Crônicas

  • Sobre o Beijo

    O beijo é o selo da paixão. Não se concebe sem ele o encontro de duas pessoas que se desejam. Hollywood, em suas produções românticas, consagrou-o como uma marca de final feliz. Para os casais apaixonados, ele é o prólogo de outras entregas. Daí o seu fascínio.

    Nelson Rodrigues escreveu que é com o primeiro beijo que se perde a virgindade. Faz sentido. Quem beija tem a posse não apenas física, como também espiritual, do outro. Ele é uma permuta de haustos que se irradiam a outras esferas do corpo e tocam o espírito. Tanto é assim que as profissionais do sexo não beijam nem se permitem beijar. Quando gostam de alguém, então, esse possível gesto do cliente lhes soa como uma ofensa.  

    Há beijos e beijos, claro. Os pudicos, que envolvem apenas o roçar dos lábios; os de língua, próprios dos apaixonados (esses dão água na boca); e os osculares, que parecem mais um tributo do que uma troca sensual.

    Segundo os especialistas, existem técnicas para se beijar bem. Os lábios não podem estar nem cerrados nem muito abertos. No primeiro caso, a crispação pode sugerir que a pessoa não está receptiva ao ato e levar o parceiro a desistir. Às vezes essa impressão é ilusória, como se vê no beijo que Capitu deu em Bentinho; o abrochar dos lábios dela atiça o desejo do ex-seminarista. Já o segundo caso dá a entender que o beijador não passa de um guloso sem estilo. É preciso certo refinamento para não tirar do beijo a estética, um dos seus atributos mais apreciados.    

    Tudo que é bom tem seus detratores, e o beijo não escapa a essa regra cruel. Li que, durante ele, os parceiros destinam um ao outro parte da “microbiota” de suas línguas. Fui pesquisar essa palavra esquisita e descobri que ela designa a flora e a fauna de uma região. É isso, amigos, nossa língua é literalmente suja e parte dessa sujeira se transporta à saliva do parceiro quando um casal se beija. Para se ter uma ideia, num beijo apaixonado de 10 segundos ocorre a troca de 80 milhões de bactérias. Que dizer então daqueles que, pelo gosto dos apaixonados, deveriam durar uma eternidade?

    É claro que isso não irá demovê-los da prática de um ato que lhes confirma a paixão e abre a rota de outros profundos e fecundos prazeres. É bom que isso ocorra. Ver um casal de adolescentes se beijando num parque, numa praça ou mesmo “no escurinho do cinema” (como era bom!) nos ajuda a ter fé no amanhã. Nos faz pensar na continuidade da raça, hoje tão comprometida pelos genocidas e fanáticos que parecem querer destruí-la.

  • Sempre é tempo de refletir!

    Em visita à antiga capital mineira, Vila Rica, descobri que a história conta suas verdades com sangue e dor, mesmo que o fruto tenha sido dourado.

    Hoje a cidade se chama Ouro Preto, cujo nome teve origem porque uma camada preta de minério de ferro cobria o ouro brilhante, e ao ser fundido, o ferro deixava à mostra o que tinha mais valor.

    O Negro mais famoso da região, veio do Congo, era o Rei Galanga Muzinga, se tornou o escravo mais caro e disputado pelo senhorio da região, para extrair ouro nas minas e comandar seus trabalhadores marcados a ferro. 

    Em Vila Rica ele virou Chico Rei, o homem que ganhou dinheiro para se auto alforriar, e trabalhou com muitos outros para fazer o mesmo, ajudando a todos para que tivessem novas vidas, livres das amarras da escravidão, do chicote, da fome e do senhorio, que os tomaram de suas terras e famílias.

    Em 6 de janeiro de 1747, Chico e todos alforriados comemoraram suas liberdades na Igreja Nossa Senhora do Rosário.

    Mais tarde ele construiu uma capela em homenagem à Santa Efigênia(negra), que foi pintada por muitos artistas por longos anos.

     Chico foi coroado Rei junto a seu povo, num grande evento que se tornou anual na ocasião da festa da Senhora do Rosário.

    Outro Negro famoso naquela região, por seu talento como escultor, era filho de um Português branco, Manuel Francisco Lisboa, com a negra Isabel. 

    Raramente os Portugueses reconheciam os filhos que vinham de sua relação com as indígenas ou as negras, mas Aleijadinho foi exceção e deixou seu legado esculpido como decoração nas ruas de Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Sabará e Congonhas do Campo.

    A vida imita a arte, e constrói caminhos pra que nossos descendentes desfrutem do prazer de uma existência livre de ausências e dores, rica em esperança e possibilidades, com direito a usufruir de seus sonhos, mesmo com as mãos calejadas de dor, num corpo farto em talento.

    Outro negro alto e forte, o carrasco da época, pediu perdão a um certo alferes antes de enforcá-lo. Esse momento culminou com o fim do filho de Ouro Preto, que se tornou um dos mais populares inconfidentes.

     Joaquim José da Silva Xavier, que aprendeu o ofício de arrancar dentes com seu padrinho, por isso recebeu o apelido de Tiradentes. 

    Sempre é tempo de refletir sobre o que passou por nós, como chegamos aqui, e o que nos espera. 

    Se a renovação é o que desejamos, que sejam fartos os momentos, para que a história de muitos tenha válido a pena ter sido vivida.

  • Do outro lado da rua

    Havia um motorhome do outro lado da rua. Foi na terça-feira. Quando abriu a janela do quarto, logo às seis da manhã, ainda antes de fazer o café e tirar o pijama, o avistou ali, como se tivesse passado a noite naquele tranquilo e pacato lugar. Uma certa névoa o revestia, o dia ainda era uma penumbra, esfregou os olhos instintivamente, buscando entender se aquela imagem não era o resquício tardio de um sonho indigesto. O motorhome estava lá, de fato. Portas e cortinas fechadas. Bem na frente da sua janela, encobrindo o belo jardim do vizinho que sempre alegrava as suas manhãs solitárias.

    O café havia acabado. Teve de fazer um chá de camomila, preparado às pressas, com pouco açúcar. O chá lhe traz à lembrança o velho Doutor Ignácio, responsável pelo orfanato onde cresceu. Ele afirmava ter nome de santo: IGnácio de Loyola! Com ênfase no G. Invocava-o toda vez que pedia atenção: por IGnácio de Loyolaaa isso, por IGnácio de Loyolaaa aquilo, inclusive quando aplicava corretivos naqueles frangos fracos e frívolos. Também tinha o hábito de sequenciar palavras com as mesmas iniciais, sobretudo quando tremia o queixo nos acesos de raiva. Doutor IGnácio de Loyola tomava chás de camomila bem açucarados todos os dias. Para relaxar os nervos, ele dizia, muito chá de camomila. Nas mãos havia marcas dos inúmeros processos educativos pelos quais teve de passar. Outros tempos, enfim.

    Em uma incursão suicida, um grupo, do qual não fez parte, conseguiu invadir o quarto do Doutor IGnácio de Loyola. Ali descobriram que, na verdade, se chamava Inácio (sem G) Mariano Ramos. Descobriram também que não era doutor nem coisa alguma, pois fora expulso do Seminário ao se declarar apaixonado pelo clérigo, Diretor Geral da instituição. A sua única afinidade com um santo era o nome. Ou nem isso, aliás. Muitos não acreditaram nesse detalhe porque se baseava numa suposta notícia achada nos diários do Doutor IGnácio de Loyola.

    Por fim, acabou virando IGnácio de Loyola: o santo do paulouco. Os garotos não perdoavam. Coisa da idade, talvez. O orfanato se tornou um verdadeiro tormento, a cada pouco se ouvia algum interno gritar – O santo do paulouco! –, para desespero do Doutor IGnácio de Loyola, que pedia mais um e mais outro chá de camomila para relaxar os nervos, para relaxar os nervos. Outros tempos, com muito açúcar, outros tempos.

    Não importa que fim levou. O Doutor IGnácio de Loyola, com G grande, o santo do paulouco, que gostava dum chá de camomila açucarado e que deixou marcas nas mãos dos meninos do orfanato. Outros tempos, por IGnácio de Loyola, outros tempos. Hoje são todos adultos. Nunca mais encontrou os antigos colegas. Mudou-se para longe, começou uma nova vida e nela seguiu com angústias e alegrias, como qualquer um.

    Lembrava do tal Doutor ao cair da noite, quando voltava do mercado, para onde foi logo após o trabalho, trazendo na sacola um café fresco. O motorhome ainda estava lá. No mesmo lugar. E até a névoa parecia ter voltado. A casa do vizinho continuava fechada. Traumas são sempre traumas, no fim das contas. Jamais se animou a ler os livros do Ignácio de Loyola Brandão só por conta de sua graça. Ainda que fossem pessoas distintas e, importa dizer, com nomes diferentes, pois aquele se chamava Inácio Mariano Ramos. Do autor, enfim, nunca leu um resumo, nem mesmo uma orelha de livro. Suas orações também desviavam do santo homônimo, com o devido respeito. Aos poucos foi se aproximando de São Drogo, afinal, o santo de sua preferência.

    Na manhã seguinte, repetiu o gesto ao abrir a janela e o motorhome continuava lá. Isso seguiu por mais alguns dias. O vizinho, no entanto, deixou de aparecer. Não o via saindo ou chegando, abrindo ou fechando as janelas e portas. Tudo ali parecia um bocado escuro e sem vida. Foi na terça-feira que algo ocorreu. Ao abrir a janela, logo às seis da manhã, ainda antes de fazer o café e tirar o pijama, o avistou ali, como se tivesse passado a noite naquele tranquilo e pacato lugar. Uma certa névoa o revestia, o dia ainda era uma penumbra, esfregou os olhos instintivamente, buscando entender se aquela imagem não era o resquício tardio de um sonho indigesto. O motorhome continuava lá, de fato. Mas dessa vez a sua janela estava aberta, escorado no volante, mirando-o inclinado, sem se virar completamente. Parecia ter esperado aquela troca de olhares uma vida toda. Os segundos eternos e agonizantes, inertes e desesperados. Virou-se devagar, deu partida no motor e saiu, deixando para trás um jardim escuro, repleto de flores secas e a casa do vizinho, em chamas.

  • Guizos, cafés e indelével tinta da vida na pele: dia das mães

    2024 revolucionou a minha forma de encarar a vida.
    O Dia das Mães de 2024, para ser mais precisa.

    Todos os preparativos — que já eram esperados — estavam engatilhados: as tradicionais flores do campo que o Rodrigo já aguardava o “alô” do papai (sempre reservando umas últimas borboletas decorativas que eles já nem colocam mais, mas têm sempre uma para pôr nos bouquets que são para a minha mãe); presentes- surpresa; a chegada à casa da mamãe com um “eu te amo, mamãe, eu te amo mesmo! Feliz Dia das Mães, parabéns!!” — com direito às vozes infantis minha e da minha irmã, eternizadas num porta-retratos pequenino que gravava uma mensagem de áudio de 10 segundos (achadinhos maravilhosos, no melhor estilo do meu pai de presentear quem ele amava); os cartões que são sempre esperados…

    Só que a madrugada me passou apertada no peito.
    Chorei, rezei e não dormi quase nada. Estava preocupada.

    Às 7h, minha mãe me liga com a voz pesada:
    — Temos que levar seu pai ao hospital.

    O coração engasgado na garganta. A confusão de chegar e vê-lo fraquinho, sem ar, quase não conseguindo falar — mas ainda assim, sem dispensar um sofrido “oi, filha… tá tudo bem… tudo bem…”.

    Pegar remédio. Vê-lo lutando com todas as esperanças. Correr atrás da ambulância. Ir colada nela, furando sinais de trânsito. Estar de pé quando os enfermeiros abriram as portas. Sorrir para ele e acenar. Ver o olhar brilhante de vida ali, paradinho, mas me olhando.

    Fizemos o percurso derradeiro: de cadeira de rodas, jogando beijos e dizendo com palavras quase sussurradas — para que ele fizesse a leitura labial —, entre um sorriso de dentro da alma: “Eu te amo, pai.”

    E então, esperar. Até restar o corredor. Somente o corredor, na minha retina, depois que os enfermeiros correram com ele para a UTI.

    Minha irmã vinha do Rio com o namorado e a Summer (minha afilhada de quatro patas). Não sabia que já estávamos no hospital. Dali, os enfermeiros nos informam: ele não sai mais.

    Liguei para avisá-la. Mamãe, preocupada em como ela viria pelas estradas: — Venham em segurança e com calma. Mas estamos aqui, ah, Bubu…

    Zeca, meu filho de quatro patas — e irmão de sangue da Summer —, ficou na minha casa.

    Minha irmã chegou duas horas depois. Eu a recebi na porta de vidro da recepção do hospital, que estava em obras. Entramos abraçadas. Já nos esperavam. Mamãe estava aos soluços.

    Nos deram um último momento com ele no CTI.
    Mas ele já não nos responderia.

    Meu pai saiu de casa com 20 de saturação, depois de ter passado toda a madrugada com dificuldade de respirar, preocupado em estragar o Dia das Mães da minha mãe. Ficaram os dois conversando. Mamãe tentando acalmá-lo, ajudá-lo a respirar melhor. Eu, involuntariamente e sem saber, tentando mandar a minha respiração para ele.

    Nos envolveram em todos os plásticos protocolares de segurança e adentramos a unidade intensiva. Intubadinho. Meu pai.

    Eu, minha irmã e minha mãe choramos. Fizemos carinho. Minha irmã segurava uma das mãos. Minha mãe tentava abraçá-lo de todos os jeitos.

    Eu acariciava a pele sob o lençol, onde dava.
    Todos juntos no Dia das Mães — fisicamente, pela última vez.

    Ele apertou levemente a mão da minha irmã. Ainda teve força para essa despedida. E quando ela nos contou, surpresa, uma última lágrima verteu do olho direito do meu pai.

    Tivemos de sair.
    Minha mãe pediu para ficar mais um pouco. Aguardou para voltar.

    Minha irmã levou a Summer para almoçar e ia pegar o Zeca para fazer o mesmo. No caminho, pedi que buscasse o bouquet.

    Foi minha irmã chegar à casa dos meus pais, a oncologista tentar transferi-lo para um quarto — para que pudéssemos ficar com ele até o último segundo — e ele se foi.

    O sol estava lá.
    O frio estava lá.
    E papai, já não mais.

    Mas ele não deixou de estar conosco no Dia das Mães. – E também não deixou de estar com a vovó, como madrugada todo ano para vê-la e voltar para o nosso café da manhã.

    Nunca mais essa festividade vai ser a mesma.
    Mesmo que só complete um ano amanhã, segunda-feira, dia 12, o segundo domingo do mês vai ser sempre um lugar de saudades ainda maiores.
    E de mais motivo para se comemorar a vida.

    A minha família de quatro pessoas e doze patas (a Mia se foi oito meses antes, com a mesma metástase do papai, descoberta já no fim) é o melhor modelo de amor que eu conheço. E sou muito honrada de fazer parte disso.

    De ter crescido envolta em magia, graças — principalmente — ao papai. Ele sempre acendeu nosso lado lúdico, nosso acreditar. Nosso não desistir.

    Um Natal desses, entre os presentes e os cartões-surpresa que o Papai Noel ainda deixava escondidos, papai deu a mim e à minha irmã duas caixinhas de joias. Dentro de cada pequeno invólucro aveludado: um guizo para cada uma. Para que nossas crianças interiores nunca deixassem de acreditar.

    O mundo é um lugar melhor porque o meu pai existiu.
    O mundo é um lugar melhor porque a minha mãe e o meu pai existem, e se fizeram eternos em mim, na minha irmã, e nos filhos de sangue que — quem sabe — ainda iremos ter.

    Nesta semana, eu e minha mãe tatuamos em nossos braços uma homenagem a ele.

    As iniciais dos dois, os anos que concentram os 44 anos de amor recíproco e inspirador dos meus pais, eternamente no punho esquerdo da minha mãe.

    Em meu braço direito, em tons verdes, sombreados e delineados em preto, dois ramos de folhas de café — o que a minha família mais ama, e que simboliza todos os nossos momentos juntos.

    Ao invés de grãos dessa maravilha líquida e fumegante: guizos.

    Meu pai vive em mim.
    Eu sou ele.
    Minha irmã é ele.
    50% em mim e nela. (Pela matemática, quando estamos juntas, ele está aqui, 100%).
    Mamãe é ele.
    Ele somos todas nós.

    O Dia das Mães de 2025 vai ser nós quatro ao redor da mesa.
    Quatro lugares à mesa.
    As flores.
    Oito patas pelos cantos da casa.
    Três corpos físicos.

    Minha mãe, por ser ele — o amor faz disso, transforma um no outro, sem que ambos se deem conta —, agora é mãe e pai.

    Feliz seu dia, mamãe querida.
    Eu te amo infinitamente.

  • Posto, logo existo

    Recentemente, assisti à peça O Figurante, com Mateus Solano, e saí do teatro com uma pergunta martelando: somos protagonistas ou apenas figurantes da nossa própria história?

    No monólogo, Solano interpreta um figurante profissional — alguém que sonha em viver um personagem com voz, rosto, presença… mas nunca sai do fundo da cena. Invisível.

    Esse teatro me fez pensar na vida real. Quantos de nós nos sentimos assim?

    Com as redes sociais, surgiu um novo tipo de invisibilidade. Há os que estão dentro da rede e os que permanecem fora, invisíveis ao mundo cibernético.

    Para fazer parte desse universo virtual, criamos versões idealizadas de nós mesmos, guiadas por um roteiro imaginário em que sempre somos bem-sucedidos, felizes, viajando, cercados de pessoas e conquistas — tudo para postar, compartilhar, viralizar e, assim, escapar do anonimato. É como se só existíssemos se postarmos algo. “Posto, logo existo.”

    Nos espelhamos em influencers, novos “semideuses digitais”, e vamos nos afastando de quem realmente somos.

    Fica a reflexão deixada por Solano na peça: “Na ânsia de fazer parte desse mundo, acabamos por nos afastar de nós mesmos a ponto de não saber se somos protagonistas ou figurantes de nossa própria história.”

    Já pensou nisso?

  • Uma história de mistério

    Ouve o ruído dentro da noite espessa e se levanta, salta da cama e faz um pedido para si. Não quer encontrar o que quer que seja. Não é nada, um barulho qualquer. É noite e o chão está frio, os pés, o corredor, as mãos… tudo solto no escuro.

    O ruído é baço… não há… ou há ? O quê? O que foi isso? Por que escutar o que não interessa? O coração, aos pulos, impulsiona sangue às veias. Ouve o ruído que aumenta e acelera também como ele… só ele.

    O que foi isso?

    Ouve o ruído e caminha em passos lentos ou trêmulos ou débeis. Por que escutar o que não interessa? Um sono calmo e bom. A camisola é fria como o chão, as mãos e a noite. O corpo quer e não quer avançar no desconhecido.

    Ouve o ruído mais forte e, num impulso, abre a janela e o vento fresco toma-lhe as pernas, a cintura, a espinha o pescoço… um grito.

    Um gato malhado arranha a porta. Alívio. O corpo está relaxado como a rua que vê: nada, nada.

    Deserta a rua, um pinheiro que balança, outras casas.

    Fecha a janela e não ouve mais o gato malhado que arranha a porta e pede comida. Sobe para o quarto e desarma-se num sono puro. Da janela de cima, o vento entra como embaixo, a acariciar lhe os pés, a tomar-lhe a cintura com força.

    Ouve o ruído novamente e novamente salta da cama , agora confiante, o chão está quente, morno. Num instante abre outra vez a janela e espanta o gato. Agora pode dormir.

    Mas.

    Ao ouvir pela terceira vez o barulho, o ruído, o som perturbador, ela não tem calma, corre para a cozinha e pega uma faca, avança para a porta de entrada e, ao abri-la, acerta um golpe no braço de um rapaz moreno, franzino e inocente.

    Acorda suada com a janela aberta e a sirene da polícia a entrar-lhe nos ouvidos. A noite está calma. A televisão é o único ruído da casa, um comercial de alimentos para gatos: Flakya delícia para o seu gato!

    Desesperada, desce para a sala, acende todas as luzes a abre a porta de entrada – não há nada.

    O gato malhado a olha sem entender e ela fecha a janela para subir ao quarto e dormir. Não há mais barulho…

    Tudo é sono.

  • Para quem é colo, amparo e parceria

    Domingo é o Dia das Mães. Por mais que saibamos a influência do comércio na criação e manutenção da data, seguimos envolvidos na programação do evento: o que dar de presente, o que escrever no cartão? Flores? Onde será o almoço? Qual vai ser o menu?

    Embora a mídia queira nos convencer de que tudo é lindo, sabemos que, para muitos, esse dia vem embrulhado de vazios, lembranças e saudades. Para outros, tristeza, mágoa ou rancor. De um jeito ou de outro, somos atravessados por esse calendário socioafetivo. Não é possível passar ileso ou distraído. Somos convocados a lidar com nossos afetos.

    Tem quem prefira esvaziar a importância do evento, argumentando: Dia das Mães é todo dia. Em parte, concordo. Mas não vejo problema em escolhermos uma data certinha para focarmos, mais atentamente, nos mimos de amor.

    Creio ser uma ótima opção para resgatarmos abraços que se perderam na correria dos dias, olhares que não se cruzaram tempo suficiente para trocarem sorrisos, frases esquecidas no “depois eu te falo”. A eleição de um momento específico de celebração não nos impede de desafiar a urgência da vida para demonstrar o amor que sentimos.

    Sempre é tempo de cantar o que vibra em nós.

    O Dia das Mães é domingo, mas hoje quando meu filho me surpreendeu com um pão com ovo e café feito por ele, para meu lanche da tarde, senti o conforto inestimável de ser amada nos detalhes do cotidiano. Mas adoro a ideia de que domingo tem mais!

    Que possamos todos nos apropriar desse dia para dedicar atenção e carinho àqueles que são colo, amparo e parceria em nossas vidas, independente do cargo ou função que ocupem.

    Celebre os seus!

  • As mulheres da nossa vida

    Eu tive avós. Na minha infância, eles eram a autoridade máxima da família. Austeros, respeitados e, por vezes, até temidos. Se filhos e noras já os tratavam assim, imagine nós: aquela penca de irmãos, primos, afilhados e agregados?

    A figura moderna dos avós é bem diferente. São os que mimam os netos, presenteiam em qualquer data, levam ao shopping, pagam terapeutas e se colocam quase como amiguinhos das crianças. Mas esses também já começam a se tornar raridade. Estão, como os antigos, em extinção.

    Ainda bem. Sou avó de dez netos. Sim, quase uma dúzia. Altos ou nem tanto, fofos ou nem tanto, achegados ou apenas educados. Cada um a seu modo. Fazem parte de mim, filhos dos meus filhos.

    Nesse pensar lento e silencioso, no tempo necessário para que as ideias se acomodem, compreendi o que tem me causado certa estranheza: são os ecos das realidades. As dos tempos atuais e as de que me recordo. E elas não pedem comparações, tampouco julgamentos. Apenas ecoam.

    Houve o tempo em que, embora  sem entender, obedecíamos. Porque o que diziam pais, mães, avós, nos dirigiam… Éramos crianças, mas sabíamos que aquelas palavras, o tom da voz, até o silêncio entre as frases, era amor. E um dia fariam sentido.

    O tempo se encarregaria disso. E tudo se tornaria claro em beleza, verdade e permanência daquilo que nos foi ensinado.

    O mesmo não  podemos afirmar sobre as novas gerações. Basta olharmos as redes sociais, onde a procura de aprovação a qualquer custo geram amor e ódios instantâneos.

    O mundo virtual substituiu as conversas e trocas de ideias. Um emoji “vale mais que mil palavras”. As certezas são instantâneas e as verdades absolutas.

    Personalidades construídas sobre alicerces frágeis não se sustentam, pois uma opinião contrária é capaz de provocar revoltas, rupturas ou até a perda do sentido da vida.

    Mas a memória leve de uma risada, de uma presença silenciosa, de um afeto firme e sem alarde sempre há de nos dar  a convicção de sermos pessoas fortes, capazes de enfrentar a vida e mudar de rumo quando necessário, sem nos perder.

    É o Dia das Mães…e escrevi sobre avós, famílias e valores… Sobre aprendizados e escolhas… sobre força e alicerces… sobre amor…

    Será mesmo que não falei das mães?

    Feliz Dia das Mães!

  • Manter viva nossa espécie!

    Sozinhos ou em boa companhia, envelhecemos de qualquer forma, mas por vezes nossas almas clamam tanto, que necessitamos sufocar esse sentimento com uma dor física, que pode ser espetar agulhas abaixo de nossas unhas. 

    Nas línguas derivadas do Latim a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio; em outras palavras: sente-se simpatia por quem sofre, que poderia ser por nós mesmos. 

    Até os insetos criam proteções específicas. No deserto, eles têm espinhos que servem de escudo e local para armazenar água, que a região inóspita exige á sobrevivência. 

    Somente as crianças sofrem por ausência de proteção sem força para se defenderem quando são agredidas de alguma forma. 

    Como ocorreu com uma menina de 10 anos, moradora da cidade de Teresina no Piauí. Ela foi estuprada, ficou grávida, e o filho nasceu. 

    Aos 11 anos ela foi novamente estuprada, e corre na justiça seu direito ao aborto. 

    Um corpo de menina nessa idade não está preparado para uma gestação. Essa criatura de Deus sofre emocionalmente uma carga descomunal, que torna insuportável seu momento de vida. 

    Por vezes se repete o conceito inferior, que sociedades discriminatórias permeiam as relações com as mulheres, com status degradado, como foi na antiga Grécia, onde a homossexualidade era prática comum entre os homens, e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas às funções de mãe, prostituta ou cortesã. 

    Ao final do século XV, milhares de mulheres foram queimadas vivas na fogueira, como efeito da repressão sistemática que durou quatro séculos de “caça as bruxas”

    O conhecimento e abnegação femininas incomodavam a igreja e os poderosos daquela época. Elas foram as curadoras populares, parteiras, e detinham saber próprio que lhes era transmitido de geração em geração. 

    Por isso os tribunais da Inquisição foram cruéis e varreram a Europa torturando e assassinando em massa as pessoas julgadas heréticas ou bruxas. 

    Talvez em nosso universo paralelo, que é a essência do eterno retorno, já se encerraram os ataques ao sexo feminino.

    Hoje as bruxas são uma legião do século XX, que não podem ser queimadas vivas, constroem pela primeira vez no mundo masculino do patriarcado, seus valores virtuosos. 

    Resgatam o prazer, a não competição e a conservação da natureza, nos permitindo manter viva nossa espécie por mais tempo, e assim vingar as bruxinhas da idade média.

  • Viver para Contar

    Chegaram à Rua Joana Angélica com uma mala por cabeça e outra, invisível, cheia de expectativas. Um queria o mar. O outro, o cardápio — pediu antes mesmo do check-in. O terceiro viria do Méier de Uber, com o cronômetro interno calibrado no “se a gente se organizar direitinho, dá tempo”. Hospedaram-se num hostel de nome esotérico e cheiro de maresia, onde gringos debatiam futebol em francês e pediam cerveja como quem reza. Os três queriam morrer de prazer — cada um à sua maneira.

    Na primeira manhã, o anfitrião carioca apareceu de bermuda, chinelo e disposição. Levou os dois pra Ipanema. Um mar tão azul que doía nos olhos. Um sol que cobrava taxa pra sair nas fotos. Corpos esculturais — que Ipanema conhece de vista e de assobio. Entre um tibum e outro, cerveja gelada, espetinho de milho, camarão. O faminto saiu perguntando por tropeiro aos ambulantes. Os amigos riram. O vendedor, com paciência beneditina, ofereceu mate, Globo, pastel de camarão e sacolé de caipirinha. Era o que tinha — e era muito.

    Ao longo do fim de semana, o roteiro se repetia: cerveja no bar do hostel, Parque Lage, Mosteiro de São Bento, praia. À noite, mudava o tom — boate em Copa, drinks fluorescentes, drag queens em cena, fumaça nos olhos, Spice Girls na pista, azaração sem CEP. Dormiam um pouco. E de manhã, os dois boêmios puxavam o amigo pra algum passeio: “Vai ter comida, juro.” Cumpriam. Bares na Lapa, cafés na Farme, almoço na Teixeira de Melo.

    Andaram, riram, se perderam no metrô. Dormiam cada dia num horário, comiam o que queriam e quando dava na telha. Na Travessa de Ipanema, segunda-feira de sol, o cronista arrancou um guardanapo da mesa e rabiscou uma frase do Gabo: “Viver para contar.” Decidiu ali que aquilo viraria crônica. Afinal, viveram. E bem.

    O Rio sentiria falta deles. Eles, do Rio.

  • Síndrome do olhar fixo

    Não sei se isso acontece com mais alguém por aí, mas eu tenho um problema sério com o olhar. De verdade. Ao longo do tempo fui notando esse defeito de fábrica — e já começo a achar que é alguma síndrome ainda sem nome, quem sabe coisa pra psicólogo ou até psiquiatra investigar. O fato é que meu olhar tem vida própria. Não me obedece. Tem vontade, impulso, teimosia — um olhar rebelde, desses que a gente tenta segurar, mas ele vai.

    Já tentei de tudo: pisco, viro o rosto, desvio o assunto, invento pensamentos aleatórios… mas quando percebo, lá está ele, firme e forte, mirando justamente aquilo que eu queria evitar.

    Desconfio que tudo começou anos atrás, quando uma sobrinha resolveu tatuar as sobrancelhas. A intenção até pode ter sido boa, mas o resultado… bom, digamos que foi marcante. Acho que rolou um erro da tatuadora — ou então a moça já tinha um talento natural para o mau gosto. O fato é que as sobrancelhas viraram duas taturanas pretas e peludas, saltando da cara feito quem quer dominar o ambiente. Ela era uma criatura miúda, de rosto fininho, mas ninguém via mais nada além das sobrancelhas. Passava, e era só aquilo. Eu, então, fiquei hipnotizada. Nunca mais consegui ouvir uma palavra do que ela dizia. Meu olhar grudou nas taturanas como se elas tivessem me jogado um feitiço indígena com nome de planta do cerrado: marandová.

    Desde esse dia, meu olhar nunca mais foi o mesmo. Passou a se fixar sozinho nas coisas mais aleatórias e esquisitas, como se tivesse gosto pelo constrangimento. Eu faço um esforço danado para controlar, mas ele sempre me trai. Tipo volta do nada, feito boomerang de bruxa.

    O caso mais recente aconteceu outro dia, depois da minha caminhada matinal. Eu vinha tranquila pela calçada, logo atrás de uma moça que andava com o filho. Ela era daquelas mulheres bem resolvidas com o corpo e estava toda produzida: calça justa, salto alto, blusinha discreta. Até aí, tudo bem. O problema? A calça. Uma estampa quadriculada. Sabe dessas com costura bem no meio do bumbum, dividindo o xadrez como se fosse a linha do Equador?

    Pois é. E para piorar: a moça tinha uma coisa curiosa na passada. A cada passo, só o lado direito do quadril se mexia. O esquerdo parecia em greve. Então o quadriculado fazia aquela dança louca: desalinhava e realinhava, desalinhava e realinhava. Tum. Tum. Tum. Cada passo era um show de geometria desconcertante — e eu ali atrás, com o olhar preso naquele movimento hipnótico. Parecia mágica. Ou castigo.

    Eu sei que é uma síndrome. Mas, sinceramente? Se a pessoa tem dissonância de quadril, não deveria usar calça quadriculada.

    Concordam comigo ou estou sozinha nesse olhar amaldiçoado?

  • A vida da gente

    É tão estranha a vida na Terra… Acho que a palavra turbilhão define bem essa aventura que é viver! Emoções, sorrisos, lágrimas, risadas, encontros e desencontros.

    A gente erra e a gente acerta! A gente segue!

    A gente sobe e a gente desce! A gente segue!

    A gente retrocede e a gente avança! A gente segue!

    A gente está sempre seguindo!

    A vida, em seus labirintos e estradas, nos oferece paisagens diversas: árvores de todos os tamanhos, cidades grandes e cidades pequenas, montanhas, sol e chuva, dia quente ou dia frio, rostos e cheiros…

    A vida, em suas prosas e em seus versos, nos dá também desencantos, solidão, amargura e preocupação.

    Mas a verdade mesmo é que, apesar de todos os problemas, a gente quer mais é viver!

    Quer escutar aquela música favorita mil vezes! Quer abraçar os amigos e relembrar histórias! Quer experimentar de novo aquele bolo gostoso da mãe, a conversa sobre o futebol com o pai, as falas e conversas altas ao redor da mesa num almoço de domingo…

    A gente se embola e desenrola!

    A gente escreve, pinta, dança e namora!

    A gente tem fé, acredita e tudo melhora!

    A crônica é a testemunha de toda essa história!

    De tempos em tempos, um cronista desavisado sente a necessidade de capturar a vida em um texto! Mas qual pretensão! Ela, na sua complexidade e ânsia de viver, se esvai, se dissolve, se dilui…

    Entretanto, o cronista insiste e escreve. Congela nesse tempo de escrita um fragmento do viver!

    Nesse fragmento estão sentimentos e sensações que fazem e valem cada segundo nosso!

    É tão estranha a vida na Terra…

  • A Dama e o Vagabundo

    Minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é a que me faz viver (Gilberto Gil, Super-Homem)

    A humanidade vem sendo regida há milhões de anos pelo macho da espécie. Chegou a hora de reconhecer: não deu certo! Como genuíno representante do sexo masculino, declaro peremptoriamente que entrego os pontos. Desisto! Nós, homens, já fizemos burradas suficientes. De minha parte, anuncio que passo o bastão às mulheres a quem humildemente me submeto, elegendo-as para cargos de comando e alçando-as a todas as atividades que envolvam exercício de poder. Pior do que está não vai ficar. Sei que não serei acompanhado por outros da minha estirpe pois conheço bem o tipinho que encarno: viril, orgulhoso, não dá o braço a torcer.

    Tenho um argumento infalível para convencer meus iguais. Já que você, ô marmanjo, não tem brio suficiente para admitir sua incompetência, pense nos seus filhos e netos. Se você os ama, dê-lhes ao menos a oportunidade de terem um futuro nesse mundo em frangalhos que sua gestão infeliz produziu.   

    Não imagino, por exemplo, que alguma mulher faria a insanidade de lançar bombas em cidades, assassinar adversários em massa, promover chacinas e genocídios, cultuar armas e perpetrar outras bárbaras atrocidades a seus semelhantes. As exceções que me recordo são as mulheres-bomba, que agiram a mando de… homens.

    Ou viramos a mesa ou o dito “homem” – por extensão, a raça humana, aí incluídas não apenas as mulheres mas as inúmeras categorias sexuais intermediárias emergentes – estará em poucas dezenas de anos extinto do planeta.

    O mundo como hoje conhecemos, vulnerável a vírus letais, ameaça nuclear, tragédia social, apocalipse ambiental, foi uma construção masculina, tem a face grotesca e brutal do inepto bicho-homem. Ou colocamo-lo sob nova administração, ou dito cujo já era.

    Trata-se de uma constatação lógica e me admira que a grande maioria dos indivíduos (especialmente aqueles que se orgulham mais do seu pênis do que do seu cérebro) não tenha ainda chegado a essa conclusão tão evidente.

    Não, não estou me rendendo às teses feministas. A pauta da sociedade igualitária não me fascina. Homem e mulher são seres biológica e psicologicamente distintos. O homem prima pela força física, pela razão, pela lógica. Já o chamado “sexo frágil” (que piada!) distingue-se pela formosura, pela sensibilidade, pela intuição, pela resiliência. Por ter o atributo da força, o gostosão impõe-se à delicada mulher que se submete a seu algoz que usa da bestial violência para ditar suas regras. 200 mil anos de civilização não foram suficientes para revogar a lei do tacape.

    O capitalismo adaptou-se perfeitamente ao patriarcado e definiu o papel de cada gênero no sistema. Ao homem, ‘chefe’ da prole, cabe negociar suas habilidades no mercado de trabalho e com a grana obtida, sustentar os gastos domésticos. A mulher fica em casa lavando louça, limpando a privada e cuidando das crianças, trabalhos ‘inferiores’ sem remuneração, não monetizados pelo mercado. Que sistema hipócrita! Gratifica apenas as atividades que interessam ao capital, exercidas pelo membro empoderado do casal. A fêmea desempenha a incumbência ‘acessória’ de amamentar o bebê e manter estruturado o lar, sendo dependente financeiramente do varão folgado que se embebeda e farreia nos botequins. Sejamos honestos: isso é uma deslavada exploração de mão-de-obra.

    A natureza concedeu à mulher uma função muito mais nobre e, para que ela a exerça com louvor, não precisa ocupar o espaço do homem. Se pleitear isso, estará admitindo que os valores masculinos são superiores. O que é preciso é que seja reconhecida a importância do seu papel, muito mais imprescindível que o do provedor financeiro.

    A mulher para brilhar não tem que ser cientista, filósofa, soldada, enxadrista, jogar futebol, lutar muay thay. Deixe os homens se sobressaírem nessas áreas. As damas têm habilidades muito mais indispensáveis na preservação do equilíbrio social do que as dos vagabundos, inclusive a principal de todas: gerar a vida.

    Por isso, caro amigo e cara amiga, está na hora de corrigir o rumo e mudar as regras do jogo. A começar por redefinir quem deve dar as cartas.

  • Essa superestranha

    Há poucos dias estava em busca de alguma série ou filme que tivesse como locação a Turquia. Viajo para lá em junho e queria me ambientar antes da partida. Adoro passar pelos lugares e ter o prazer infantil de apontar e dizer: olha ali! Lembra daquela cena? Nessa busca inglória, me deparei com uma novela turca cujo nome, por si só, já me fez dar uma risadinha debochada — A sonhadora. Pensei em desistir, mas acabei deixando de lado as minhas críticas ferinas. “Que coisa brega, deve ser igual à Sabrina, aquela revista tosca da minha adolescência”, “mais uma história de mocinha apaixonada” e apertei o play para o primeiro episódio. 

    Como imaginei, era tudo muito ruim, quase péssimo. Interpretações exageradas, furos de continuidade, diálogos e cenas sem consistência lógica, um sururu sem fim. Para não ser injusta, os protagonistas Can e Sanem embelezavam a tela sempre que apareciam; os cenários coloridos e as paisagens também eram lindos. Mas nada além disso. 

    O esperado era que eu desistisse de perder tempo com aquela besteira sem atrativos intelectuais que eu pudesse exibir para os amigos, mas não! Mesmo achando tudo muito esdrúxulo, questionando o mau gosto e a minha sanidade mental, acolhi inteiramente meu desejo e assumi: quero!

    Que me julguem. Essa também sou eu.

    Resumo da história: fiquei viciada nessa comédia romântica, perdi várias noites de sono para assistir os 160 capítulos da Sonhadora, me afeiçoei aos personagens, reencontrei lembranças minhas, senti brotar inspirações para um novo livro.

    Foram dias intensos. Aguardava ansiosa pela hora de estar no sofá e continuar a aventura de flanar pela trama, dar risadas, lágrimas, suspiros junto com eles.

    A história foi seguindo o caminho do fim. Eu fui seguindo o caminho de mim. Encontrando placas, avisos sobre a imprevisibilidade da existência e os milhões de fragmentos possíveis e inesperados que compõem esse vir a ser que me habita. De quebra, ainda pesquei algumas conclusões sobre quem efetivamente sou até então.

    O amor romântico é uma praga que me cativa inteira; a graça de viver flutua fora da caixa do padronizado; as coisas bobas da paixão me fazem rir com sincronia entre os lábios e a alma. 

    Foi maravilhoso rever essa estranha-familiar que aparece quando tudo some e só restam nós duas: eu e essa menina enamorada pelo poder da paixão na sua raiz mais clichê. Não julguem. O indicado, apropriado, o certo a se fazer numa escolha é circunstancial. Aceitem. Às vezes, o melhor que desejamos não é tão apreciável assim pelos outros. E daí?

    Nada é mais divertido do que ser o que se é, a despeito do que se pretendia ser para atender às demandas sociais.

    Obs: acabo de apertar o play para assistir o primeiro capítulo novamente. Estou viciada nessa alegria. Aceito sugestões de outras novelas e séries. Não precisa ser nada profundo, nobre, intelectualizado, culturalmente valorizado. Basta que seja leve, doce e despretensioso. Bom demais não precisar pensar, avaliar, entender, julgar, criticar, analisar. Só ser, sentir e viver.

  • No fundo do espelho de seu quarto

    A ética produz alegria, respeito e felicidade. O conceito passa por dignificar uma parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam e orientam o comportamento humano.

    Eu deveria sair na rua distribuindo sorrisos e elogios, ao invés de resmungos a tudo que me vier aos olhos, para aliviar meus problemas diários, utilizando como desculpa o que vi pela frente. 

    Tudo isso sem que me desse conta da ausência de ética e respeito ao próximo, nesses instantes de surto desproporcional. 

    Por isso é lamentável observar um ataque pessoal partindo de um indivíduo com cargas emocionais de natureza muito próximas de suas carências, ou questões complexas, que escolheu alguém aleatoriamente como alvo para desafogar seu peito carregado.

    Opções assim, são similares a muitas doenças médicas, como câncer de pulmão ou diabetes tipo II, que muitas vezes são produtos de nossas escolhas durante anos de maus tratos em nossos.

     Muito cigarro, descanso á sombra fresca em demasia, e docinhos apetitosos diariamente na sobremesa diária, promovem um prazer divino, mas são artimanhas de lúcifer para nos consumir.

    Porém, nossos transtornos cognitivos, característicos de uma doença mental que nos atinge, é um termo amplo, que necessita dados psicológicos que mostrem a existência de doenças mais graves para desenhar caminhos ao diagnóstico correto. De forma alguma a expressão “doença mental” é utilizada para caracterizar a todos como indivíduos “loucos”

    Mas a psicopatia, onde os indivíduos são carentes de empatia e culpa de suas ações, tem raízes mais densas no caráter doentio, e mentes atormentadas com esse diagnóstico, dolorido aos outros. Não imaginamos que haja necessidade de instalarmos um “freio de repreensão”, pressionando a língua nessas pessoas falantes e maldosas para cessar o problema. 

    Essa técnica foi utilizada para calar a boca de pessoas fofoqueiras na idade média. 

    O falar livremente hoje é saudável, e essa é técnica da psicoterapia, que corre junto de muitas soluções médicas na cura das dores emocionais, incluindo a medicamentosa, que salva a pátria de muitas relações humanas a espera de bons momentos sem aflições. 

    Existem os vazios que tecem a teia de nossas vidas, escondidos em armários ou gavetas à mostra num cenário quase ininteligível, e frequentemente á vista do cego que não quer ver.

     Apalpar nossos dramas com imagens quase hipnóticas, nos possibilita enxergar um caminho para solucionar nossos entraves humanos. Se o curioso olhar mais longe, vale o esforço na busca de si mesmo, no fundo do espelho de seu quarto.

  • Dominância imposta é ultrapassada, mas a hierarquia é real e necessária

    Sou da época em que se adestrava cães com base na força, dominação e autoritarismo. Havia um consenso de que o ser humano precisava ser o “alpha” da relação para impor mais respeito. Quase todos os profissionais seguiam esse caminho, ensinando-o com tanta convicção que sequer se cogitava outra possibilidade.

    A própria ciência veio corrigir esse conceito ao mostrar que a dominância não é um traço fixo de personalidade, mas uma construção relacional, que depende do contexto e da interação entre os indivíduos. Estudos mais recentes, conduzidos com observações de lobos em ambiente natural — e não mais em cativeiro — demonstraram que os vínculos dentro do grupo se organizam de maneira cooperativa e dinâmica, baseando-se mais em afiliação e estabilidade do que em confrontos contínuos por poder. Essa revisão ajudou a quebrar os grilhões. Mas, nesse processo de compreender melhor a natureza social dos cães, muitos jogaram fora também o bom senso. Abandonaram o conceito de dominação e, junto com ele, a ideia de hierarquia. A meu ver, erraram por excesso.

    Mas vale esclarecer uma coisa: medo não educa, tampouco promove bem-estar. O medo paralisa, mascara sintomas e instala um estado de alerta crônico nos cães, que acabam reagindo como forma de defesa. Tornam-se explosivos, desconfiados e inseguros. “Não se combate medo com mais medo”.

    A verdade é que cães não precisam ser subjugados, mas precisam ser guiados. Sem hierarquia funcional, não há convivência saudável. Na ausência de uma figura estruturante, o cão reativo cria sua própria lógica: ataque preventivo, defesa do território e controle do grupo. Ele não quer mandar, quer sobreviver. E, para isso, antecipa riscos, testa forças, impõe regras. Muitas vezes, busca se posicionar dentro do grupo da qual faz parte.

    Quando o cão está à beira do abismo emocional, é o passo firme do humano que o salva.

    É nesse momento que surge a necessidade da hierarquia, não como tirania, mas como construção. Um cão perdido se apega a certezas. Se o humano estiver preparado, pode se tornar esse ponto de referência. Não por grito, mas por constância. Não por opressão, mas por coerência.

    Muitos confundem controle consciente com opressão. Mas a dominância, de que se trata, não é ausência de liberdade, e sim presença de clareza. Não é leveza o tempo todo. É profundidade constante. Assumir o controle na relação não é prepotência nem covardia. É se colocar com previsibilidade, coerência e foco, de modo que a liderança se instale de forma silenciosa e se mantenha coesa a partir do alinhamento entre presença e ação.

    E quando o cão ultrapassa todos os limites? Quando já não há mais margem para técnicas suaves? Quando o medo se espalha entre aqueles que convivem com ele? Nesse cenário, sim, pode ser necessário agir com firmeza. O alpha roll — tão marginalizado pelos adeptos do reforço positivo —, quando aplicado com equilíbrio, não é punição, mas contenção. Não é humilhação, mas um modo de estabelecer limites e regras. Os métodos que o condenam, muitas vezes, não compreendem plenamente a ideia do reforço positivo, pois, sob nenhuma hipótese, o cão deve deixar de ser recompensado por algo que você intencionalmente comandou.

    Nietzsche dizia: “Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.” No caso dos cães, o porquê é o vínculo. O como é o método. E o erro nunca está na técnica isolada, mas na emoção que a move. Um gesto bruto com raiva destrói muito mais. Um gesto firme, sem pena, transforma além do previsível.

    Treinar não é vencer. Educar não é subjugar. Criar não é libertar sem rumo. É construir uma convivência em que o humano assume a condução e o cão encontra espaço para confiar, ter segurança e obedecer. Não, obedecer não é antiquado. O equilíbrio é um templo onde se possa, enfim, baixar a guarda sem perder a autoridade. Mas isso só acontece quando o humano não cede nas primeiras dificuldades nem recua diante da responsabilidade de guiar.

    Sejamos claros: a dominação imposta está ultrapassada. Mas a liderança real continua sendo indispensável. Um cão que já mordeu não se corrige apenas com petiscos. Ele precisa de direção. E quem não souber oferecer esse caminho corre o risco de se tornar só mais uma voz fraca num mundo que o cão já decidiu ignorar. Porque, no fim das contas, nenhum ser fraco será respeitado por uma espécie diferente da sua.

    Educar é assumir a responsabilidade de guiar com firmeza, mesmo quando o processo é instável. Oferecer uma direção sem anular a essência do outro. Para o cão, isso significa confiar sem medo, porque sabe que alguém finalmente assumiu o comando. Confiar, para o cão, é ter o direito ao descanso. Não por se sentir submisso, mas porque enxerga a liderança humano como um pilar de harmonia e sustentação.

  • A falta que faz

    Falta-nos um Nobel. A tão cobiçada e destacada honraria máxima de que ainda carecemos. Nós, o país mais exuberante. O país do samba, do Carnaval, do futebol. Temos de tudo um pouco e fazemos de tudo um pouco. O Brasil é um mundo particular que ninguém jamais decifrou completamente. Além disso, como sabemos, Deus é brasileiro. Só o resto do mundo ainda não percebeu. A Academia Sueca, então, nem se fala, parece querer constantemente desviar da terra de Deus. E nós continuamos sem um Nobel.

    Conquistamos cinco copas. Somos os maiores da história do futebol. Não interessa se estamos numa fase ruim ou se a Argentina nos humilhou na última partida, as cinco taças são nossas, ainda que uma delas tenha sido roubada. Isso, de fato, pouco importa. O mundo esteve literalmente aos nossos pés em 58, 62, 70, 94 e 2002. E, vamos combinar, a única coisa mais bonita do que as cinco estrelas na nossa camisa é imaginá-la com seis. A Olimpíada, que por muito tempo foi o nosso Calcanhar de Aquiles, conquistamos logo duas em sequência para mostrar quem é que manda. A primeira, por acaso, foi aqui no Brasil. Um capricho dos Deuses do futebol. Agora também voltamos a ter o melhor jogador do mundo. Tudo nos conformes. Do 7 a 1 nem lembramos direito, foi um vacilo momentâneo.

    Mudemos o foco por um instante. O Brasil tem as maravilhas da natureza. Me desculpem os europeus, os americanos do norte e o baixo clero dos países do médio oriente. Nós temos o Pampa, o Cerrado e o Pantanal. Nós temos a Amazônia e o litoral mais bonito do mundo. Nós temos as Cataratas do Iguaçu e o Cristo Redentor. Nós temos os Lençóis Maranhenses, o Monte Roraima e a Chapada Diamantina. Nós temos o Delta do Parnaíba, as Piscinas de Maragogi e a Gruta do Lago Azul. Nós também temos as cidades históricas de Porto Seguro, Ouro Preto e São Miguel das Missões. Salvador, São João del-Rei e Morretes. Petrópolis, Olinda e Manaus. E muito, muito mais. Não fosse a inflação um tanto descontrolada e o preço caloroso da gasolina, estou certo de que a população do país inteiro visitaria todas essas cidades. O turismo é claramente um dos nossos pontos fortes, mas é sempre bom ficar atento com carteiras, celulares e afins.

    Além dos conhecidos festejos carnavalescos de início de ano, invejados silenciosamente pelos países mais introvertidos, por assim dizer, temos também o Festival de Parintins e a Semana Farroupilha. Cada um com uma música, uma comida, uma história própria. Nós somos o país do forró, do baião e da bossa nova. Do xote, do frevo e do maracatu. E, apesar de estarmos novamente com um ex-presidente preso, no geral, somos boa gente.

    Agora temos um Oscar para chamar de nosso. Quem diria, hein? Até um Oscar conquistamos, numa festa digna de final de copa, com transmissão simultânea em várias capitais. Somos realmente bons na comemoração das nossas conquistas. Quem não lembra das cambalhotas do Vampeta na rampa do Palácio do Planalto?

    De fato, não sei de onde tiramos coragem para viver assim, tão bem, tão plenamente, sem um prêmio Nobel. Até me envergonho um pouco quando penso nisso durante as caminhadas matutinas. Talvez, se tivéssemos um Nobel, poderíamos tentar evitar o provável colapso financeiro dos próximos anos, sobretudo na Previdência. Talvez, se tivéssemos um Nobel, teríamos evitado o mensalão, o petrolão, os mandos e desmandos na pandemia, o desmatamento na Amazônia, os dólares na cueca, as fraudes no INSS. Pois é. A falta que faz.

    O curioso é que o prêmio Ig Nobel não nos falta. Aliás, até nos sobra. Temos oito. E Nobel que é bom, nada! Deus, que, sendo brasileiro, tem piedade de nós, desprovidos de Nobel, também perdoa, por certa conjuntura divina, a Academia Sueca, que não pousa os olhos sobre nós, os brasileiros, seus tão estimados conterrâneos. E Deus sabe o que faz. A Academia Sueca, por sua vez…

    E olha que nem estou falando das injustiças. Ao que tudo indica, Oswaldo Cruz deveria ter sido o primeiro laureado em terras tupiniquins. Não foi, entretanto. Também esqueceram do Carlos Chagas e do César Lattes. É desolador. Mal posso imaginar como seria avultado nosso orgulho patriótico com um prêmio Nobel. Só de pensar já fico alvoroçado. Não que precisemos de avultamentos dessa natureza, óbvio, e nem precisamos provar nada para ninguém. Mas, particularmente, não entendo como, na literatura, Guimarães Rosa não recebeu tal distinção. Nem ele nem a Lygia, a Clarice, o Cony e o Jorge Amado. É realmente constrangedor, Academia Sueca. Mas deixemos os traumas para outra hora.

    Como dizia, Deus é brasileiro e nos ensinou a não desistir. Então, ainda guardo uma fagulha de esperança de que, em 2025, o Brasil seja finalmente contemplado com um prêmio Nobel. O pesquisador Miguel Nicolelis é sempre um ótimo candidato. Há também outros grandes nomes da ciência no país, como Marcelo Labruna, Fernando Cunha e Carlos Barrios. Alô, Academia Sueca, chegou a nossa vez, não?

    Caso nenhuma dessas opções esteja à altura de tal distinção, tenho certeza de que temos ainda muitos candidatos ao Nobel de economia, visto que as livrarias estão empanturradas de publicações contendo infalíveis dicas para o leitor sair do salário mínimo diretamente para o bilhão em meses, às vezes em semanas, quiçá em horas. Dependendo, claro, de pormenores insignificantes. As cartas estão dadas, Academia Sueca.

    Por fim, com um Nobel poderemos deixar o ostracismo e nos tornar uma potência mundial. Num futuro não muito distante, lembraremos aos risos do tempo em que sustentávamos a síndrome de vira-lata. Abandonaremos, enfim, esse vice-campeonato moral para nos tornarmos golden retrievers, do alto da sua elegância despreocupada. No entanto, para isso, ainda nos falta um Nobel.

  • Cachaça, reza e um Papa gente boa

    Naquela segunda-feira chuvosa em Ipanema, o sol tirou folga. Depois de um fim de semana vaidoso, ensolarado e cheio de turistas na areia, ele se recolheu como quem respeita um luto.

    No lugar dele, veio a garoa. Capas de chuva nas calçadas, cangas de folga no armário e um silêncio molhado pairando sobre a cidade. Eu, mineiro de férias no Rio, escrevia umas crônicas no bloco de notas do celular quando veio a notícia: Papa Francisco morreu.

    Fiquei abalado. Abaladíssimo. Nem sou católico — sou do time que entra na igreja pra admirar o forro de madeira —, mas meu amigo é. E com ele, missa é antes do café. Domingo mesmo fomos ao Mosteiro de São Bento, na Praça Mauá. Missa linda. Depois, um café da manhã  na Visconde com Farme.

    Dizer que o céu chorava pode parecer exagero. Mas ali, com meu amigo ao lado e o coração um pouco apertado, chorei debaixo do guarda-chuva.

    Gostava de Francisco como se gosta de uma avó italiana: ele falava com firmeza, ria com os olhos e dava bronca com afeto. Canonizou Irmã Dulce, beatificou Frei Galvão, estendeu a mão pros refugiados, acolheu os gays e soltava frases que viravam camiseta.

    Um dia, disse a um brasileiro: “Vocês não têm salvação. Muita cachaça e pouca reza.” Depois, deu a bênção com seriedade franciscana.

    Talvez nenhum outro Papa tenha entendido tão bem o Brasil. Nosso jeito de rir da desgraça, de rezar e de fazer piada ao mesmo tempo. Francisco era argentino, mas ganhou a alma da gente.

    Ali, naquela manhã nublada de Ipanema, eu não rezei um terço. Mas agradeci em silêncio.

    Obrigado, Papa Francisco.

  • Dons de domingo

    Frestas na janela forrada com tecidos nobres, trilho suspenso, que corre e fica. Luz matinal que avança, intrépida, vaporosa, deslumbrante.

    É manhã de domingo, os pássaros conversam, uma ou outra garagem desperta, eu também. Alguns dormem. Tantos tomam café, outros fazem cooper, yoga, amor, nada.

    Alguns compram jornais impressos. Alguns jogam virtualmente, desde ontem. Praia, cachoeira, trilhas, um bom livro. Os asfaltos e paralelos têm horas de menor pressão; poucos são os veículos que por eles transitam. Pessoas caminham, cachorros levam seus tutores para passear com mais qualidade.

    As conversas fluem sem tanta pressa. Os olhares se perdem ao sabor do tanto faz. Respira-se mais.

    É chegado mais um domingo, uma ode ao sol, ou um tipo de sorvete _ sunday. Dia de descanso, preguiça, pausas, refeições demoradas, o sabor e vapor de xícaras fumegantes, ócio criativo, prazeres e o que quisermos.

    Aos domingos, as frestas dominam.

  • Crônica apressadinha

    Eu quero escrever uma crônica agora, mas você sabe como é que é… Tenho que fazer isso e fazer aquilo e passar em um monte de lugares e depois de fazer isso tudo, ainda tem mais coisa pra fazer!

    Espera ai! Uma mensagem chegou!

    E o olhar para a tela fica congelado! Os dedos digitam algo! Outra mensagem e mais outra!

    Bom, como eu ia dizendo, quero escrever uma crônica, mas a pressa de nosso mundo é grande!!! Eu sei! Eu sei! A pressa é inimiga da perfeição, mas o que fazer se é preciso correr o tempo inteiro?

    Um instante! Notificação! Dedo que desliza na tela e passa e passa e passa sem parar! Uma imagem e mais outra e outra mais!

    A crônica que quero escrever é sobre essa pressa nossa! A gente vive sem tempo! E não faz…

    Mais uma mensagem! Aqueles vídeos engraçados de cachorro! E já são quatro vídeos! Rapidinho…

    Eu não quero escrever uma crônica! Eu queria, mas com toda essa pressa, não vou conseguir nem pensar sobre! Se não tivéssemos tanta coisa pra fazer!

    Notificação…

  • O fim da fila

    Andei tendo pesadelos com filas — fila do cinema, fila do caixa do supermercado, fila de embarque no avião, fila no atendimento do banco… eu ali, imprensada, empurrada, as pessoas passando na minha frente sem a menor cerimônia, ignorando que se tratava de uma pessoa idosa.

    A cada dia, uma nova imagem dessas me atrapalhava o sono e, num sobressalto, eu acordava. Ao abrir os olhos, respirava aliviada ao perceber que era só um pesadelo. Afinal, eu vivia em um país em que os maiores de 60 anos têm um privilégio garantido por lei — o Estatuto da Pessoa Idosa, de outubro de 2003, assegura prioridades que nos ajudam a envelhecer com um pouco mais de dignidade.

    Com o tempo, os pesadelos sumiram, e eu me vi aproveitando, feliz, os pequenos privilégios da “melhor idade”: o prazer de encontrar uma vaga exclusiva em um estacionamento lotado, de entrar primeiro no avião e me acomodar sem atropelamentos, de sentar tranquila no transporte coletivo. Compensações merecidas pelos percalços do envelhecimento, eu pensava.

    Outro dia, no entanto, fui assistir a uma peça de teatro e me deparei com uma cena inesperada. Ao me dirigir à entrada reservada aos idosos, fiquei desnorteada: onde estava a fila? Em vez de uma ordem civilizada, havia um aglomerado de cabelos brancos e cabeças carecas que se acotovelavam num tumulto para marcar seus bilhetes de entrada.

    Olhei ao redor e compreendi: praticamente todos ali já tinham passado dos 60. Se fosse para haver uma fila especial, ela deveria ser para os “não idosos”.

    Naquela hora, lembrei dos meus antigos pesadelos. Eles não eram delírios, mas premonições. Nossa população está envelhecendo, e não vai demorar muito para que o privilégio mude de lado. Talvez passemos a ver filas exclusivas para os menores de 60 — mais ágeis, mais rápidos, mais conectados —, enquanto nós, os da “melhor idade”, vamos amargar as filas comuns, onde tudo demora.

    Porque um esqueceu o documento, outro não consegue abrir o QR code no celular, um terceiro precisa desmontar a mala na esteira para encontrar a tesourinha esquecida. Sem contar aquele senhor na minha frente que mal consegue subir as escadas do ônibus e, por isso, a porta acaba se fechando antes de mim.

    Segundo o IBGE, em 2070 o Brasil terá cerca de 75,3 milhões de idosos — quase 40% da população. Bem… pelo menos eu não estarei entre esses milhões de ex-privilegiados.

    Já é um consolo.

  • Toda verdade é ato

    Ao tomar ciência da morte do Papa Francisco, um lamento silencioso me abraçou forte. Não frequento igrejas ou missas nem o conhecia pessoalmente, mas senti o pesar que a partida de um amigo distante e querido inaugura.

    A exploração excessiva da mídia, a monetarização advinda do uso selvagem da notícia do seu falecimento, a pequenez do mundo, tornou ainda mais evidente a grandeza rara desse homem que escreveu com atitudes o brado de uma ética de humanização do viver.  

    Seu maior legado talvez seja a mensagem cifrada em todas as suas ações: o amor genuíno, curandeiro de todo o mal, só floresce do respeito e da empatia entre os seres.

    Ele se foi, mas uma fração da sua eternidade ficou em mim.

    O bem reverbera!

    O Amor é colo que acolhe sem mimar.

    A verdade dos afetos e dos intentos vive nos gestos. O Papa Francisco escolheu ser sepultado na Basílica de Santa Maria de Maggiore em Roma, quebrando a tradição centenária de sepultamento na Basílica de São Pedro.

    Quantas coisas são ditas com esse ato…

  • Almas

    Almas rasas, almas profundas. Almas quietas, almas inquietas. Almas glutonas. Ou seriam corpos glutões? Almas machucadas, doídas, que não são percebidas. Almas irmãs, almas curiosas, almas altruístas.

    Olhar, esquadrinhar, perscrutar…

    É desonesto? É como espiar pelo buraco da fechadura? É pretensioso?

    Não sei… mas não consigo evitar. Meu olhar atravessa os corpos, vasculha os gestos, decifra os silêncios. Cada passo que vejo guarda uma história, cada olhar desviado esconde um receio. Há almas que se mostram sem perceber, e há outras que se escondem, mas não o suficiente.

    Ah, meus amigos…

    Como eu gostaria de ser uma alma bebê…

    Só assim eu deixaria de ver. De perceber. De saber.

    Uma alma inocente não veria malícias, subterfúgios, intenções. Não distinguiria as sombras dos sorrisos, as hesitações dos fingimentos. Viveria sem o peso da consciência, sem essa insuportável necessidade de compreender o que deveria passar despercebido.

    Quisera eu ter a inocência de estar desnuda e não perceber…

    Mas não! Prefiro estar oculta a estar desnuda…

    Afinal, para quê saber das fragilidades, da inocência, da malícia?

    Por quê? Para quê? Essa é a pergunta que atormenta a MINHA ALMA…

    E ainda assim, eu continuo olhando.

  • Da glória ao fracasso

    Impressionam-me os casos, muito noticiados pela mídia, de pessoas que eram famosas, endinheiradas, e depois perderam tudo. Geralmente são artistas ou ases do esporte. Sabe-se que o sucesso é fugaz, mas há uma diferença entre sair dos holofotes e mergulhar na escuridão do anonimato ou nos confins da miséria.  

    Recentemente se noticiou o caso de Mário Gomes, que teve a mansão leiloada para pagar dívidas trabalhistas. Desconsolado, o ator revelou que estava por enquanto na casa de uma filha e não tinha ideia de onde ia morar – talvez “embaixo de uma ponte”!  

    Há muitos outros casos. Entre eles está, por exemplo, o de Regininha Poltergeist; depois da fama nos anos 1990, ela perdeu  o que havia conquistado e chegou a morar num posto de gasolina. Outro é o do ator César Macedo, que atuou na “Escolinha do Professor Raimundo” e, fora da TV, enfrentou muitas dificuldades financeiras. Veio a morar nas ruas depois que a esposa morreu.

    E quem não se lembra do ator Rubens Sabino, que fez o papel de Neguinho  no filme “Cidade de Deus”? Depois de abandonar a carreira, ele chegou a viver na Cracolândia, em São Paulo, por cerca de quatro anos.

    Muitos perdem seus bens e ficam mesmo sem ter onde morar. Caso não sejam amparados por um algum parente generoso, têm que apelar para a generosidade dos transeuntes. Na melhor das hipóteses, passam a vender cachorros-quentes, bombons ou água para sobreviver.   

    Se a ambição maior deles é galgar a escada da fama, o que os faz descê-la de forma assim melancólica? A explicação comum, e um tanto óbvia, é que não pensam no futuro. Deslumbrados com os aplausos e paparicos dos fãs, esquecem que essas manifestações passam e com elas o dinheiro que lhes permite o conforto de uma boa vida.

    Alguém já disse que, a ter e perder, é preferível nunca ter tido. A memória dos bons tempos dói mais do que a tristeza por eles nunca terem chegado. Enfim, não se perde o que não se teve.

    Outros atribuem a derrocada à fatalidade, que escolhe algumas pessoas para nelas imprimir negativamente a sua marca. Mas fatalidade não é destino. Para que nele se transforme, é preciso que a vítima de algum modo aceite o que lhe é infligido, ou vá ao seu encontro.   

    Talvez os que descem do chamado “pedestal da glória” façam isso por não se julgarem aptos a lá estar. Talvez procurem a obscuridade por não se acharem merecedores de ficar sob a luz. Nesse caso não é o descuido com o futuro que os leva a tal situação, mas algum tipo de prisão ligada ao passado.   

    Há quem ache que não faz jus ao sucesso que a vida lhe concedeu. Por alguma obscura falha interior, considera injusto o que alcançou na arte, na profissão ou mesmo nas relações sociais. Trata então de “reparar o engano”, infligindo-se um fracasso que compensa o que por equívoco lhe teria sido dado. A alma humana tem desses mistérios.

    Essa tese psicológica não se aplica a todos os casos e pode ser contestada. Mas não deixa de nos fazer pensar. Só ela explica que chegue ao declínio alguém que tanto lutou para alcançar o apogeu.

  • bolhas opacas em sinais de trânsito

    Intuição é um troço engraçado. Às vezes, quando nos deixamos ser por ela guiados, pode dar bom, pode dar samba — ou crônica mesmo [bem melhor, convenhamos, que uma história crônica na bagagem da vida]:

    […)

    Sempre se sentava nos assentos dos veículos públicos, por segurança, por melhor vista da pista, “n” motivos. Hoje, pelo choque de sair da Cidade Universitária, que voltara a frequentar mais de uma década depois, e se deparar com seu velho ônibus para casa vazio, não pensara duas vezes: embarcou, com seu anacrônico RioCard — agora existe um totem de um tal “jaé”, em mais evidência do que o que aceitava o cartão em sua mão esquerda, avanço tecnológico de primeiríssima categoria, outrora. Não sabia o por quê, mas seu coração evidenciara um lugar próximo à porta da saída, nos fundos. Sentou-se. Como uma recém redomesticada “bicho do mato”, com os sentidos apurados em selva de pedra, não ousou pegar o celular. Optou por um livro, um pouco escondido dentro da bolsa grande, que continha de tudo: pasta de dentes, escova de dentes, um outro par de brincos, álcool em gel, lenços de papel, caneta, prancheta, sacola plástica dobrada, um isqueiro, uma lanterna, carregador de celular, uma pera, uma garrafa de água, carteira, chaves de duas casas, o telefone, um desodorante, uma cachemire, um casaco e uma sombrinha. Correu os olhos por uma ou duas páginas; não introjetava as palavras; preferiu conferir a paisagem do Rio em um dia nublado de outono; os cariocas não curtem. Percebeu uma mulher com celular em punho, bem em evidência, que passeava por perfis masculinos em redes sociais. O rapaz no assento atrás do seu parou o que fazia, e l-i-t-e-r-a-l-m-e-n-t-e esticou o pescoço para uma fofocada virto-presencial sem toques — um modo um tanto quanto stalker de se posicionar; assim ficou; o ônibus estava vazio. Esperançosa de ter seu resto do dia bem aproveitado por tão baita sorte da condução espaçosa, relaxou. Semáforo amarelento em contraponto à frieza e letargia de um início de tarde assim, o motorista ameaça pegar a Ponte do Saber. Mas só ameaça. Uma nova volta por toda a ilha se fez. A condução é famosa por estar sempre cheia, inadmissível vagar pelos asfaltos tão levemente. Paciência, os minutos que dedicaria a voltar mais cedo para sua cidade natal (e atual) seriam gastos para um outro propósito. Resolveu abdicar do percurso em linha reta para a Novo Rio. Até queria conhecer o tão comentado novo Terminal Gentileza, mas, ouvindo seu coração, deixou-se rumar para Botafogo.

    O ônibus lotou. Uma discussão esquisita começou próxima ao assento no qual certamente estaria. A senhora que ali sentada estava ganhou uma cotovelada de graça na bochecha direita. E um despertar daquele bater de pestanas tão reconfortante, quando se está acomodada em um veículo público cheio. Evitara um confronto, ponto para a intuição! E ainda tinha sua saída garantida, sem empurra-empurra e aglomeração, calor e estourar das bolhas de cada um. Todo mundo vive em uma bolha que se contrai e se dilata, à medida que passa por situações e ambientes diferentes. Cada um sabe a beleza e os cm a mais dos quais abre mão — e não! — para conviver em sociedade.

    Uma hora depois, avista um shopping conhecido. O ônibus para em um ponto que não se lembrava de ser uma parada, tão próxima era do shopping. Levantou-se de um ímpeto adolescente e puxou a cordinha. Permaneceu de pé, virando-se para a porta. O ônibus simplesmente subiu o viaduto.

    Passos apressados na saída — parada errada: 10 anos antes, o shopping era a deixa. As coisas mudam, resiliência mantendo a pose de antiga moradora da capital. As nomenclaturas de pontos de “BRéssssses” (para dar um ar mais carioca no coloquial da leitura), confundiram seu GPS natural tão assertivo, e as pernas traduziram o nervosismo de andar por ruas conhecidas com lojas diferentes, prédios demolidos, moradores de rua em número bastante significativo e policiais que, ou conversam amigavelmente com um civil das redondezas, ou um dos seus à paisana, ou são corruptos. O rosto da ex-carioca mantinha um semblante que a misturava à multidão, anos de prática — e de teatro —, são como andar de bicicleta. O corpo grita um alerta vermelho, como o toque luminosamente poético sobre sua cabeça: estamos entrando em pânico, é seu íntimo quem diz; respira e foca em chegar a um lugar mais íntimo em suas memórias. Passa por uma esquina arquitetônica e urbanisticamente arredondada: o interior intersticial de uma mecânica de automóveis expõe 3 viaturas suspensas por andaimes, sem rodas, como se estivessem rendidas e cercadas por mais de uma dezena de outros indivíduos, todos latas velhas em estado lamentável. Achou graça na fragilidade momentânea dos veículos da segurança oficial. Sente-se energizada e com fome. Atravessa a rua, sinal verde-esperança, depara-se com uma galeria que tem ares de residencial, mas não somente, seus pés a conduzem, eles sabem o caminho de cor. Dá de cara com o seu velho supermercado, cada vez mais envelhecido e caquético, que sempre a salvava, de domingo a domingo. Vontade do hot-dog da madruga que custava R$ 1,99. Não existe mais. “Serviria um balde do KFC, acho que ainda deve ter um na outra esquina…”

    Seu corpo gira nos calcanhares e esbarra no Cine Estação, e, então, tudo congela: Olhos nas programações Pele ouriçada frente a tantos títulos disponíveis para uma quarta-feira qualquer Suor frio e cheiro de pipoca amanteigada Sente um calor vir debaixo, está excitada Lê o título de filme de uma francesa na Coreia, em cartaz na contagem regressiva de 20 min. Alguém derrama o líquido inconfundível de uma Coca-Cola em um copo plástico.

    Sai esbaforida, encontra um KFC há 15 passos, pede uma promoção qualquer e acha tudo muito engordurado. 15 minutos foram suficientes para avermelhar o rosto, aguardar o preparo da comida rápida | senta-se sozinha, come, repara nas pessoas ao redor, sente-se feliz por estar de volta. A volta em si mesma, as mordidas que rebobinam o tempo. Se vê com pouco mais de 20 anos; compra o ingresso; senta- se na poltrona errada e está mais do que bem, a sala está vazia. Na tela, uma mulher ensina francês para sobreviver em outra cultura. Mas nunca deu aula disso. Ela arrisca. Ela, também.

    O filme termina na incompreensão entre os poucos cinéfilos — quase todos da terceira idade — e ela. Ela quer expandir seus horizontes com a força dos semáforos verdes, um após o outro. Abertos, todos, sem uma transição em um degradê sem sentido. Chama um 99. Não se preocupa com a rua e o movimento. O sinal fecha, todos andam, não [se] sabe[m] para onde, ela tampouco. Adentra o carro, sinal vermelho como pôr do sol. As bolhas aqui e acolá parecem uma instalação a céu aberto orientada por alguma galeria de arte. Sinal vermelho que não se vai. Alguém pega um pedaço de papel na rua.

    Opacarofilia.

  • Ela morreu

    Sentada à mesa de um restaurante, aguardando uma amiga para o almoço de celebração da nossa amizade, chegou aos meus ouvidos uma frase, com efeito de fogos de artifício, dita por uma voz feminina, provavelmente da mesa ao lado:

    — Eu confiava nela. 

    No momento que decodifiquei o som e o sentido se fez claro, fui tomada por uma tristeza absoluta e uma identificação imediata com a enganada da vez. 

    Sem que nos conhecêssemos ou tivéssemos intimidade, experimentei, por osmose, a dor causada pelo corte profundo da decepção. O sangrar hemorrágico de um fim que se impõe mesmo diante do perdão. Toda falsidade ou traição fere a eternidade do sentimento, a ingenuidade da confiança. Sem isso, ela é outra coisa. Perde o viço, a raridade, o estado nato de berço. Mas tem quem não se importe, quem acredite que uma vez ferida, ela, a confiança, feito lagartixa, se regenera. Quanto engano! 

    Seu ferimento tem dor profunda, pulsante e incurável. Sua cicatriz é feita de queloide. Impossível retornar ao conforto inicial de sentir-se em casa diante do outro. Esse é o maior luto. A certeza de que não se volta ao estado natural de ingenuidade. Impressionante que as pessoas não se deem conta do que perdem com o fim da fé em si. 

    Eu confiava nela. Que triste! 

  • Retorno às névoas perfumadas

    Chegou antes da hora marcada. Uns minutinhos somente mas tempo suficiente para se acomodar no café. Escolheu uma mesa na parte externa que dava para o jardim interno da ala elegante do shopping. E ficou ali.

    Marcou o encontro com uma amiga de anos e escolheu aquele lugar para agradar a ela e, sendo sincero, também a si mesmo. A atmosfera do ambiente fazia seu senso estético se manifestar contente. A idéia do encontro era marcar o fim de dois anos de isolamento forçado. Eles não estavam desatualizados a respeito dos respectivos assuntos particulares e comuns. A internet ajudara bastante a manter as conversas constantes. Porém, faltava a proximidade física.

    Os dois encaravam aquele encontro como sua celebração pós pandemia. A volta ao mundo real. Mas o que ela não sabia é que para ele havia um algo a mais por trás daquele encontro. Sem alarde e em segredo ele decidira começar naquele dia um ritual íntimo que ele chamara de retorno às névoas perfumadas.

    Das ausências provocadas pela pandemia em sua vida uma das mais significativas foi a falta de aspirar perfumes. Conversar com as pessoas, manter um contato mínimo, pôde ser contornado com as webconferences. Mas sentir aquele aroma agradável especial, sem chance.

    Não perfume do vidro mas sim aquele cheiro perfumado que sobe das pessoas. Esse é insubstituível. Fica gravado na memória para sempre.

    E sua predileção era pelas fragrâncias que envolviam as mulheres. Sentia uma falta imensa de encontrar alguma mulher perfumada.

    Logo que tomou coragem para sair de casa, tentara um paliativo que era circular pela rua ou pelo shopping e passar pelas pessoas que emanassem nuvens perfumadas. Não dera certo.

    Tinha que entrar em contato com as mulheres para sentir de perto o perfume feminino. A química entre fragrância e a pele de cada pessoa era única, ensinava o senso comum e ele assinava embaixo com todas as letras. Sabia que não precisaria de muito para satisfazer seu olfato. O aperto de mão seria suficiente para trazer para perto de si a nuvem de aroma perfumado. Aspiraria profundamente arquivando na memória o cheiro suave e envolvente daquela névoa deliciosa.

    Aos poucos fora formulando em sua cabeça a idéia desse ritual íntimo. Não via maldade nem inconveniência em sua busca. Era um movimento puramente estético e sensorial, dizia para si.

    Nada abusivo ou ofensivo.

    Não se considerava invasivo, nem tarado ou pervertido. Apenas um apreciador desse aspecto sensorial do mundo feminino. Outra forma de justificar o que iria dar início naquele dia.

    Honestamente não tinha pretensão alguma em se envolver com ninguém. Bastava para seu prazer captar aquele aroma particular. O arrebatamento do encontro do perfume com suas narinas seria sem igual.

    Depois de muito pensar e pesar decidira passar a ação. Agora estava ali, prestes ao primeiro encontro de retomada do prazer sensorial provocado pelo perfume de uma mulher.

    Selecionara com cuidado quem seria sua primeira convidada e optara por uma amiga de longa data e apurado senso estético. Ela era um dos melhores exemplos de química perfeita entre perfume e pessoa. Não conhecia ninguém que combinasse tão bem com a fragrância daquele perfume de nome exótico.

    Portanto, para abrir os trabalhos seria com ela.

    Seus pensamentos foram interrompidos com a visão de sua amiga chegando. Ela caminhava devagar e sorridente. Ele se levantou sorrindo, aspirou o ar profundamente e pensou: seja bem vinda névoa perfumada.

    Crônica escrita originalmente em 5 de outubro de 2022

  • O cronista em caça

    O cronista é um caçador, não o homem que sai com sua espingarda a fim de conseguir algo para comer ou por pura diversão pela morte. É um animal eternamente faminto e em constante situação de caça. A todo momento, está em busca da sua próxima vítima, que alimentará a si e aos outros.

    Ser esse caçador é consequência de ser cronista.

    Onde estiver, estará em caçada. Não importa a situação, o momento ou o lugar. Qualquer um pode ser propício, todos são capazes de lhe oferecer uma nova presa. Ele sabe disso, está sempre à espreita. Diante de um alvo que se mostre, não titubeia; na primeira oportunidade, irá agir.

    Por onde passa, segue perseguindo algo, que os outros não veem e ele, talvez, ainda não saiba ao certo. Não sai de casa necessariamente com o intuito de executar o apresamento subsequente. Entretanto, para onde vá ou onde se encontre, o gênio de cronista está agindo dentro dele.

    Não é caçador apenas por escolha ou por aptidão adquirida, mas por uma condição intrínseca, ínsita ao seu próprio ser cronista. Ela garante o sucesso na localização do alvo de cada empreitada, seja mensal, semanal ou diária; por obrigação ou puro deleite.

    O predicado disso está na procura constante, mas também, por vezes, não deliberada. Está no instinto e nos olhos que só podem ser encontrados em indivíduos dessa espécie. Possui um olhar particular, olhar de caçador, olhar de cronista, essencial para produzir novas presas. Ele não enxerga como os demais. Seus olhos de rapina são capazes de transformar o mais insignificante elemento em uma preia útil.

    Esconder-se ou se esgueirar são desnecessários. Para o bote, precisa de ouvidos vigilantes, visão precisa e argúcia em seu faro. Todos muito bem treinados e experimentados. Assim como os seus gadanhos, que, se não forem cultivados e afiados cotidianamente pelo predador, tornam-se ineficazes no assalto.

    Essa fera não distingue suas vítimas. Qualquer um pode vir a ser o próximo. Tudo lhe interessa, desde o gesto mais inocente à hecatombe mundial, do último acontecimento político ao café que coa todas as manhãs. Não há nada que não esteja passível de se converter no seu mais recente abate.

    Mal tendo digerido o último, já se lança à procura do seguinte. Seu ímpeto jamais cessa, precisa estar sempre em caça. E ele estará.

  • Maldades Obscenas!

    O que não pode ser visto, não incomoda, essa máxima nos protege dos males da natureza humana, que insistem surgir durante décadas e afetar as mentes mais frágeis entre nós.

    Mesmo no início do século XX, os doentes mentais crônicos eram vistos como “degenerados” e “escória”, o equivalente a criminosos e escroques, por isso a ideia de escondê-los em manicômios foi a saída na época para resolver as questões ainda desconhecidas de nossa alma. 

    Nossas dores emocionais são frequentes companhias sem que tenhamos encomendado sentimentos ruins ou algum interesse em especial pra fritar nossos miolos ainda crus. 

    Buscamos viver com leveza porque a ausência de um fardo leva o ser humano tornar-se mais leve e de fácil convívio, e assim atingir um status social atraente e com mais oportunidades mundanas. 

    O que nos atormenta invariavelmente transborda a frente da próxima companhia tornando assim pesado o relacionamento com o próximo. 

    O escritor Milan Kundera escreveu em seu espetacular livro “A insustentável leveza do ser” que o mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão, ao mesmo tempo, ele é a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é. 

    Vivemos muito pela primeira vez, quase não há tempo para ensaios ao entrar em cena nas ruas, e eventualmente somos recriminados(as) por sermos diferentes, ou a frente dos tempos.

    Nos anos 1486, algumas mulheres foram consideradas bruxas por serem hereges ou conhecerem magias incomuns, e também por suas atitudes contra o machismo reinante, foram recriminadas pela Inquisição. 

    A maior inovação da obra do inquisidor Institoris (Kraemer) foi justamente atribuir exclusivamente à mulher a condição de “bruxa”. 

    Antes da publicação do livro Malleus Maleficarum, ou O Martelo das Feiticeiras, e de posse da bula papal, ele havia empreendido esforços para processar mulheres suspeitas de bruxaria. Sempre é mais fácil atacar o fraco, o desconhecido, porque o covarde precisa justificar seus atos como o fez Adolf Hitler, que certa vez disse a um de seus Generais, se não existissem os judeus, precisaríamos criá-los, pra justificar nosso ódio. O inquisidor Institoris, durante um interrogatório preliminar, procurou conectar a mulher a um desvio sexual feminino e a bruxaria. 

    Assim justificou suas maldades obscenas, contra as criaturas desavisadas.

    *Publicado originalmente no Crônicas Cariocas em 11 de abr. de 2023, 23:24

  • A teoria da verruga

    Conheci a teoria da verruga num sábado nublado, na casa da benzedeira mais famosa da região, para onde fui arrastado por minha avó. Eu esperava sentado numa cadeira de palha ao lado da porta enquanto conversavam lá dentro. O marido dela podava as roseiras no jardim. Aquele homem tinha barbas longas e brancas se ligando aos cabelos também longos e brancos, o andar lhe parecia difícil, encurvado, arrastava o pé esquerdo e, sempre que preciso, se dobrava quase completamente sem mexer a perna, num balanço breve e repentino. Das suas orelhas saíam tufos de pelos pretos, que contrastavam com a cor gélida do entorno e aumentavam a minha vigília assustada.

    Eu já o conhecia. Na escola eram contadas inúmeras histórias sobre ele. Uns diziam que devorava crianças, outros que tinha pacto com o demônio, havia ainda quem jurava tê-lo visto vagando no cemitério em noite de lua cheia. A lenda mais conhecida, entretanto, confirmava que, na verdade, ele era o próprio Lobisomem. Nunca faltaram relatos alegadamente verídicos sobre suas metamorfoses. Ainda lembro de uma história que o Júnior contou e assustou a turma. Andava ele com o seu pai durante a noite quando avistaram um vulto parecido com o velho, caminhando arqueado a poucos metros de distância. Segundo o Júnior, o velho estava se transformando e os percebeu ali, então, num pulo entrou no mato fechado. Assim que chegaram lá, encontraram apenas pegadas de lobo se terminando de repente. E nada mais.

    Eu lembrava dessas histórias encolhido na cadeira com o coração a mil, contando os segundos para a minha avó aparecer. Pensei até que ela pudesse querer me trocar por algum serviço mais robusto da benzedeira. O velho começou a falar comigo ainda de costas. Tinha um tom calmo e soltava palavra por palavra com tal harmonia que me surpreendeu mais do que as próprias histórias sobre ele. Disse que a natureza tinha o seu tempo e nós deveríamos respeitá-lo. Disse que a poda das roseiras era importante para crescerem mais belas e saudáveis. Disse que a vida é também assim, pois precisamos, às vezes, enfrentar dificuldades para nos tornarmos mais fortes. Disse que era como passar Merthiolate na ferida, que mesmo ardendo um pouco, logo nos deixava prontos para outra. Só então se virou para mim, trazendo consigo algumas rosas negras. Me alcançou uma delas e sentou com dificuldade no degrau ao meu lado, enquanto eu sentia por osmose a ardência repulsiva do Merthiolate nos joelhos.

    O tom sereno da sua voz me ceifou o medo, ou talvez fosse a conversa sobre como podemos aprender observando a natureza. Não sei se foi por influência do velho que acabei me tornando biólogo, mas encontro seguidamente pesquisas científicas comprovando muitas das suas afirmações. Contou-me, naquela manhã, a teoria da verruga. Antes, no entanto, alertou-me que poucas pessoas conheciam a teoria e só uma fração delas é que a compartilhava com os mais novos. Eu mesclava o olhar entre o velho e as rosas. Os joelhos já não ardiam mais. Na verdade, poderia ouvi-lo o resto do dia sem que notasse passar um único minuto.

    Depois de um tempo a minha avó apareceu, trocou duas ou três palavras com o velho e fomos embora. Ele me entregou também as outras rosas antes de levantar e seguiu naquele andar lento e curvo para os fundos da casa. As rosas deram o que falar, decoraram a cômoda da sala intactas por semanas. São lembradas até hoje quando reunimos a família e relembramos as aventuras da infância. A Maria José acha que elas tinham algum feitiço mal explicado. Eu nunca levei essa história a sério. E até hoje não sei porque fomos à casa da benzedeira naquele sábado.

    Encontrei o velho ainda duas vezes. Num fim de tarde nos cumprimentamos aos risos como amigos, causando surpresa à minha mãe, que me apertou a mão. Ao que parece, também ela estava contaminada pelas falácias sobre o marido da benzedeira. Nosso último encontro foi estranho. Ele caminhava com uma bengala arqueada na rua. Mirava preocupado cada palmo do chão. Tentei conversar, mas fui alvo de grunhidos aborrecidos. E seguiu naquele passo, sem erguer os olhos, pegando a estradinha que levava à sua casa.

    Há trinta anos o velho me contou a teoria da verruga e, desde então, encontrei apenas outras duas pessoas que também a conheciam. O primeiro foi um simpático senhor com quem dividi quarto no hospital. Tivemos longas conversas sobre a vida durante os três dias em que fiquei internado e, de certa forma, senti saudades do velho e um doloroso remorso por não ter aproveitado mais os meus avós. Tive alta e jamais tornei a vê-lo. O segundo foi um bêbado na rodoviária. Chegou quieto e sentou no chão,
    achei que pediria dinheiro para outra dose, mas puxou conversa num tom filosófico e, sem mais nem menos, chegou na teoria da verruga. Atendi rapidamente o celular e quando desliguei ele não estava mais lá. O ônibus apontou, subi no primeiro degrau e ainda conferi o entorno uma última vez, sabendo que não o veria de novo.

    O curioso é que nas duas ocasiões, quando tive alta do hospital e quando assisti o bêbado filosofar na rodoviária, sonhei com o velho me entregando as rosas. Não posso garantir que exista alguma ligação entre a teoria da verruga, as rosas negras e o velho. Também não posso garantir que haja alguma veracidade na teoria. O fato é que, às vezes, as coincidências da vida aparecem assim, nessas idas e vindas, como se o tempo não passasse, como se pudéssemos voltar a um sábado cinzento de trinta anos atrás e lembrar de tudo, como se fosse ontem, como se qualquer suspiro se desse por um desdobramento daquele instante, daquela conversa despretensiosa entre uma criança e um velho, erigida com medos e narrativas, rosas e teorias.

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