino. A química entre fragrância e a pele de cada pessoa era única, ensinava o senso comum e ele assinava embaixo com todas as letras. Sabia que não precisaria de muito para satisfazer seu olfato. O aperto de mão seria suficiente para trazer para perto de si a nuvem de aroma perfumado. Aspiraria profundamente arquivando na memória o cheiro suave e envolvente daquela névoa deliciosa.

    Aos poucos fora formulando em sua cabeça a idéia desse ritual íntimo. Não via maldade nem inconveniência em sua busca. Era um movimento puramente estético e sensorial, dizia para si.

    Nada abusivo ou ofensivo.

    Não se considerava invasivo, nem tarado ou pervertido. Apenas um apreciador desse aspecto sensorial do mundo feminino. Outra forma de justificar o que iria dar início naquele dia.

    Honestamente não tinha pretensão alguma em se envolver com ninguém. Bastava para seu prazer captar aquele aroma particular. O arrebatamento do encontro do perfume com suas narinas seria sem igual.

    Depois de muito pensar e pesar decidira passar a ação. Agora estava ali, prestes ao primeiro encontro de retomada do prazer sensorial provocado pelo perfume de uma mulher.

    Selecionara com cuidado quem seria sua primeira convidada e optara por uma amiga de longa data e apurado senso estético. Ela era um dos melhores exemplos de química perfeita entre perfume e pessoa. Não conhecia ninguém que combinasse tão bem com a fragrância daquele perfume de nome exótico.

    Portanto, para abrir os trabalhos seria com ela.

    Seus pensamentos foram interrompidos com a visão de sua amiga chegando. Ela caminhava devagar e sorridente. Ele se levantou sorrindo, aspirou o ar profundamente e pensou: seja bem vinda névoa perfumada.

    Crônica escrita originalmente em 5 de outubro de 2022

  • O cronista em caça

    O cronista é um caçador, não o homem que sai com sua espingarda a fim de conseguir algo para comer ou por pura diversão pela morte. É um animal eternamente faminto e em constante situação de caça. A todo momento, está em busca da sua próxima vítima, que alimentará a si e aos outros.

    Ser esse caçador é consequência de ser cronista.

    Onde estiver, estará em caçada. Não importa a situação, o momento ou o lugar. Qualquer um pode ser propício, todos são capazes de lhe oferecer uma nova presa. Ele sabe disso, está sempre à espreita. Diante de um alvo que se mostre, não titubeia; na primeira oportunidade, irá agir.

    Por onde passa, segue perseguindo algo, que os outros não veem e ele, talvez, ainda não saiba ao certo. Não sai de casa necessariamente com o intuito de executar o apresamento subsequente. Entretanto, para onde vá ou onde se encontre, o gênio de cronista está agindo dentro dele.

    Não é caçador apenas por escolha ou por aptidão adquirida, mas por uma condição intrínseca, ínsita ao seu próprio ser cronista. Ela garante o sucesso na localização do alvo de cada empreitada, seja mensal, semanal ou diária; por obrigação ou puro deleite.

    O predicado disso está na procura constante, mas também, por vezes, não deliberada. Está no instinto e nos olhos que só podem ser encontrados em indivíduos dessa espécie. Possui um olhar particular, olhar de caçador, olhar de cronista, essencial para produzir novas presas. Ele não enxerga como os demais. Seus olhos de rapina são capazes de transformar o mais insignificante elemento em uma preia útil.

    Esconder-se ou se esgueirar são desnecessários. Para o bote, precisa de ouvidos vigilantes, visão precisa e argúcia em seu faro. Todos muito bem treinados e experimentados. Assim como os seus gadanhos, que, se não forem cultivados e afiados cotidianamente pelo predador, tornam-se ineficazes no assalto.

    Essa fera não distingue suas vítimas. Qualquer um pode vir a ser o próximo. Tudo lhe interessa, desde o gesto mais inocente à hecatombe mundial, do último acontecimento político ao café que coa todas as manhãs. Não há nada que não esteja passível de se converter no seu mais recente abate.

    Mal tendo digerido o último, já se lança à procura do seguinte. Seu ímpeto jamais cessa, precisa estar sempre em caça. E ele estará.

  • Um escorrego de morfologia

    A frase abaixo foi retirada de uma matéria da IstoÉ sobre um medicamento contra a impotência:    

    “Por ser ingerido diariamente, não é preciso calcular quando ter relação (os outros remédios exigem um tempo para fazer efeito).”

    Li críticas de professores de português à flexão do verbo “ter” nessa passagem. Dizem que a forma correta é “tiver”, pois ele estaria empregado no futuro do subjuntivo. Um dos que defendem esse ponto de vista escreve: “Este (o futuro do subjuntivo) participa de orações iniciadas pela conjunção ‘se’ (condição hipotética futura) ou pela conjunção ‘quando’ (tempo hipotético futuro).”

    A explicação seria correta se o vocábulo “quando” naquele contexto fosse mesmo conjunção. Ou seja: se a oração iniciada por ele se classificasse como adverbial temporal. Não é isso que ocorre.

    Vejamos por quê. O autor da matéria se refere a um medicamento que, ao contrário de outros com o mesmo fim, pode ser usado todos os dias. Essa frequência traz uma vantagem ao usuário: não precisar calcular o momento adequado para ter relação. Tal vantagem não existe em drogas similares, que “exigem um tempo para fazer efeito” e, consequentemente, determinam que os usuários escolham a melhor ocasião de tomá-las.  

    Assim, a palavra “quando” naquela frase não é conjunção, mas advérbio. Introduz oração objetiva direta, na qual exerce função sintática. Considerar a oração indicada pelo “quando” como temporal deixaria sem complemento o verbo “calcular” e sem sentido a frase (calcular o quê?). De fato, o autor não quis dizer que se precisa calcular “alguma coisa” no momento de ter relação; esse momento (ou seja, o “quando”) é o próprio objeto do cálculo.

    Nesse tipo de construção a oração objetiva se diz justaposta, pois é introduzida por um termo que, ao contrário da conjunção, exerce função sintática. Além de “quando”, podem aparecer outros advérbios ou locução correspondente. Por exemplo:

    — “não é preciso calcular como ter relação” (modo)

    — “não é preciso calcular onde ter relação” (lugar)

    — “não é preciso calcular quanto ter relação” (intensidade)

    — “não é preciso calcular por que ter relação” (causa)

    O infinitivo, nesse caso, constitui o verbo principal de uma locução com auxiliar modal implícito (poder ou dever): “não é preciso calcular quando (se pode ou deve) ter relação”.

    Enganos como o acima referido mostram o perigo de classificar vocábulos ou orações sem atentar para o sentido da frase. Resultam de um hábito por vezes comum no aprendizado da língua, que é o de decorar classes de palavras. Quem faz isto parece esquecer que elas se definem de acordo com o contexto.

  • Maldades Obscenas!

    O que não pode ser visto, não incomoda, essa máxima nos protege dos males da natureza humana, que insistem surgir durante décadas e afetar as mentes mais frágeis entre nós.

    Mesmo no início do século XX, os doentes mentais crônicos eram vistos como “degenerados” e “escória”, o equivalente a criminosos e escroques, por isso a ideia de escondê-los em manicômios foi a saída na época para resolver as questões ainda desconhecidas de nossa alma. 

    Nossas dores emocionais são frequentes companhias sem que tenhamos encomendado sentimentos ruins ou algum interesse em especial pra fritar nossos miolos ainda crus. 

    Buscamos viver com leveza porque a ausência de um fardo leva o ser humano tornar-se mais leve e de fácil convívio, e assim atingir um status social atraente e com mais oportunidades mundanas. 

    O que nos atormenta invariavelmente transborda a frente da próxima companhia tornando assim pesado o relacionamento com o próximo. 

    O escritor Milan Kundera escreveu em seu espetacular livro “A insustentável leveza do ser” que o mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão, ao mesmo tempo, ele é a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é. 

    Vivemos muito pela primeira vez, quase não há tempo para ensaios ao entrar em cena nas ruas, e eventualmente somos recriminados(as) por sermos diferentes, ou a frente dos tempos.

    Nos anos 1486, algumas mulheres foram consideradas bruxas por serem hereges ou conhecerem magias incomuns, e também por suas atitudes contra o machismo reinante, foram recriminadas pela Inquisição. 

    A maior inovação da obra do inquisidor Institoris (Kraemer) foi justamente atribuir exclusivamente à mulher a condição de “bruxa”. 

    Antes da publicação do livro Malleus Maleficarum, ou O Martelo das Feiticeiras, e de posse da bula papal, ele havia empreendido esforços para processar mulheres suspeitas de bruxaria. Sempre é mais fácil atacar o fraco, o desconhecido, porque o covarde precisa justificar seus atos como o fez Adolf Hitler, que certa vez disse a um de seus Generais, se não existissem os judeus, precisaríamos criá-los, pra justificar nosso ódio. O inquisidor Institoris, durante um interrogatório preliminar, procurou conectar a mulher a um desvio sexual feminino e a bruxaria. 

    Assim justificou suas maldades obscenas, contra as criaturas desavisadas.

    *Publicado originalmente no Crônicas Cariocas em 11 de abr. de 2023, 23:24

  • Coisa de louco

    O que comentam é que Gabriel não tinha como saber a verdade, já que fora criado por freiras num orfanato. Não conheceu os pais nem ninguém de sua família biológica. Mal tinha nascido quando uma vidente, dessas que ganham a vida enganando gente ignorante, sussurrou no ouvido da mãe:

    — Essa criança nasceu com olho grande, a cabeça tem um formato estranho e prevejo tragédia no futuro. Livre-se dela o quanto antes.

    Foi o que fez a mãe de Gabriel: entregou-o às freiras, com a concordância do marido. O tempo passou e Gabriel ficou no orfanato até os onze anos. Um dia falou para as freiras com aquele sorriso irresistível:

    — Valeu, meninas, mas agora eu vou vazar. Tô indo, muito obrigado por tudo.

    E jogou a perna no mundo. Vagabundeou até os dezesseis, morou na rua, viveu de pequenos furtos, fumou umas quantas pedras e se deixou levar pela vida. Num dos assaltos em que se meteu, o homem gordo não quis lhe dar a carteira e o celular e Gabriel não hesitou em despachar o tipo com dois tiros na altura do coração. Escondeu-se por um tempo até completar dezoito anos.

    Já maior de idade, com o corpo ganhando contornos de homem feito, percebeu que agradava ao sexo oposto e conseguiu emprego como stripper num clube noturno. Todas as noites se vestia de marinheiro e se despia no palco para o aplauso e o grito das mulheres em êxtase. Foi quando conheceu uma mulher madura, viúva e muito rica, que lhe prometeu dinheiro e proteção em troca de carinho. Gabriel logo foi morar com a amante e em poucos dias virou o homem de confiança da dona da casa. Passou a desfrutar das delícias da vida abastada: dinheiro, carros, passeios, viagens, restaurantes, festas.

    Quando menos esperava, Gabriel recebeu a visita de dois policiais, que tinham provas de que ele assassinara o homem gordo, anos antes. Suas impressões digitais na roupa do morto o denunciaram. E, como o destino não gosta de deboche, o delegado cismou de fazer um exame de DNA em Gabriel e no gordo e o resultado foi uma tragédia, talvez única no mundo: comprovou-se que, na realidade, o homem assassinado era o verdadeiro pai de Gabriel. A prisão, então, era o seu inexorável destino e, sem alternativa, Gabriel pediu ajuda à velha amante protetora. Em vão. A mulher não era outra senão a viúva do homem gordo e, portanto, sua mãe biológica.

    — Meu Deus, que história inacreditável! E Gabriel, o que foi feito dele?

    Pegou prisão perpétua. Ficou que nem louco. E cego. Mal entrou na cela, num acesso de fúria incontrolável, arrancou os próprios olhos para não ter que encarar a realidade: ele tinha matado o pai e ido para a cama com sua mãe.

    — Que tragédia! Não me recordo de ouvir uma história parecida com essa em toda a minha vida.

    Eu também não. Coisa de louco, não?

    — Nem me fale. É de pôr os cabelos em pé.

  • A teoria da verruga

    Conheci a teoria da verruga num sábado nublado, na casa da benzedeira mais famosa da região, para onde fui arrastado por minha avó. Eu esperava sentado numa cadeira de palha ao lado da porta enquanto conversavam lá dentro. O marido dela podava as roseiras no jardim. Aquele homem tinha barbas longas e brancas se ligando aos cabelos também longos e brancos, o andar lhe parecia difícil, encurvado, arrastava o pé esquerdo e, sempre que preciso, se dobrava quase completamente sem mexer a perna, num balanço breve e repentino. Das suas orelhas saíam tufos de pelos pretos, que contrastavam com a cor gélida do entorno e aumentavam a minha vigília assustada.

    Eu já o conhecia. Na escola eram contadas inúmeras histórias sobre ele. Uns diziam que devorava crianças, outros que tinha pacto com o demônio, havia ainda quem jurava tê-lo visto vagando no cemitério em noite de lua cheia. A lenda mais conhecida, entretanto, confirmava que, na verdade, ele era o próprio Lobisomem. Nunca faltaram relatos alegadamente verídicos sobre suas metamorfoses. Ainda lembro de uma história que o Júnior contou e assustou a turma. Andava ele com o seu pai durante a noite quando avistaram um vulto parecido com o velho, caminhando arqueado a poucos metros de distância. Segundo o Júnior, o velho estava se transformando e os percebeu ali, então, num pulo entrou no mato fechado. Assim que chegaram lá, encontraram apenas pegadas de lobo se terminando de repente. E nada mais.

    Eu lembrava dessas histórias encolhido na cadeira com o coração a mil, contando os segundos para a minha avó aparecer. Pensei até que ela pudesse querer me trocar por algum serviço mais robusto da benzedeira. O velho começou a falar comigo ainda de costas. Tinha um tom calmo e soltava palavra por palavra com tal harmonia que me surpreendeu mais do que as próprias histórias sobre ele. Disse que a natureza tinha o seu tempo e nós deveríamos respeitá-lo. Disse que a poda das roseiras era importante para crescerem mais belas e saudáveis. Disse que a vida é também assim, pois precisamos, às vezes, enfrentar dificuldades para nos tornarmos mais fortes. Disse que era como passar Merthiolate na ferida, que mesmo ardendo um pouco, logo nos deixava prontos para outra. Só então se virou para mim, trazendo consigo algumas rosas negras. Me alcançou uma delas e sentou com dificuldade no degrau ao meu lado, enquanto eu sentia por osmose a ardência repulsiva do Merthiolate nos joelhos.

    O tom sereno da sua voz me ceifou o medo, ou talvez fosse a conversa sobre como podemos aprender observando a natureza. Não sei se foi por influência do velho que acabei me tornando biólogo, mas encontro seguidamente pesquisas científicas comprovando muitas das suas afirmações. Contou-me, naquela manhã, a teoria da verruga. Antes, no entanto, alertou-me que poucas pessoas conheciam a teoria e só uma fração delas é que a compartilhava com os mais novos. Eu mesclava o olhar entre o velho e as rosas. Os joelhos já não ardiam mais. Na verdade, poderia ouvi-lo o resto do dia sem que notasse passar um único minuto.

    Depois de um tempo a minha avó apareceu, trocou duas ou três palavras com o velho e fomos embora. Ele me entregou também as outras rosas antes de levantar e seguiu naquele andar lento e curvo para os fundos da casa. As rosas deram o que falar, decoraram a cômoda da sala intactas por semanas. São lembradas até hoje quando reunimos a família e relembramos as aventuras da infância. A Maria José acha que elas tinham algum feitiço mal explicado. Eu nunca levei essa história a sério. E até hoje não sei porque fomos à casa da benzedeira naquele sábado.

    Encontrei o velho ainda duas vezes. Num fim de tarde nos cumprimentamos aos risos como amigos, causando surpresa à minha mãe, que me apertou a mão. Ao que parece, também ela estava contaminada pelas falácias sobre o marido da benzedeira. Nosso último encontro foi estranho. Ele caminhava com uma bengala arqueada na rua. Mirava preocupado cada palmo do chão. Tentei conversar, mas fui alvo de grunhidos aborrecidos. E seguiu naquele passo, sem erguer os olhos, pegando a estradinha que levava à sua casa.

    Há trinta anos o velho me contou a teoria da verruga e, desde então, encontrei apenas outras duas pessoas que também a conheciam. O primeiro foi um simpático senhor com quem dividi quarto no hospital. Tivemos longas conversas sobre a vida durante os três dias em que fiquei internado e, de certa forma, senti saudades do velho e um doloroso remorso por não ter aproveitado mais os meus avós. Tive alta e jamais tornei a vê-lo. O segundo foi um bêbado na rodoviária. Chegou quieto e sentou no chão,
    achei que pediria dinheiro para outra dose, mas puxou conversa num tom filosófico e, sem mais nem menos, chegou na teoria da verruga. Atendi rapidamente o celular e quando desliguei ele não estava mais lá. O ônibus apontou, subi no primeiro degrau e ainda conferi o entorno uma última vez, sabendo que não o veria de novo.

    O curioso é que nas duas ocasiões, quando tive alta do hospital e quando assisti o bêbado filosofar na rodoviária, sonhei com o velho me entregando as rosas. Não posso garantir que exista alguma ligação entre a teoria da verruga, as rosas negras e o velho. Também não posso garantir que haja alguma veracidade na teoria. O fato é que, às vezes, as coincidências da vida aparecem assim, nessas idas e vindas, como se o tempo não passasse, como se pudéssemos voltar a um sábado cinzento de trinta anos atrás e lembrar de tudo, como se fosse ontem, como se qualquer suspiro se desse por um desdobramento daquele instante, daquela conversa despretensiosa entre uma criança e um velho, erigida com medos e narrativas, rosas e teorias.

  • Ataques de pitbulls

    Incidentes envolvendo pitbulls têm provocado comoção nacional e acirrado debates nas redes, nos porcões pets e até no Congresso. As vítimas — algumas fatais — incluem desde crianças de colo a idosos e, em alguns casos, os próprios donos. O episódio mais recente aconteceu na Cidade Ocidental, em Goiás. Stefane Xavier da Silva, 31 anos, foi atacada e morta pelo próprio cão dentro de casa. Segundo a Polícia Civil, ela estava acompanhada da esposa e do filho de apenas quatro meses.

    Outro caso emblemático, que simbolizou o auge da preocupação, foi o da escritora Roseana Murray, de 73 anos. Ela caminhava em Saquarema (RJ) quando foi brutalmente atacada por três pitbulls. Perdeu o braço direito e teve ferimentos graves, mas sobreviveu graças a um atendimento intensivo.

    Uma escalada de ataques

    Em São Lourenço da Mata (PE), um bebê de três meses morreu após um pitbull invadir a casa da cuidadora e atacá-lo no colo da babá. Em Ribeirão Pires (SP), um pedreiro de 52 anos foi morto pelo cão da casa onde trabalhava. Dias antes, em São Paulo, duas crianças de 11 e 12 anos ficaram feridas ao serem surpreendidas por pitbulls em um parquinho público.

    Os dados preocupam

    Segundo o Ministério da Saúde, 53 pessoas morreram em 2023 vítimas de ataques de cães — um aumento de 33% em relação a 2022. Entre 2021 e 2023, foram 126 mortes registradas. No mesmo ano, 1.430 pessoas precisaram de atendimento médico após ataques. É o maior número em décadas.

    Embora qualquer cão possa morder, a raça pitbull aparece com frequência nos casos mais graves. Em 2024, 13 ataques envolvendo pitbulls resultaram em seis mortes, segundo levantamento da CNN. Só no estado de São Paulo, a maioria das fatalidades em 2023 envolveu raças consideradas de grande porte e força.

    Entre leis, focinheiras e polêmicas

    Diante do cenário, alguns estados impuseram regras mais rígidas. No Rio de Janeiro, pitbulls, filas, dobermans e rottweilers são classificados como “animais ferozes”. Eles só podem circular em locais públicos com focinheira, guia curta e sob condução de um adulto. O descumprimento pode resultar em multa, apreensão do animal e até perda da guarda.

    São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Minas Gerais seguem caminhos semelhantes, exigindo uso de equipamentos de segurança e penalizando condutas negligentes.

    No plano federal, o Projeto de Lei 1265/2024, apelidado de “Lei Murray”, propõe proibir a criação, comercialização e importação de pitbulls no Brasil. Também sugere a castração obrigatória dos exemplares já existentes.

    Para o autor do projeto, deputado Gilberto Nascimento (PSD-SP), é preciso impedir a “proliferação de sub-raças com genes de violência”. A afirmação, polêmica, encontra apoio em parte da opinião pública, especialmente após tragédias com crianças.

    O verdadeiro foco: responsabilidade

    Não se trata de julgar uma raça. O pitbull — já injustamente estigmatizado — não é, por natureza, o vilão. O alerta vai além: é sobre a responsabilidade de quem convive com cães de grande porte e potência. A adoção desses cães não pode se basear apenas em boa intenção ou no impulso de “resgatar”. É preciso preparo. Regras claras. Compromisso diário com a educação do animal.

    Talvez seja a hora de pensar em algo semelhante a uma habilitação, um processo que avalie se o humano tem estrutura emocional, rotina estável e entendimento suficiente para lidar com cães dessa natureza.

    Cães não nascem perigosos

    O comportamento agressivo não vem da raça, mas do ambiente e da forma como o cão é conduzido. Cães que crescem em meio ao desequilíbrio aprendem a se defender com os recursos que têm — e, às vezes, atacam. Por isso, mais do que leis, precisamos de consciência. Mais do que amar, precisamos observar, compreender e educar com responsabilidade.

    Há ainda os que adotam cães potentes como quem escolhe um carro de luxo: para chamar atenção. Confundem força com status, e afeto com aplauso. É a vaidade disfarçada de carinho — o cão vira vitrine, não companhia. Mas um animal não é troféu nem extensão do ego. Quem se exibe com um cão forte, mas ignora suas necessidades básicas, brinca de roleta russa com a segurança alheia. Amar um cão não é colocá-lo numa selfie; é sustentá-lo na correria do dia a dia, no silêncio dos treinos, na coerência dos limites É pedir ajuda, se for necessário. Vaidade, nesse caso, é imprudência com coleira de grife.

    E, como dizemos no Treinamento Invisível: “Treinar um cão é fácil, mas antes de tudo, é preciso transformar a si mesmo.”

  • O azul e a lágrima

    A manhã estava calma. Calma como um gato se espreguiçando.

    Tinha combinado de almoçar com um amigo, ali pros lados do Mercado Central. Um passeio tipicamente mineiro: caminhar pelo centro sem pressa, sem carros, sem aquela multidão apressada. Nem buzinas, nem o relógio invisível cobrando compromissos. Conversávamos sobre música, livros e algumas bobagens que fazem bem. Uma moça gritou:

    — Gente, olha ali! O que é aquilo, meu Deus?

    Na esquina da Augusto de Lima com a São Paulo, dois moleques batiam num velho. Tentavam arrancar algo dele. O homem reagia como podia. Dava uns sopapos, levava outros.

    A cena corria diante dos olhos da cidade. O povo assistia. Comentava. Protestava — só com a boca. Braços e pernas, não. Esses estavam mudos. Uma moça gritou:

    — Eu filmei tudo! A polícia vai pegar! Tá tudo aqui!

    Até que um homem, forte e corajoso, entrou no meio. Encarou os pivetes. Eles correram. Sumiram como ratos quando a luz acende.

    A tristeza embaçou minhas vistas. A manhã perdeu o brilho. O sol, as árvores, os pássaros — tudo parecia cenário falso.

    Que cidade é essa que assiste calada um velho apanhar? A paisagem virou ruína.

    O homem forte correu atrás dos garotos. Não sei no que deu.

    Fui almoçar com meu amigo. Porque, mesmo triste, a gente almoça. Conversa. Toca a vida.

    Ficou só uma prece, em forma de crônica:

    Alguém, por favor, olhe para esta cidade.

  • Poema #19 – CAMADAS DE ÁGUA

    .

    “o peixe sabe de tudo e nada”
    autoria desconhecida, século XIII

    tenho dois meses
    para morrer
    o ódio
    me circunscreve
    como camadas
    de água que vem
    inundando tudo,
    desde as primeiras células
    aos últimos fios de cabelo
    e são águas salobras, escuras
    de quando faço a descida
    da ponte para beber
    desta água, o líquido, mas ai,
    tem gosto de peixes putrefatos
    peixes analógicos e peixes digitais.

    “São voltas da vida, voltas da vida”,
    como dizia o enfermo Valdemar
    em seu leito de morte e honradez.

    lembro de ser abominado pelo meu próprio sangue,
    por ser alcoolizado e desistente (“mas eu não sei
    por que me sinto assim, vem de repente
    um anjo triste perto de mim”). Ah, que merda!
    e algumas e diversas era esse o meu mote
    para a distração em histórias em quadrinhos
    e as primeiras letras e composições em cadernos.

    sessenta anos, soa o sino em meu tímpano.

    meu prazo e o peso desta incongruência
    dobra-me o pé direito na sandália surrada
    “Casa da Eternidade”, que em hebraico se escreve,
    bet kevarot, mas já não sou digno de cheirar o ar,
    a água límpida, o pensamento puro, inoxidável.

    deverei ficar circunscrito a este cemitério de angu,
    atolado até os joelhos junto com as fezes dos porcos
    que se procuravam alimentar para o sacrifício final,
    num circo fúnebre onde seriam então recheados
    com “pêlo de gato, pêlo de um aleijado, chocalho
    de cascavel, pés de rã, orelhas de sapo, dentes
    de cão e garras de coelho”, para o cardápio da
    criança ingênua pensando que ao sair da escola, ah,

    e ele pensava, defeituoso e ingênuo das Gerais
    “chegando em casa vou pegar uma jantinha”.
    o controle 44 era uma tecla onde soava uma música
    em todos os dias (July 28th) e era singela como as
    lembranças que não puderam ser nesta (sic) encarnação:
    “lembrei de nós, do que ficou, se ficou não vai ter final”.

    mas antes há de vir o controle 72, do aniquilamento,
    da vida quando se torna um fardo pestilento, e eu bato
    a cabeça no travesseiro como uma lagartixa inútil, de olhos
    arregalados e o estômago e o cérebro entupido de remédios
    num quadro consolidado e sem volta, assim como do meu pai.

    “São voltas da vida, voltas da vida”,
    como dizia o enfermo Valdemar
    em seu leito de morte e honradez.

    queria ter a grandeza e a percepção da vida num leito de hospital
    para morrer fazendo este balanço isento de que tudo. “são voltas da vida,
    voltas da vida”, e no dia seguinte o Sr. Valdemar já não acordava mais.
    que venha esta noite, em mim também, ó morte, como num plenilúnio
    será que, depois disso, a vida deixará de dar as suas voltas? acho que não.
    o que eu tenho hoje são resíduos, resquícios de ressaca e sequelas
    “sofrendo com as calças e tudo” como o parente eunuco já dizia,

    e o que quer que isso tenha significado para ele de pés em perpendicular.
    durante toda aquela noite de veneno e cobra eu implorava o advento da morte
    para, ao menos, dentro dos dois meses subsequentes, eu pudesse acordar,
    invariavelmente menor, com um resto de vida e uns versos de circunstância
    como esses de agora e me faço então um urso plausível, criando forças para criar
    em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando no braço
    como fosse me virar do avesso, o que faz com que a minha cabeça não consiga
    pensar mais e eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura contábil.

    “A Solidão Clandestina” foi demais e única companhia, amigo, falecido antes de mim.
    “O Himalaia de um Vaso” era alto demais para eu escalar, falecido conterrâneo, e então
    eu caía de borco com a cara no meio do barro, palhaço, cheio de livros e dentes partidos.

    Se ao menos eu tivesse tido, o quanto antes, a droga de um buril e punhais amolados.

    Da Essencialidade da Água

  • Lambuza-te da tua fatia de tempo

    Uma casualidade remeteria um leitor comum a uma pizzaria. Embasbacar-se-ia, pois, com o sentido literalmente delicioso de uma plaquinha assim, despretensiosa assim, alocada aleatória ou propositalmente junto a três relógios de paredes com o mesmo design, mesmo compasso, horários diferentes. “Lambuza-te ou te devoro”, é a moral da história – e uma citação que pretendo patentear, de tão boa que ficou [fique à vontade para citar, mas já faz um pix! 🙂 ]

    A história, que não é estória, refere-se a todo mundo. Todos os seres, todos os movimentos precisos de ponteiros desalinhados. A vida escorre por entre os dedos. É preciso lambuzarmo-nos, sem o tal do medo de ser feliz.

    Felicidade. Sentimento inquieto e por vezes [desa]brochante, viajante de nós, quando queremos a ela nos agarrar num abraço bem dado e eterno; tal qual uma intrigante corriola, flor azul do alvorecer, argyreia nervosa, flor de campana ou glória da manhã, cinco nomenclaturas para a espécie “ipomoea”, que desabrocha no anonimato das beiras de estradas… um gargalo de uma bexiga que já foi preenchida com o ar de pulmões sadios, que já conheceu a plenitude de se sentir completa e, por um triz pffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
    ffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
    ffffffffffffffffffffffff!

    murchou.

    Acordar entre os cantos e as foligens, adufes e pandeiros transviados, vistas semisserradas que saboreiam a preguiça da manhã pós-carnavalesca em cinzas; dia útil, e não; corpo ressequido de um tépido entremeio, exaurido e extasiado a indagar as horas – preguiça em se esticar na busca inevitável do celular- e o tempo, que ressoa por entre a transparência opaca do sutil tecido das cortinas.

    Carnaval, carne ao aval social. Retumbam canções com tan-tan-tan-tans que deixam fluir a vida. A felicidade deveria ser encapsulada, posta como pingente em um cordão junto ao coração, por dentro da camisa. Ao alcance. Nem precisaria ser aberta, por estar coladinha, assim, na ideia de estar aqui.

    Apegos e desapegos; safra nova de uma safra primeira. Primeiro, aprendemos o funcionamento do mundo. A escola serve para isso, as matérias, as séries e as provas. Então, ao conhecer vem a liberdade; mudamos. Afronta seria não nos transformarmos. Conhecer as coisas empodera as coisas, e nós. Um suposto erro ortográfico pode ser a concepção criativa – e intencional – de uma definição que ainda não foi definida. Troca-se uma letra e um erro é instantaneamente evidenciado em vermelho por uma
    tecnologia de análises de ponta. Enganei você, máquina! Acho, assim, que a revolução tecnológica está em um outro percurso que o meu, enfim; não vislumbro pois a extinção da minha espécie, modifiquei meu próprio caminho com as ferramentas que tenho em mim, o saber. Desvairadamente, assim, lambuzo-me do que enxergo, das minhas lentes-bagagem. Me mimetizo à paisagem urbanizada. Teletransporto-me ao som de uma cuica à segurança analógica de mim mesma, tão evoluída em ser desvairada.

    O mundo é dos loucos, afinal.
    Das glórias matinais, anônimas, sem eira
    bem beira.
    Da felicidade (des)encapsulada.

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