Crônicas

  • A teoria da verruga

    Conheci a teoria da verruga num sábado nublado, na casa da benzedeira mais famosa da região, para onde fui arrastado por minha avó. Eu esperava sentado numa cadeira de palha ao lado da porta enquanto conversavam lá dentro. O marido dela podava as roseiras no jardim. Aquele homem tinha barbas longas e brancas se ligando aos cabelos também longos e brancos, o andar lhe parecia difícil, encurvado, arrastava o pé esquerdo e, sempre que preciso, se dobrava quase completamente sem mexer a perna, num balanço breve e repentino. Das suas orelhas saíam tufos de pelos pretos, que contrastavam com a cor gélida do entorno e aumentavam a minha vigília assustada.

    Eu já o conhecia. Na escola eram contadas inúmeras histórias sobre ele. Uns diziam que devorava crianças, outros que tinha pacto com o demônio, havia ainda quem jurava tê-lo visto vagando no cemitério em noite de lua cheia. A lenda mais conhecida, entretanto, confirmava que, na verdade, ele era o próprio Lobisomem. Nunca faltaram relatos alegadamente verídicos sobre suas metamorfoses. Ainda lembro de uma história que o Júnior contou e assustou a turma. Andava ele com o seu pai durante a noite quando avistaram um vulto parecido com o velho, caminhando arqueado a poucos metros de distância. Segundo o Júnior, o velho estava se transformando e os percebeu ali, então, num pulo entrou no mato fechado. Assim que chegaram lá, encontraram apenas pegadas de lobo se terminando de repente. E nada mais.

    Eu lembrava dessas histórias encolhido na cadeira com o coração a mil, contando os segundos para a minha avó aparecer. Pensei até que ela pudesse querer me trocar por algum serviço mais robusto da benzedeira. O velho começou a falar comigo ainda de costas. Tinha um tom calmo e soltava palavra por palavra com tal harmonia que me surpreendeu mais do que as próprias histórias sobre ele. Disse que a natureza tinha o seu tempo e nós deveríamos respeitá-lo. Disse que a poda das roseiras era importante para crescerem mais belas e saudáveis. Disse que a vida é também assim, pois precisamos, às vezes, enfrentar dificuldades para nos tornarmos mais fortes. Disse que era como passar Merthiolate na ferida, que mesmo ardendo um pouco, logo nos deixava prontos para outra. Só então se virou para mim, trazendo consigo algumas rosas negras. Me alcançou uma delas e sentou com dificuldade no degrau ao meu lado, enquanto eu sentia por osmose a ardência repulsiva do Merthiolate nos joelhos.

    O tom sereno da sua voz me ceifou o medo, ou talvez fosse a conversa sobre como podemos aprender observando a natureza. Não sei se foi por influência do velho que acabei me tornando biólogo, mas encontro seguidamente pesquisas científicas comprovando muitas das suas afirmações. Contou-me, naquela manhã, a teoria da verruga. Antes, no entanto, alertou-me que poucas pessoas conheciam a teoria e só uma fração delas é que a compartilhava com os mais novos. Eu mesclava o olhar entre o velho e as rosas. Os joelhos já não ardiam mais. Na verdade, poderia ouvi-lo o resto do dia sem que notasse passar um único minuto.

    Depois de um tempo a minha avó apareceu, trocou duas ou três palavras com o velho e fomos embora. Ele me entregou também as outras rosas antes de levantar e seguiu naquele andar lento e curvo para os fundos da casa. As rosas deram o que falar, decoraram a cômoda da sala intactas por semanas. São lembradas até hoje quando reunimos a família e relembramos as aventuras da infância. A Maria José acha que elas tinham algum feitiço mal explicado. Eu nunca levei essa história a sério. E até hoje não sei porque fomos à casa da benzedeira naquele sábado.

    Encontrei o velho ainda duas vezes. Num fim de tarde nos cumprimentamos aos risos como amigos, causando surpresa à minha mãe, que me apertou a mão. Ao que parece, também ela estava contaminada pelas falácias sobre o marido da benzedeira. Nosso último encontro foi estranho. Ele caminhava com uma bengala arqueada na rua. Mirava preocupado cada palmo do chão. Tentei conversar, mas fui alvo de grunhidos aborrecidos. E seguiu naquele passo, sem erguer os olhos, pegando a estradinha que levava à sua casa.

    Há trinta anos o velho me contou a teoria da verruga e, desde então, encontrei apenas outras duas pessoas que também a conheciam. O primeiro foi um simpático senhor com quem dividi quarto no hospital. Tivemos longas conversas sobre a vida durante os três dias em que fiquei internado e, de certa forma, senti saudades do velho e um doloroso remorso por não ter aproveitado mais os meus avós. Tive alta e jamais tornei a vê-lo. O segundo foi um bêbado na rodoviária. Chegou quieto e sentou no chão,
    achei que pediria dinheiro para outra dose, mas puxou conversa num tom filosófico e, sem mais nem menos, chegou na teoria da verruga. Atendi rapidamente o celular e quando desliguei ele não estava mais lá. O ônibus apontou, subi no primeiro degrau e ainda conferi o entorno uma última vez, sabendo que não o veria de novo.

    O curioso é que nas duas ocasiões, quando tive alta do hospital e quando assisti o bêbado filosofar na rodoviária, sonhei com o velho me entregando as rosas. Não posso garantir que exista alguma ligação entre a teoria da verruga, as rosas negras e o velho. Também não posso garantir que haja alguma veracidade na teoria. O fato é que, às vezes, as coincidências da vida aparecem assim, nessas idas e vindas, como se o tempo não passasse, como se pudéssemos voltar a um sábado cinzento de trinta anos atrás e lembrar de tudo, como se fosse ontem, como se qualquer suspiro se desse por um desdobramento daquele instante, daquela conversa despretensiosa entre uma criança e um velho, erigida com medos e narrativas, rosas e teorias.

  • O azul e a lágrima

    A manhã estava calma. Calma como um gato se espreguiçando.

    Tinha combinado de almoçar com um amigo, ali pros lados do Mercado Central. Um passeio tipicamente mineiro: caminhar pelo centro sem pressa, sem carros, sem aquela multidão apressada. Nem buzinas, nem o relógio invisível cobrando compromissos. Conversávamos sobre música, livros e algumas bobagens que fazem bem. Uma moça gritou:

    — Gente, olha ali! O que é aquilo, meu Deus?

    Na esquina da Augusto de Lima com a São Paulo, dois moleques batiam num velho. Tentavam arrancar algo dele. O homem reagia como podia. Dava uns sopapos, levava outros.

    A cena corria diante dos olhos da cidade. O povo assistia. Comentava. Protestava — só com a boca. Braços e pernas, não. Esses estavam mudos. Uma moça gritou:

    — Eu filmei tudo! A polícia vai pegar! Tá tudo aqui!

    Até que um homem, forte e corajoso, entrou no meio. Encarou os pivetes. Eles correram. Sumiram como ratos quando a luz acende.

    A tristeza embaçou minhas vistas. A manhã perdeu o brilho. O sol, as árvores, os pássaros — tudo parecia cenário falso.

    Que cidade é essa que assiste calada um velho apanhar? A paisagem virou ruína.

    O homem forte correu atrás dos garotos. Não sei no que deu.

    Fui almoçar com meu amigo. Porque, mesmo triste, a gente almoça. Conversa. Toca a vida.

    Ficou só uma prece, em forma de crônica:

    Alguém, por favor, olhe para esta cidade.

  • Lambuza-te da tua fatia de tempo

    Uma casualidade remeteria um leitor comum a uma pizzaria. Embasbacar-se-ia, pois, com o sentido literalmente delicioso de uma plaquinha assim, despretensiosa assim, alocada aleatória ou propositalmente junto a três relógios de paredes com o mesmo design, mesmo compasso, horários diferentes. “Lambuza-te ou te devoro”, é a moral da história – e uma citação que pretendo patentear, de tão boa que ficou [fique à vontade para citar, mas já faz um pix! 🙂 ]

    A história, que não é estória, refere-se a todo mundo. Todos os seres, todos os movimentos precisos de ponteiros desalinhados. A vida escorre por entre os dedos. É preciso lambuzarmo-nos, sem o tal do medo de ser feliz.

    Felicidade. Sentimento inquieto e por vezes [desa]brochante, viajante de nós, quando queremos a ela nos agarrar num abraço bem dado e eterno; tal qual uma intrigante corriola, flor azul do alvorecer, argyreia nervosa, flor de campana ou glória da manhã, cinco nomenclaturas para a espécie “ipomoea”, que desabrocha no anonimato das beiras de estradas… um gargalo de uma bexiga que já foi preenchida com o ar de pulmões sadios, que já conheceu a plenitude de se sentir completa e, por um triz pffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
    ffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
    ffffffffffffffffffffffff!

    murchou.

    Acordar entre os cantos e as foligens, adufes e pandeiros transviados, vistas semisserradas que saboreiam a preguiça da manhã pós-carnavalesca em cinzas; dia útil, e não; corpo ressequido de um tépido entremeio, exaurido e extasiado a indagar as horas – preguiça em se esticar na busca inevitável do celular- e o tempo, que ressoa por entre a transparência opaca do sutil tecido das cortinas.

    Carnaval, carne ao aval social. Retumbam canções com tan-tan-tan-tans que deixam fluir a vida. A felicidade deveria ser encapsulada, posta como pingente em um cordão junto ao coração, por dentro da camisa. Ao alcance. Nem precisaria ser aberta, por estar coladinha, assim, na ideia de estar aqui.

    Apegos e desapegos; safra nova de uma safra primeira. Primeiro, aprendemos o funcionamento do mundo. A escola serve para isso, as matérias, as séries e as provas. Então, ao conhecer vem a liberdade; mudamos. Afronta seria não nos transformarmos. Conhecer as coisas empodera as coisas, e nós. Um suposto erro ortográfico pode ser a concepção criativa – e intencional – de uma definição que ainda não foi definida. Troca-se uma letra e um erro é instantaneamente evidenciado em vermelho por uma
    tecnologia de análises de ponta. Enganei você, máquina! Acho, assim, que a revolução tecnológica está em um outro percurso que o meu, enfim; não vislumbro pois a extinção da minha espécie, modifiquei meu próprio caminho com as ferramentas que tenho em mim, o saber. Desvairadamente, assim, lambuzo-me do que enxergo, das minhas lentes-bagagem. Me mimetizo à paisagem urbanizada. Teletransporto-me ao som de uma cuica à segurança analógica de mim mesma, tão evoluída em ser desvairada.

    O mundo é dos loucos, afinal.
    Das glórias matinais, anônimas, sem eira
    bem beira.
    Da felicidade (des)encapsulada.

  • Vamos tomar um café?

    — Um café? Sim, obrigada!
    — Toma um café comigo? Claro, vamos!
    — Aceita um cafezinho? Sim, aceito!

    Vejam só: em todas essas frases há um convite que vai além da xícara. Há cumplicidade, um gesto de carinho, quase um abraço em forma de aroma.

    Da história do café, lembro de uma narrativa antiga — um pastor de cabras africano, com a ajudinha de um monge, teria descoberto os efeitos revigorantes daquele grão escuro.

    Verdade? Talvez. Isso não importa. O que importa é o que ele representa: esse pequeno ritual que cabe numa xícara e aquece a alma.

    Tomar um café com alguém é mais do que saciar um gosto — é um tempo concedido, uma pausa generosa, um olhar que escuta. É o gesto de quem diz: “estou aqui com você”.

    O perfume do café pela manhã invadindo a casa é quase um sinal de que o mundo segue. É continuidade, é calor, é o anúncio de que mais um dia começou — e, com sorte, com afeto.

    Ainda que o café seja solitário, mesmo assim  ele faz companhia. É o cheiro que abraça. O gosto que desperta. O silêncio compartilhado com a gente mesma.

    O café da tarde tem seus rituais. Com a vizinha, com o parceiro, ou mesmo que você esteja só e com a cadeira vazia à sua frente, o valor de uma xícara é incontestável. Ele tem esse poder de reabastecer não só a energia do corpo, mas a ternura do coração.

    Ninguém convida um desafeto para um café. Isso diz muito. Café é símbolo de reconciliação, de recomeço, de partilha. Já esteve em cenas emblemáticas de filmes, já foi desculpa para uma boa conversa, já foi até poesia.

    Hoje, com o preço subindo mais do que o aroma na cozinha, na cafeteria ou no escritório, convidar alguém para um café virou quase um luxo afetivo. Mas vale cada centavo. Porque o café, mesmo caro, é a essência da cordialidade, do apreço e da simpatia. Por isso sempre vai ter o seu valor.

    Então, não se furte a um convite:
    Vamos tomar um café?

  • República Evangélica do Brasil

    Eles estão espalhados pelos mais afastados recônditos do país, onde pode faltar creche, farmácia, delegacia e agência do Banco do Brasil, mas nunca faltará uma igreja evangélica. Dentro de poucos anos, serão a maior religião do Brasil que, para decepção dos servos de Francisco, deixará de ser o maior país católico para contar com um dos mais numerosos rebanhos evangélicos do planeta. Na liderança, os EUA, terra do capitalismo, do consumismo, do individualismo e do protestantismo, com seus 160 milhões de adeptos. Entretanto, ao contrário do que ocorre aqui, na terra de tio Sam os evangélicos estão em baixa, sobretudo entre os jovens. Para compensar, conquistaram popularidade na América Latina e na África, onde estão em franca expansão.

    Mas em nenhum lugar do mundo o crescimento é tão vertiginoso como no Brasil. Há meio século, havia um deles a cada 50 brasileiros. Atualmente, um em cada 3. A retórica simplória que utilizam ajustou-se à nossa natureza crédula (chamados que são de ‘crentes’). Nos locais que se ressentem da presença do Estado como nas favelas e nos morros cariocas, áreas controladas pela bandidagem e pelas milícias, estenderam sua influência, convivendo harmonicamente com o tráfico e a contravenção.

    Os neopentecostais ganham espaço dando respostas concretas a problemas cotidianos do povão e uma pregação mais próxima à sua sofrida realidade, cujas razões não lhes interessa compreender. Através da ‘ideologia da prosperidade’, oferecem a promessa de rápida ascensão social, ainda nessa encarnação, que ninguém aguenta esperar a redenção post mortem no paraíso celestial. Tudo mediante uma módica contribuição mensal de 10% dos proventos, através da qual os missionários intermediam a intervenção de Jesus, com quem mantêm uma estreita relação de compadrio.

    Inspirado no american way of life, estimulam a cultura do empreendedorismo em que cada um é (ou julga ser) senhor de si mesmo, sem que o patrão lhes extraia a mais valia. Esse modelo se adequa à precarização da força de trabalho em que o indivíduo se desdobra 18 hs ao dia por uns trocados, na ilusão de que, com a bênção do pai celestial, virá a se tornar um Neymar.

    Mas se os espoliados fiéis penam sem sair do lugar, o mesmo não se pode dizer dos bispos. A apropriação dos dízimos mais as generosas isenções tributárias a que têm direito, possibilitou aos aspirantes a pastor exercer uma modalidade lucrativa de negócio. Investindo pouco e sem necessitar de grande preparo, a não ser um desempenho verborrágico convincente, puderam encontrar uma oportunidade de rápido enriquecimento. A ponto de alguns deles amealharem gigantescas fortunas, ostentando vidas de luxo, com bênção divina. Comportamento bem distante do ideal franciscano de opção preferencial pelos pobres, inspirado nas palavras do Mestre: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mateus 19:24), versículo que os crentes gostariam de expurgar do Novo Testamento.

    A vida singela e despojada do homem de Nazaré que repelia os mercadores fariseus e se aproximava dos pecadores e marginalizados presta-se melhor, segundo avaliam, à de um esquerdopata. O deus que evocam assemelha-se mais a um agente financeiro que retribui as colaborações pecuniárias, não com a felicidade eterna, mas com polpudos retornos monetários e a perspectiva de um mundo de abundância material regado a grana e luxúria.

    Os evangélicos não se mobilizam em praticar ações sociais em prol da coletividade. Se alguém padece em condições aviltantes, a culpa não é do sistema, mas unicamente do indivíduo que falhou em seu empenho pessoal.

    O crescimento evangélico foi possibilitado pela permissiva facilidade com que são tratados pela legislação. Num país onde montar uma barraquinha de doces exige um mar de obrigações, abrir um templo requer um mero registro em cartório. E para habilitar-se pastor não há necessidade de graduação em teologia ou qualquer outra exigência. Enquanto na calvinista Europa, sua formação exige uma série de pré-requisitos, aqui qualquer charlatão pode exercer de imediato o ofício.

    Curiosamente, o primeiro governo de Lula, hoje acusado de perseguição, criou facilidades para a prática da religião, isentando as igrejas de uma série de responsabilidades estatutárias. Nesse período ocorreu uma explosão na quantidade de igrejas. Segundo o IBGE, o número de estabelecimentos religiosos no país em 2022 superou os de ensino e saúde juntos!

    Se o PT foi condescendente com o crescimento vertiginoso dos evangélicos, foi Bolsonaro quem capitalizou com competência o apoio dessas igrejas angariando através de medidas populistas o apoio da classe, vindo a se tornar um ser ungido, enviado pelos deuses para salvar a nação do perigo ‘marxista’ e ‘ateu’. Conseguiu até difundir sua política armamentista e seu discurso raivoso recheado de palavras chulas num universo em que deveria prevalecer tolerância e amor ao próximo. E ainda colocou no STF um juiz ‘terrivelmente evangélico’ que acima dos preceitos jurídicos, julga pelo que reza a Bíblia.

    Mesmo sabendo que jamais terá apoio deles, Lula teme exercer maior fiscalização aos evangélicos e acabar com a farra de privilégios. Se os militares e os políticos medem palavras, os pastores soltam o verbo com a certeza de que não existe, sob o céu de Jeová, força capaz de refrear sua atuação.

    Conseguem assim emplacar o que lhes agrada. Ficam incomodados com a existência de homossexuais (direcionando-os à ‘cura gay’) e de banheiros unissex, mas não estão nem aí com os desvalidos famintos. Passam o pano para os estupradores Robinho e Daniel Alves (ambos evangélicos) mas amaldiçoam meninas que querem tirar de seu corpo o fruto de uma violência sexual.

    Contam com o suporte da poderosa Frente Parlamentar Evangélica. Não há no Congresso corporações de católicos, espíritas, muçulmanos, judeus, budistas, umbandistas ou ateus. Tampouco, existe ‘bancada verde’, ‘bancada indígena’ ou ‘‘bancada antirracista’.  Mas tem a ‘Bancada da Bíblia’ que, ao lado da ‘Bancada do Boi’ e a ‘Bancada da Bala’, formam a famigerada tríade BBB, unidas em prol do atraso.

    Dispõem também do controle de meios de radiodifusão, obtendo concessões públicas que deveriam promover assuntos de interesse de toda a coletividade. Recentemente, perceberam maior eficácia nas redes sociais onde conseguem com baixos custos obter comportamento bovino da massa de fiéis. Os pastores dispõem de milhões de seguidores repassando-lhes fake news.

    Os evangélicos enfiam goela abaixo seus princípios morais a todos os brasileiros e brasileiras inclusive aos que professam outros credos. Ao contrário das outras religiões, boicotaram medidas de combate à COVID porque obstavam as aglomerações (e consequentemente a receita financeira).

    Na Amazônia, mantêm boas relações com desmatadores e garimpeiros ilegais, quase todos evangélicos (a quem enxergam como ‘empreendedores’). Querem ‘catequizar’ na marra índios e quilombolas, levando-lhes ‘a palavra de Deus’. É conhecida a virulência com que atacam o candomblé e as religiões de matriz africana que associam ao diabo.

    Alinham-se a governos de direita que desprezam os princípios da democracia e os direitos humanos a que associam ao comunismo. 

    Se com 30% já conseguem manipular o país, imagine o que farão quando se tornarem maioria! Sua intenção é claramente implantar uma teocracia, a República Evangélica do Brasil. Converta-se voluntariamente antes que seja obrigado a fazê-lo.

  • A esquecida

    Cerca de quatro anos pós a morte do marido, D. Zulmira começou a esquecer as coisas. Não sabia onde guardara roupas, sapatos ou utensílios da casa. Letícia, a filha caçula, chegou a alertar a irmã:

              – E se ela deixar de tomar os remédios para pressão?

              – Precisamos ficar atentas. Pode ter um acidente vascular cerebral… – respondeu Soraia, que já pensava na possibilidade de contratarem uma cuidadora.  

              Aos lapsos de memória, acrescentavam-se a tristeza e a apatia. D. Zulmira passava horas numa poltrona da sala, o olhar perdido. Recusava até que ligassem a televisão. Não lhe empolgavam mais as novelas nem os programas gastronômicos, dos quais chegara a copiar receitas para agradar o marido. Valfredo era um gourmet, e a mulher vez por outra lhe preparava comidas diferentes.   

                Para ver se distraía a mãe, Soraia propôs que se mostrasse a ela fotos da família. Sobretudo aquelas em que aparecia com Valfredo, para lembrar-lhe o tempo que passara ao lado do marido. Eram muito bem casados, e certamente as imagens da vida em comum concorreriam para reavivar-lhe a memória e deixá-la mais animada.      

               Assim foi feito. Letícia tirou da gaveta do velho guarda-roupa a caixa em que dormiam, já um pouco amareladas, fotografias da família. Havia muitas dos dois juntos, algumas tiradas quando as filhas ainda nem tinham nascido. O casal aparecia em festas juninas, risonhos, ou enlaçados em bailes de Carnaval. A garota fez uma seleção das que melhor traduziam o convívio amoroso dos dois.

             Numa tarde em que D. Zulmira seguia a rotina de nada fazer e ficar olhando para o tempo, Letícia sentou-se junto dela e começou a mostrar as fotos. Tinha feito uma seleção cronológica, apresentando primeiro as do tempo em que namoravam. Depois vinham as do período em que eram noivos, e por fim as de casados.   

            D. Zulmira olhou de início sem curiosidade, as imagens pareciam não impressioná-la. Mas a partir de certo momento seus olhos começaram a brilhar, e o rosto adquiriu uma expressão intrigada. Olhou para a filha como se não entendesse o que via. Letícia também não compreendeu essa reação, e muito menos quando a mãe lhe fez a pergunta:

            – Quem é essa que está com seu pai?

            – Quê?! Quem poderia ser, mãe? É a senhora!

            – Não sou eu! Tire esses retratos daqui!

            A garota não sabia o que fazer. Chamou Soraia e lhe explicou o que estava acontecendo. A outra ficou surpresa. Não era ela?! Pediu à irmã que recolhesse as fotos e as levasse para a gaveta do guarda-roupa. Antes que Letícia fizesse isso, a mãe pediu para vê-las de novo. Como se quisesse se certificar.  

             – Não sou eu! Seu pai está com outra. Agora fiquei sabendo que ele tinha uma amante…    

            As duas se olhavam, perplexas. D. Zulmira até então esquecia objetos ou nomes de pessoas. Agora parecia não se lembrar do próprio rosto. No dia seguinte, enquanto tomavam café, viram a mãe se dirigir à sala com uma tesoura. Assustaram-se e ficaram imaginando qual seria o seu propósito.    

            Depois de se sentar na poltrona onde costumava passar o dia, D. Zulmira falou:

             – Vão buscar aqueles retratos.

             – Para que a senhora quer? – assustou-se Letícia.  

             – Você vai ver. Quero os retratos aqui.  

             A moça obedeceu e pouco depois voltou com a caixa. Antes de entregá-la, pediu: 

              – Não vá, por favor, fazer nenhuma besteira.   

               D. Zulmira abriu-a e começou retirar as fotos. Olhava-as uma por uma e confirmava:    

               – Não sou eu. Não tenho esse cabelo, nunca usei essas roupas nem esses brincos.  

               Pegou então a tesoura e começou a cortá-las para delas extrair “a outra” que ocupava o seu lugar. As filhas tentaram detê-la, mas logo viram que seria impossível. A mãe tinha uma expressão raivosa e pareia capaz de agredir quem procurasse impedi-la.  

              D. Zulmira colocava as partes cortadas numa mesinha contígua à sua poltrona. Com o tempo, era grande o número de recortes que a mostravam em situações diversas, vestindo diferentes roupas e com variadas expressões fisionômicas – ora risonha, ora atenta, ora plácida, olhando para alguém que não se conseguia ver. Nas caixas restaram as fotos mutiladas, em que também não se sabia quem Valfredo fitava ou tinha nos braços.  

             Terminada a obra, ela fechou o recipiente e deu um suspiro, como se tivesse passado por algo muito incômodo e enfim sossegasse.

             Letícia apontou para os recortes em cima da mesa e perguntou:   

             – O que a gente faz com eles?  

             – Pode esconder ou dar fim. Para mim tanto faz.

  • Do anonimato e outras não-percepções modernas

    Em meio a muitos, me diluo. Entre tantos, sou menos que um. Passo despercebido aos olhares. Percebo que alguns olhos passam por mim. Eu noto esses olhares discretos. Olhos que não me registram em sua retina. Não focam em mim porque não me percebem. Minha imagem sumirá da lembrança deles antes que percebam. Lembrança efêmera, tão consistente quanto a névoa diáfana que sobe do cubo de gelo.

    Nenhum registro, nem o da minha voz. O que eu disse não foi escutado. Se fui ouvido, minhas palavras não ficaram na memória. E se algo permaneceu gravado, será atribuído a outra pessoa aparentemente mais presente.

    Os atos que fiz não deixaram rastros. Nenhuma pegada. Nada será atribuído a mim mesmo tendo feito algo. Minhas realizações não ecoarão na eternidade. Ou serão creditadas a outros. Sou capaz de ir antes, vasculhar e retornar acompanhado sem que percebam que lá estive. Completamente despercebido exploro sem ser notado. Vejo, sem ser visto. Nada de especial, perfeitamente mimetizado na paisagem.

    Mas estou ali. Estive ali. Ocupei espaço, me movimentei. Mesmo ignorado.

    Anônimo, eu sou.

  • Tentar construir uma verdade!

    Um homem rico chamado Calvicius Sabinus, tinha um cérebro com uma memória minúscula, que o deixava com saia justa por diversas ocasiões sociais. 

    Por isso resolveu gastar uma fortuna contratando escravos culturais, para preencher seu vazio intelectual, mesmo sabendo que nunca conseguiria absorver nada estudado pelos contratados. 

    Suas vagas lembranças eram tão ruins que em alguns momentos os nomes de seus amigos, Ulisses, Aquiles e Príamo, sumiam rapidamente sem deixar vestígios. 

    Os escravos seriam sua memória pra cada tema que lhe fosse interessante conhecer, e conversar com os intelectuais de sua época. Nada o impediu de querer parecer um homem culto, por isso não mediu gastos na contratação dos escravos.

     Um deles seria para conhecer a fundo Homero, outro para poder conversar com Hesíodo, e assim atribuiu a cada escravo, a tarefa de conhecer muito bem cada um dos nove poetas líricos. 

    O custo da empreitada foi tão alto que daria pra comprar uma biblioteca com diversas estantes, possíveis de preencher qualquer criatura com conhecimentos atraentes.

    Seria muito interessante se pudéssemos deixar outras pessoas carregarem nossas partes mais íntimas, que nos tornam nobres, mas estaríamos desvalorizando quem sempre consagramos com talentos especiais, aqueles que carregam somente consigo, habilidades extras de valor social, e não em malas a tiracolo para preencher suas falhas.

    Transgredir nossa natureza é tão melancólico quanto querer viver eternamente. Assim como a velhice é a principal fase da sabedoria, nossas limitações a cada tempo, nos servem de marca registrada, e não de acúmulo de perdas, porque formam o conjunto de resultados da construção pregressa. 

    Reinventar-se ou reconstruir-se, não são sinônimos de atos que devemos incluir escravos intelectuais para suprir nosso ego. 

    Entre 1626 e 1628, um potente navio de guerra foi construído pelo governo Sueco. Como o Sr. Calvicius, o Rei Sueco gastou uma fortuna para fazer navegar o navio Vasa. Foi uma obra inovadora, porém, com a parte superior muito pesada, pois continha setenta e dois canhões com 24 libras cada um, além disso o navio não tinha lastro suficiente, e sua falta de estabilidade o levou a naufragar poucos minutos após zarpar do porto. 

    O naufrágio seja pela vida inventada ou desestruturada em seu projeto inicial, é inevitável.

    Assim como a engenharia, a natureza humana tem suas particularidades e formas adequadas de funcionar.

    Basta que façamos um pouco de mea-culpa, e exercitemos a empatia, caso contrário, nos tornamos vítimas de nosso capricho, ao tentar construir uma verdade fatal a realidade.

  • A eterna mania de estar pronta para reagir

    Ontem foi dia de esperar a chuva torrencial prometida pela meteorologia. Não fui ao Pilates, imagina ter que voltar ensopada para casa às 8h da manhã. Lá pelas 11h, olhei o céu da minha varanda, dia claro. Só nuvens fofinhas a decorar a paisagem. Mas decidi não fazer a caminhada diária, vai que o tempo muda de repente e a danada da chuva me pega desprevenida. 

    À noite, teria o aniversário de uma amiga querida e depois um show. Por volta das 19h30, ouvi umas trovoadas, depois vinte minutos de chuva forte com pingos grossos e o receio de passar sufoco para chegar nos eventos ou sair de lá. Botei o pijama e aguardei com paciência o dilúvio. 

    Enquanto observava o asfalto secar, senti uma admiração profunda por todos que apostaram na sorte. Pelos amigos que foram encontrar a aniversariante e pelos desconhecidos que curtiram a noite dançando no show.

    A vida sempre ensina: palavras, promessas e previsões o vento leva. A realidade é feita da aposta no agora. 

    Será que amanhã vai chover? 

    Não importa!

  • Comunista

    Sou comunista! Antes que essa escandalosa revelação afaste os leitores de minha repugnante companhia (tal qual acontecia com os leprosos e lazarentos da Idade Média), apresso-me em oferecer alguns esclarecimentos para tentar aplacar a aversão de meus detratores.

    Aviso logo: não sou comunista tipo saudosista, na acepção estrita do termo, o autêntico comunista que se espelhava nos antigos regimes da URSS e da China. Dos tempos, em que para fazer jus ao título, o aspirante a comunista tinha que ralar, adquirindo uma sólida formação intelectual com base em leituras das obras clássicas de Engels, Gramsci, Rosa Luxemburgo, Adorno, Sartre, Marcuse e outros autores marxistas chiques que faziam furor entre a juventude rebelde dos anos 60. Pensadores esses cujos ensaios, vejo-me obrigado a confessar, como comunista de meia tigela que sou, conheço muito pouco.

    Nos círculos mais sofisticados da intelectualidade, era charmoso afirmar-se ‘de esquerda’, que significava ser esclarecido, em oposição aos burgueses alienados, presos a ultrapassados dogmas, desprezados por sua falta de conhecimento e de consciência social. Sim, caro leitor, houve uma época em que as pessoas cultas é que eram admiradas e valorizadas socialmente.

     Mas os ventos mudaram de direção. Nesses tempos de Inteligência Artificial e de bitcoins, quem é burro e rico é que tem prestígio. Naufragaram socialistas, emergiram socialites. Ser instruído perdeu o charme e o saber passou a ser mercadoria barata, acessível a um clique de mouse.

    No mundo atual, ganharam status os influencers que, com suas pregações vazias na internet, amealharam legiões de seguidores, que passaram a pautar sua visão de mundo não pelos grandes compêndios da literatura universal mas por curtas mensagens de WhatsApp. Assimilaram um entendimento estereotipado de como se comportam as coisas, que pode ser identificado pelo seu ideário: não acreditar na vacina, na ciência, nas escolas, no processo eleitoral, no STF, ser negacionista do clima, acreditar na balela da meritocracia, adotar a Bíblia como única fonte de informação confiável, ser avesso à cultura e às artes, não assistir a Globolixo, acusar os artistas de rapinarem dinheiro público pela Lei Rouanet e outros chavões que lhes foram impingidos pelos formadores de opinião.

    Caso não seja um desses pobres diabos cujo conhecimento (ou a ausência dele) foi homogeneizado pelas redes sociais, o leitor por certo tem algum parente ou algum (ex) amigo nessa condição. Trata-se de um padrão que certamente já foi identificado pelo leitor, a cujo comportamento bovino foi conferida a condição de ‘gado’. Perfeita descrição!

    Os mais extremados marcham pelas ruas pateticamente de verde amarelo, louvando o ‘mito’. Esses não têm mais jeito. Vivem uma realidade paralela, converteram-se ao terraplanismo, adotaram a religião neopentecostal rasa ou o ‘catolicismo’ medieval, rezam para pneus, pedem a intervenção de ETs etc. Alguns acamparam nos quartéis pedindo a volta da ditadura e vandalizaram as sedes dos 3 Poderes achando que estavam salvando o país do… comunismo. O próximo estágio será serem presos pelo Xandão ou irem para um manicômio pois perderam totalmente o senso.

    Esses seres simplórios fizeram valer para a palavra ‘comunista’ (ou seus congêneres, ‘esquerdopata’ e ‘petralha’) uma conotação pejorativa, quase como um xingamento, referente a um ente maléfico que devora criancinhas vivas e quer se apropriar dos modestos bens que possuímos para financiar o regime de Cuba e da Venezuela.

    Foram transformados em ‘comunistas’ todos aqueles que mantiveram ideias independentes, os críticos, os inconformados, os contestadores, os que pensam com a própria cabeça, os ‘diferentões’, enfim todos aqueles que, por uma razão ou por outra, não foram varridos pela maré pasteurizadora de imbecilidade que se apropriou dos corações e mentes, recusando-se a tornar-se panacas robotizados.

    Pela nova abrangente classificação, são considerados comunistas, quase todos os jornalistas, estudantes de universidades públicas, médicos do SUS, assistentes sociais, sociólogos, intelectuais, professores, jornalistas, historiadores, poetas, músicos, atores, cineastas, ambientalistas, naturalistas, veganos, esotéricos, umbandistas, pais-de-santo, muçulmanos, zen-budistas, iogues, ateus, feministas, gays, lésbicas, travestis, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, capoeiristas, homeopatas, antirracistas, afrodescendentes, imigrantes, indigentes, moradores de rua, humanistas, excêntricos, democratas, defensores de minorias. Também se enquadram nessa categoria políticos das mais variadas estirpes como Lula, Simone Tebet, Marina Silva, FHC, Alckmin, Sarney, Doria, Kassab, ACM Neto, Rodrigo Maia, Helder Barbalho, Rodrigo Pacheco. E artistas diversos como Caetano, Gil, Maria Rita, Nando Reis, Daniela Mercury, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Emicida, Marcelo D2, João Gordo, Odair José, Ivete Sangalo, Xuxa, Angélica, Fábio Porchat, Luciano Huck, Datena, Paolla Oliveira, Anitta, Pabblo Vitar, Luiza Sonza, Ludmilla, Valesca Popozuda entre tantos. Todos comunistas.

    Como pode ser deduzido, não sobrou muito espaço para quem não se filiar a uma das duas facções em que a sociedade ficou dividida: a dos comunistas e a dos babacas.

    Nesse sentido, mesmo sem comungar das ideias ortodoxas dos ‘comunas’ clássicos, mas ficando ao lado de todos aqueles que mantiveram a lucidez e o discernimento, ante o mar de boçalidade conservadora, posso proclamar com muito orgulho: SOU COMUNISTA!

    *Textos assinados não refletem necessariamente a opinião do portal Crônicas Cariocas. Liberdade de opinião é o nosso principal de pilar!

  • Para melhor agradecer

    Tenho lido críticas por parte de estudiosos da língua ao uso de “Gratidão” no lugar de “Obrigado”. Alegam que esse é um caso de pedantismo e não deve substituir a forma clássica com que nos acostumamos a reconhecer um favor. “Gratidão”, de fato, soa um tanto pomposo. É como se, com a escolha do substantivo, o favorecido quisesse enfatizar o sentimento e não simplesmente mostrar que dele está imbuído.

           – Já que você não pôde ir para o almoço, vim aqui lhe trazer uns sanduíches.   

           – Gratidão.

    Vejam que o beneficiário, ou beneficiária, não se limitou a mostrar-se agradecido(a). Evocou o que no ser humano é uma manifestação de grandeza de alma. Escolhendo o substantivo, leva o receptor a preencher todo um contexto elíptico (“Diante do favor que me fez, demonstro-lhe minha…”). Convenhamos em que isso torna o diálogo um tanto solene e pouco natural.   

    Risque-se então “Gratidão”, estou de acordo. Mas por que usar necessariamente “Obrigado”, e não “Grato”?  Este é sintético, franco, e não sugere nenhum prévio compromisso da parte do favorecido.

    No “Obrigado”, como se sabe, o contemplado “se obriga” ao dever da retribuição. Confessa-se compelido a retribuir o favor mesmo que não esteja sendo sincero. Fala mais por um dever social do que por um impulso espontâneo, que traduza o reconhecimento pelo benefício recebido.

    As coisas que fazemos por obrigação nem sempre são prazerosas. Quem já não ouviu de alguém a justificativa de que “fez porque foi obrigado”, ou seja, de que agiu de determinada maneira porque não tinha alternativa? Por que transferir essa possibilidade ao domínio das gentilezas e dos favores?

    Se “me obrigo” diante de alguém, tenho-o como credor ou juiz – tipos sociais que não nos acostumamos a ver com simpatia. O primeiro nos cobra, o segundo nos julga, e ninguém se sente à vontade quando submetido a tais injunções. 

    Sei que a sociedade se rege por obrigações de uns para com os outros. Mas não fica bem estendê-las ao domínio das reações espontâneas e afetuosas, como as que experimentamos diante de quem nos presta um favor ou concede uma graça. 

    Não vou deixar de dizer “Obrigado”, que já é um clichê e cujo esvaziamento semântico vem se estendendo ao plano morfológico. Tanto é assim que o vêm empregando tanto homens quanto mulheres (para desespero dos adeptos da linguagem neutra, que escolheriam “Obrigade”).

    Mas confesso que prefiro mesmo “Grato”, que não comporta nenhum dever retributivo e tem o mesmo étimo de “Gratidão”. Além do mais, sendo um adjetivo, enfatiza o estado do beneficiário e não a substanciosa grandeza do sentimento. Sem falar que ganha da concorrente pela extensão. Os manuais de estilo, como se sabe, recomendam o uso de palavras curtas, e por esse critério o dissílabo “Grato” é preferível ao polissilábico “Obrigado”.

  • Maria Lattes

    Eu tenho uma amiga que é Maria Lattes. Não, ela não é parente do Cesar Lattes, físico e prêmio Nobel ainda não reconhecido, e que dá nome ao serviço do CNPq que registra a vida acadêmica e profissional de pesquisadores e estudantes. Não sabe o que é CNPq? Pesquisa, vai, porque a estória que vou contar é outra.

    Como eu dizia, tenho uma amiga que é Maria Lattes. Não existe Maria Gasolina? Maria Chuteira? Então, ela é Maria Lattes. Só sai com alguém depois de checar o Lattes da criatura. Juro.

    O motivo faz sentido. Se tem um Lattes robusto é com certeza um homem inteligente, argumenta. Tem assunto, sabe dialogar, não é um bugre. Ou arú, como dizem no Pará, que é a mesma coisa que ignorante mas expresso com menos letras. E tambem uma espécie de sapo.

    Desisti de lembrar a ela que doutorado não é garantia de a criatura ser agradável. Ela sempre rebate e diz que ao menos é uma boa nota de corte social.

    Mas as vezes essa fissura no Lattes cria situações embaraçosas.

    Teve uma ocasião em que ela desmarcou o encontro porque o Lattes do cara era anêmico, palavras dela. Perguntei porque ela tinha marcado sem antes ver o bendito Lattes. Embaraçada ela me estendeu o celular com a foto do cidadão. O cara tinha bom fisico e sorriso confiante, pouco cabelo na cabeça é verdade, mas com mestrado em química em universidade europeia.

    Ela admitiu que marcou por puro entusiasmo inicial. Mas no exame do Lattes, dançou. Ela descobriu que ele estava há um ano sem publicar artigo. Preguiça intelectual é inconcebível, disse-me ela e completou o veto me informando que o cara declarou que na juventude tinha sido remador do Vasco. Ela bufou e, ao descartá-lo disse, Lattes anêmico e eu sou rubro-negra? Sem chance desse arú encostar em mim!

  • A maldição suspensa sobre a história!

    Nosso mundo altivo com defeitos e qualidades, ainda é o único lugar que possuímos pra ficar e respirar normalmente.  

    Por isso não é possível aceitar um bebê fujão que foi devolvido para a barriga da mamãe, porque achou esse lugar horrível, sendo necessária realização de uma manobra chamada parto reverso. Ele não queria assumir sua responsabilidade em sobreviver aqui fora, porque, ao final das contas, é o que devemos aceitar na chegada aos berros na maternidade. 

    O filme “Bardo, falsa crônica de algumas verdades” é onde se passa essa história maluca, de um bebê que preferiu retornar ao útero de sua mãe, ao invés de se adaptar ao frio recém tocado. 

    Essa é a obra mais pessoal do Mexicano Alejandro González Iñarritu, que já ganhou quatro estatuetas do Oscar. O filme não tem estrutura, ordem cronológica ou lógica, é como um sonho sendo dirigido, onde seu centro é a emoção, e ali foi criada uma autoficção íntima. 

    Assim como essa aventura no parto, o professor de psicologia Christopher J. Ferguson, escreveu no livro “Como a Loucura Mudou a História”, sobre diversas personalidades já bem crescidas, importantes em suas comunidades pelo planeta, que provocaram o mal a seu povo, devido aos seus desvios de conduta e práticas maldosas, culminando na desgraça dos povos a seus pés. 

    As interações, natureza/criação, foram as bases para entender o comportamento de Alexandre o grande, que possivelmente seu avanço furioso para a Pérsia, teria sido explicado por Sigmund Freud como sendo o complexo de Édipo de maiores consequências em toda nossa história. Agia de uma forma que hoje chamaríamos de transtorno de personalidade narcisista, e com a dependência de álcool, desfilava arrogância, temperada a falta de empatia com as necessidades dos outros. 

    Outro personagem com passado marcado de sangue, foi figura carregada de ódio em suas mãos durante seu governo, e assim como o ego frágil não lida bem com o fracasso provável, o Sr. Idi Amin se manteve megalomaníaco, no tempo em que presidiu a Uganda, após um golpe militar em 1971, onde esfacelou mais de duzentas mil pessoas durante seu regime terrorista. Quando criança teve uma relação conflituosa com seu Pai, que o rejeitou, e talvez por isso necessitou praticar um governo inteiramente em torno de si como compensação. Retire a maldição suspensa sobre a história, e ela desaparece, assim como a existência. 

    Idealmente sonhamos que nossos governantes ao chegar no poder, com o povo em suas mãos, pudessem agir como no texto a Kénosis Paulina, onde ocorre a transformação do apóstolo Paulo, ao encontrar-se com Jesus de Nazaré, transmuda seu existir, e com lucidez cristalina, opta por “perder tudo, para tudo ganhar”.

  • O umbigo de Faustino

    Dentre todas as anomalias enfrentadas no consultório durante esses trinta e seis anos, a mais estranha foi a de Faustino. Jamais encontrei alguma lógica no seu transtorno, nem sequer cheguei a compreender o processo de cura. Um caso realmente complexo e sem registros na literatura médica. Cheguei inclusive a debater o assunto com um professor da Faculdade de Medicina no Turfe, embora não gostasse de falar sobre os pacientes fora do trabalho. Apostei errado aquele dia. Ele também nunca ouvira falar de doença parecida.

    No início cogitei escrever uma tese sobre o assunto. Achei que tivesse descoberto uma nova patologia para batizá-la com meu sobrenome. No entanto, como até hoje não encontrei uma explicação plausível, fui obrigado a abster meu ego da imortalidade.

    Fiquei tão absorto naquela anomalia que me desliguei das mais simples atividades diárias. Deixei de fazer a barba por semanas, vestia-me com desleixo, dava duas ou três garfadas em cada refeição e recorria ao álcool diariamente. Os demais pacientes me enfastiavam e, no fim das contas, pareciam crianças tolas e simplórias querendo atenção. Aos poucos, uma espécie de desânimo tomou conta do meu corpo. Minha esposa obrigou-me a visitar um colega a quem sempre tive demasiado apreço. Só então é que lentamente voltei a tomar as rédeas da minha vida, com breves recaídas, no entanto.

    Até hoje me pego pensando em Faustino. Mesmo após tanto tempo, ainda recordo o momento em que entrou no consultório com expressão desesperada, usando calça jeans e camisa vermelha. Inquieto, balançava desordenadamente as pernas e mirava o relógio a cada trinta segundos. Ainda que a aflição fosse comum no nosso dia a dia, Faustino tinha algo mais sombrio e trazia consigo um aspecto assustador. As enfermeiras o evitavam. Depois daquelas quatro ou cinco consultas, jamais tornei a vê-lo.

    Faustino enxergava apenas o próprio umbigo. Não conseguia distinguir o rosto de ninguém, nem sequer o seu, quando em frente ao espelho. Nenhum ser humano lhe era perceptível. Tudo o que via era o próprio umbigo. Aconteceu numa terça-feira.

    Quando acordou, o seu rosto não estava no espelho, o rosto do porteiro do seu prédio não estava na janela da guarita, os rostos dos colegas de trabalho não estavam nos lugares devidos. Todos eram múltiplos do seu umbigo. Faustino sabia perfeitamente que aquele era o seu umbigo porque só ele poderia conhecê-lo tão bem.

    Pensou estar delirando. Poderia ter ingerido algum alucinógeno por engano, comido algo estragado ou vencido, afinal, não conferia os alimentos da dispensa antes de prepará-los. A ansiedade o corroía a cada novo acordar porque acreditava que uma boa noite de sono encerraria tal pesadelo. Sua angústia só aumentou.

    Uma semana depois teve uma crise de pânico no supermercado e decidiu me procurar. Não sei por que me escolheu. Talvez fosse o único com horários em aberto no dia. O sofrimento de Faustino era comovente. Ele dizia me conhecer pela voz, pois via o seu umbigo sobre o meu pescoço, sobre o pescoço da secretária, das enfermeiras, dos outros pacientes e médicos na clínica. Não fosse pela voz, poderia ser atendido a cada consulta por uma pessoa diferente.

    Busquei referências médicas para aquele problema. Procurei na prosopagnosia, consultei especialistas, mas não havia relatos de pacientes que enxergavam só o próprio umbigo. Um dos especialistas chegou a rir quando mostrei o histórico de Faustino e me deixou constrangido. Pesquisei em publicações estrangeiras e comprei até um compêndio sobre medicina oriental. Não encontrei uma só linha sobre o assunto nas publicações científicas de então e, arrisco dizer, até hoje não há.

    Na consulta seguinte, expliquei-lhe que não havia referência para o seu transtorno. Inconformado, Faustino teve uma crise nervosa e ergueu a camisa aos gritos para mostrar-me o umbigo que via multiplicado, dezenas, centenas, milhares de vezes em todo e qualquer lugar. Já nessa consulta eu estava absorto no caso. Pouco pude fazer e o dispensei sem uma única palavra de conforto. Temi por sua segurança.

    Dias depois, adentrou abruptamente ao consultório enquanto eu atendia uma jovem acompanhada da mãe. A secretária não conseguiu contê-lo, tamanha a excitação em que estava. Faustino correu para me abraçar, agradeceu efusivamente inúmeras vezes e, em lágrimas, media-me como a querer fotografar meu rosto. Saiu falando alto e agradecendo aos funcionários no corredor.

    Aquela cena esdrúxula me rendeu alguma distinção e desde então a minha agenda passou a ficar abarrotada. A jovem que atendia no momento tratou-se comigo por uma década e seguidamente recordava do paciente emocionado que havia invadido a sua consulta.

    O repentino prestígio apareceu justamente quando o meu autocuidado estava em baixa. O que me intriga nesse caso não é a cura, afinal. O problema não é esse. Às vezes os pacientes adoecem e melhoram sozinhos, não é segredo para ninguém. O problema que até hoje me deixa cismado é outro. Quando Faustino ainda enxergava apenas o próprio umbigo e ergueu a camisa naquela crise nervosa, o umbigo não estava lá.

  • A coleira do cão e a coleira do homem

    Um homem de “maus bofes” passeia pela rua com seu cachorro de estimação que, apesar do jeito ranzinza do seu dono, vai caminhando ao lado dele alegre, saltitante, interessado, bem mais que o seu dono, nas alegrias do mundo.

    A alegria do cachorrinho é fascinante, parece totalmente livre e independente do péssimo humor do seu dono; homem que, ao contrário do cachorrinho, é quem parece estar numa coleira. Invisível, sim, mas uma coleira de qualquer forma.

    Bom, pessoalmente, gosto de um trecho das Escrituras Sagradas que diz que “Basta a cada dia o seu próprio mal”; o problema é que, preso por uma coleira invisível amarrada ao pescoço, o homem vai imerso nos seus pensamentos, apegado ao seu humor, sua má sorte; ao contrário do cachorrinho de estimação dele, que celebra dos primeiros raios de sol, cumprimenta os desconhecidos na rua com olhos sorridentes, pula, agita-se, late e, para desgosto do dono, puxa a coleira, arranca o dono de seus pensamentos automáticos, seu jeito robótico e aí o homem puxa violentamente a coleira do cachorro, puxa com raiva.

    Ora, a mesma cena vi em outros dias, outras praças quando, cúmplices da alegria do bicho de estimação, outros donos soltavam a coleira e deixavam o cachorro correr livre, olhavam de longe, deixavam o bichinho gastar energia, experimentar a alegria, o sol da manhã. Depois, chamavam o cachorro pelo nome, pegavam a coleira de volta, seguiam o rumo numa amizade tão bonita de se ver.

    Porém (ah, porém), este não é o caso do homem que vai agora na rua. O cachorro e seu dono, visivelmente incompatíveis, seguem o rumo deles até que, já distantes de mim e do amigo que voltava  comigo de um bloco de carnaval, somem das nossas vistas para sempre.

  • pausas: cotidiano em . p.o.n.t.o.s .

    Bateu.

    O passarinho no vidro imóvel do topo da porta da varanda. Reflexo de algo ou transparência que não parecia obstáculo? Não se sabe. O barulho foi intenso e assustou a menina, que estava naquela casa, sozinha com seu cachorro. Ambos prestaram atenção, alertas. Silêncio.

    Bateu.

    Uma mão contra a outra. Uma vez. Duas. Três. Silêncio. De novo; uma voz auxilia o movimento. Nada.

    A campainha não funciona ou… não há ninguém? Sem sinal – de vida. Repetição do processo: mãos que se encontram quase sem se sentir, tão ágeis. A voz. Um assobio. Silêncio.

    Bateu.

    O líquido com a fruta, num redemoinho premeditado. Tensão que transforma uma coisa em outra coisa para outra coisa. O metal corta e estraçalha. O barulho distrai os acontecimentos em segundos de quase alquimia. Muito barulho por nada?
    Suco.

    Bateu.

    A sensação de frio, por todo lado; o sol se esconde, o vento se faz perceber. O piso é frio, contra a pele prévia e deliciosamente aquecida. Temperatura em vertigem. Calma. Abrir de olhos, céu todo branco.

    Bateu.

    A saudade do momento antes, que já se foi, morno como um abraço infinito, aquecendo o turbilhão da vida contemporânea. Sangue que corre vívido no corpo, como o vinho é agitado na taça antes de ser aprovado.

    Bateu.

    Tum

    Tum

    Tum

    Tum

  • PODRES PALAVRAS

    Elas não constam de glossários de expressões chulas. Não podem ser categorizadas morfologicamente. Têm em comum apenas a repulsão que provocam, por mais subjetiva e arbitrária que seja essa agregação.

    São repugnantes por natureza. Trazem o signo do horror em suas entranhas. Assim que ouvidas ou lidas, antes mesmo que nosso racional processe a interpretação de seu presumível significado, batem direto no emocional provocando imediata rejeição. Mantém linha direta com o lado obscuro do cérebro, fazendo emergir conteúdos e imagens que preferíamos deixar quietos nos porões do esquecimento.

    Mas afinal de onde provém essa condição? Poder-se-ia argumentar tratar-se de um fator cultural. Eu diria que mais provavelmente seria um fator gutural.

    Mas uma dúvida persiste. Foi seu subjacente conceito que contaminou sua forma? Ou sua fealdade orgânica tem um liame subliminar com sua presuntiva acepção?

    O fato é que, ainda que sem revelar para que vieram ou de onde surgiram, sua mera pronúncia provoca um indisfarçável desconforto, um mal estar no estômago, eventualmente até mesmo um arrepio.

    São podres palavras, palavrões no sentido mais extensivo do termo.

    ***

    Esgoto, escroto, escopo, estupro, zigoto, peçonhento, bucéfalo, jurássico, chumbrega, mequetrefe, rebuceteio, ricochete, ambivalente, volúpia, interregno, escroque, imberbe, pundonor, hecatombe, hediondo, aborto, absorto, nu, cru, suruba, bacanal, cafuné,  outrossim, ulterior,  visigodo,  macumba, ufano, carcaça, jaez, treta, opróbrio, taciturno, pusilânime, macambúzio, birrento, banzo,  sorumbático,  gárgula, lamuriento, bricolagem, belzebu, quiproquó, barafunda, muvuca, grotão, aziago, ungüento, tara, pamonha,  busílis, úvula, galhofa, cabotino, probo, apedeuta, truculência, brucutu, vuvuzela, quasímodo, chinfrim, putativo.

    Estapafúrdio, esdrúxulo, bombástico, estrambótico.

    Bagulho, bugiganga, espelunca, geringonça.

    Sovaco, chulé, arroto, flatulência.

    Fétido, fedorento, pútrido, putrefato.

    Mocréia, bruaca, muxiba, baranga.

    Cafuzo, mameluco, chibarro, curiboca.

    Nauseabundo, moribundo, furibundo, meditabundo.

    Úmido, túmido, túrgido, tumefacto.

    Chorume, estrume, azedume, negrume.

    Bruto, xucro, ogro, bronco.

    Sacana, safardana, sacripanta, salafrário.

    Velhaco, gatuno, gaiato, larápio.

    Biltre, pulha, crápula, calhorda.

    Roxo, lixo, coxo, mixo.

    Nojo, bojo, jugo, mijo.

    Vômito, pus, cuspe, gosma, muco, pigarro, escarro, urina, caca, baba, estrume, cerúmen, seborréia, fleugma, remela, espirro, esporra, esperma, excremento, meleca.

    Frieira, íngua, ferida, prurido, comichão, cólica, brotoeja, bulimia, disfagia, câimbra, torcicolo, sudorese, hemorróida, icterícia, náuseas, herpes, lúpus, sarna, urticária, enjoo, vertigem.

    Úlcera, lepra, peste, gangrena, cirrose, esclerose, brucelose, trombose, toxoplasmose, esquistossomose, esquizofrenia, hipofibrinogenemia.

    Aids, ebola, chicungunha, zicavírus.

    Mufumba, chaboque, sapiranga, mondrongo.

    Sarcoma, linfoma, mioma, carcinoma, neoplasma, abscesso, furúnculo intumescência, cisto, quisto, cancro, câncer, metástase, pústula, fistula, hiperplasia, fibrose, necrose.

    Intestino, esôfago, estômago, pulmão, pâncreas, abdômen, tórax, cóccix, sacro, peritônio, amígdala, panturrilha, queixo, vômer, fêmur, úmero.

    Útero, prepúcio, testículo, vagina, ânus, pélvis, pênis, púbis, vulva, uretra, pentelho.

    Medonho, soturno, nefasto, funesto, fúnebre, lúgubre, mórbido, tétrico.

    Túmulo, caixão, cova, sepultura, esqueleto, carcaça, cadáver.

    Cemitério, necrotério, crematório, sepulcrário.

    Sanatório, hospital, hospício, manicômio.

    Podólogo, otorrino, obstetra, geriatra.

    Cauterização, curetagem, traqueotomia, lobotomia.

    Tumor, dor, torpor, terror, temor, horror, pavor, tremor.

    Buchada, rabada, galinhada, vaca-atolada, barreado, guisado, linguado, angu, caruru, sururu, aratu, tutu, umbu, pururuca, bobó, quibebe, xinxim, jerimum.

    Espinafre, alfafa, chicória, repolho, nabo, quiabo, inhame, jiló, jaca, cajá, caju, caqui, kiwi.

    Churrasco, chuleta, maminha, coxão.

    Carne-vermelha, febre-amarela, catarro-verde, baleia-azul.

    Glutamato, glifosato, transgênico, Monsanto.

    Glúten, nugget, nutella, miojo.

    Rinha, rodeio, vaquejada, muay-thay.

    Roto, rito, reto, rato.

    Porco, bode, bezerro, burro, cachorro, ornitorrinco, fuinha, texugo, cachalote, esturjão, barracuda, arenque, paca, pacu, baiacu, pirarucu, urubu, peru, jacu, anu, corvo, gralha, rola, pinto, carrapato, cupim, lacraia, lesma, lombriga, percevejo, escaravelho, marimbondo, gafanhoto.

    Colchetes, parêntesis, travessão, gerúndio, cacofonia, anacoluto, onomatopéia, antonomásia, catacrese, anfibologia.

    Vara, alvará, estelionato, carceragem, ouvidoria, glosar, ab-rogar, impugnar, prevaricar, tergiversar, locupletar,  tutela, concordata, hipoteca, precatório, caução, esbulho, estagflação.

    AI5, HIV, PCC, STF.

    SUS, SAMU, PIS-PASEP, BOVESPA.

    Bolchevique, Gulag, Glasnost, Perestroika.

    Azerbaijão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Baluchistão, Curdistão, Chechênia, Andorra, Bósnia, Bulgária, Kosovo, Luxemburgo, Liechtenstein, Budapeste, Praga, Tirana.

    Fatah-Al-Islam, Taliban, Boko Haram, Ku Klux Klan.

    Hezbollah, FARC, ETA, Baader Meinhof.

    Putin, Pinochet, Pol Pot, Papa Doc.

    Tzar, Salazar, Bashar, Muammar.

    Nero, Calígula, Torquemada, Maquiavel.

    Mengele, Ulstra, Bolsonaro, Garrastazu.

    Ditadura, tortura, clausura, viatura.

    Cárcere, cadafalso, calabouço, cala-boca.

    Mordaça, porrada, porrete, cacete.

    Zebedeu, Zaqueu Zulmira, Zoroastro.

    Odebrecht, Richtofen , Nardoni, Abdelmassih.

    Brutus, Luthor, Vader, Voldmort.

    Hannibal, Godzilla, Poltergeist, Pulp Fiction.

    Akira, Naruto, Pokemon,  Pikachu.

    Rutger Hauer, Heth Ledger, Renée Zelweger, Van Diesel.

    Snoop Dogg, Tupac Shakur, Dr Dre, Shaggy.

    Safadão, Marrone, Teló, Ludmilla.

    Popozuda, Catra, Tchan, Créu.

    Fuck, funk, punk, crack.

    Google, Netflix, Huawei, Bitcoin.

    Uber, Trivago, Hopihari, Agro é pop.

  • Alguém mais a viu por aí?

    Estou convencida de que a felicidade, aquela menina nada popular e tão cobiçada por nós, é fruto de uma disponibilidade interna para o bom estado de espírito. A menina parece acompanhar somente os que desfrutam de uma inclinação nata para viver no agora ou os que são habitados por uma espécie de fé, inabalável, na pureza dos seres e na dinâmica generosa da vida. 

    É possível, também, que sua presença seja consequência de alguma alteração na estrutura do globo ocular. As pessoas que caminham em sua companhia devem ter mais células cones, o que levaria à percepção de um mundo mais colorido. 

    É curioso perceber que eles não carecem de bens materiais, atributos físicos, grandes oportunidades ou sorte no amor para cultivarem uma brisa fresca e aromatizada alma. Certamente, seus eleitos têm como atributo um refinamento dos sentidos, uma poética do existir, uma relação estreita com as manifestações da arte (cantar, tocar, dançar, escrever, ler, interpretar, pintar).

    Os urgentes, os assoberbados de sucesso, os competitivos e os covardes pegam atalhos que impedem o encontro. Ela não é de amassos, demanda carinho, peito aberto e mente livre de manuais de conduta.

    Hoje, no aeroporto do Galeão, entre os viajantes não a encontrei. Sabe onde ela estava? No banheiro, na cantoria apaixonada da funcionária da limpeza. 

    Ah, felicidade… o que te seduz é a leveza do descomplicado. O conforto do simples. A graça escondida nos pequenos detalhes, na alegria do hoje.

  • Considerações de véspera sobre a véspera

    Véspera. Do latim vesperae. A tarde, ao cerrar da noite. Poeticamente, ao encerrar um ciclo solar. Dos pequenos, claro.

    Deriva também de Vésper, a estrela que não é estrela, visível a olho nu quando a tarde cai.

    Véspera é o território preferencial da ansiedade. Quando estamos a poucos passos ou horas daquilo que desejamos. Ou não desejamos mas é inevitável que venha até nós.

    Dizem por aí que a arte reside em controlar a ansiedade da véspera. Papo. Eu já tentei inúmeras vezes em mais de cinquenta anos de existência. Nesse tempo todo jamais – ou quase jamais – tive sucesso. Perco o sono que é uma beleza.

    Achei seis dicas para domar a ansiedade, reunidas pela BBC, British Broadcasting Corporation, fundada em 1922. As dicas da centenária BBC são:

    Monitore os seus pensamentos.

    Faça atividades físicas e pratique meditação.

    Encontre um propósito – nem que seja cuidar de seu animal de estimação.

    Veja o lado bom da vida (por mais que isso seja desafiador)

    Viva no presente.

    Busque terapia – na sexta posição e, a meu ver, como último recurso se os demais falharem. Ainda não cheguei aqui mas é bom ter a lista à mão. Se bem que umas linhas acima eu admito que perco o sono por ansiedade. É, acho que já é o caso de terapia. Mas vejo isso depois de malhar na academia.

    Voltando.

    Há sucessos que só duram até a véspera, como o reinado daquele rei destronado em batalha no dia seguinte. Ricardo III que teve insônia – olha mais um!!! – na noite anterior ao combate e foi assombrado por fantasmas daqueles que morreram por sua culpa. Ao menos é o que está na peça de Shakespeare que já se sabe é historicamente imprecisa. Um detalhe que não ofusca sua beleza dramática.

    Seguindo.

    Véspera da decisão daquele jogo em que o craque de um time foi para a farra e o outro foi atender ao chamado de um menino que acordou na emergência infantil do hospital chamando pelo seu ídolo. Foi na zona sul do Rio de Janeiro, no século passado, o craque prometeu ao garoto o título. E no dia seguinte, com gol de barriga cumpriu a promessa.

    No século XVII o pintor, arquiteto e artesão espanhol Alonso Cano fez uma obra em madeira intitulada “Véspera” que está na catedral de Granada, Espanha.

    O bem humorado Adoniran Barbosa tem um samba chamado “Véspera de Natal”. Termina em comédia pastelão com direito a ação do corpo de bombeiros

    “Véspera” é o nome do terceiro livro da escritora mineira Carla Madeira. Não li mas espiei uma resenha e acho que deve ser uma obra bem interessante. Vou em busca.

    Todo esse papo aleatório porque hoje, sexta-feira, 23 de setembro, é véspera. Mais uma de muitas, dirão.

    Mas para mim, a mais importante das vésperas. Quando o sábado chegar será festa. Contemplarei o momento e o viverei na boa companhia das estrelas da minha vida. Andaremos pelo mundo, plenos de alegria e em busca de diversão tendo aos ouvidos “Ode à alegria”, de Beethoven. Ao cair da noite, estaremos juntos, cansados e felizes.

    Agora, na véspera, tentarei inutilmente ao longo do dia domar a ansiedade. E a noite, só me restará achar o sono.

  • Vida e tempo

    Outrora as pessoas morriam mais cedo e nem assim deixavam de fazer as obras que poderiam notabilizá-las. Parece que a consciência da brevidade da vida levava-as a intensificar seu trabalho. Era como se, intuitivamente, soubessem que não tinham tempo a perder. Ameaçadas por um número maior de doenças sem cura, não podiam se dar ao luxo de adiar projetos e sonhos. Nossos poetas românticos, por exemplo, deixavam este mundo na flor da idade, ceifados pela sífilis ou pela tuberculose, mas as suas obras pareciam consumadas. Eram o melhor que eles poderiam fazer.  

    Hoje é diferente. Graças aos avanços da medicina e da farmacologia, nossa média de vida aumentou. Não podemos nos queixar de falta de tempo. Quem antes tinha quarenta ou cinquenta anos se considerava um velho. Hoje o indivíduo com sessenta sente-se disposto a recomeçar a vida. Supõe que ainda terá muito caminho pela frente.

    Antigamente o desafio era viver mais. Hoje, é viver melhor. Fala-se muito em qualidade e não em quantidade de vida. Uma vida longa, mas deficiente, não parece valer a pena. Isso nos remete à velha questão: o ideal é viver pouco, mas com intensidade, ou viver muito porém de forma rotineira e insípida?

    Muitos alegam que viver da primeira forma é melhor, mas o que desejam mesmo é permanecer vivos (mesmo que isso implique enfrentar os contratempos da velhice). Há um consenso segundo o qual quem vive muito triunfa sobre os que morrem mais cedo. A longevidade aparece como um troféu que confere ao indivíduo admiração e prestígio, e só os incompetentes e desleixados se deixam colher precocemente pela morte.

    Para ganhar esse troféu é preciso se submeter a um tipo de corrida diferente, no qual ganha quem chega por último. Diante disso, é melhor não se apressar. Certamente a melhor fórmula para obter esse prêmio é viver com moderação, evitando o estresse e outros males que nos impulsionam a uma existência trepidante. São grandes os malefícios que essa trepidação traz ao nosso organismo.  

    Viver devagar, no entanto, é um enorme desafio num mundo em que se exalta a excelência e o acúmulo de realizações. Como botar um freio na rotina se somos permanentemente convocados à competição e, em vista disso, a nossa agenda está sempre cheia? Quem tenta frear o ritmo não raro se sente excluído. Ao buscar se desprender das amarras que o vinculam à engrenagem do dia a dia, é tomado pelo tédio e a insatisfação. Conheço gente que, embora se queixe do excesso de trabalho, não suporta os domingos e feriados. Acha que neles falta alguma coisa.   

    O fato é que, mesmo com as cobranças do mundo moderno, hoje vivemos mais. Isso não significa que vivamos melhor nem que o maior tempo de que dispomos nos leve a realizações significativas. Todos temos momentos em que as coisas de fato acontecem, e outros em que nos limitamos a “tocar” biologicamente a vida. Ninguém garante que, se vivesse mais de 24 anos, Castro Alves teria feito poemas superiores aos que fez. Viver mais também não deixa de ser um problema; implica um desafio maior para a conquista e a manutenção da felicidade.

  • A Chuva

    Gotas esparsas trouxeram o chuvisco e fizeram subir um cheiro bom de terra molhada. A chuva anunciou sua chegada e pôs para correr quem estava distraído.

    A grama continuou seca e marrom, as plantas mantinham as folhas encolhidas pela desidratação, e uma leve brisa inundou o ambiente.

    De repente, a chuva despencou de forma torrencial — forte, densa e barulhenta — por poucos minutos. A primeira pancada recuou por um instante, apenas para voltar ainda mais intensa, como se uma comporta houvesse sido aberta no céu. Em segundos, as nuvens brancas, que pareciam véus de noiva se alongando no espaço, foram engolidas pela tempestade, e o céu escureceu.

    Uma pausa? Não!

    O temporal se intensificou. Descargas elétricas riscavam o céu como armas luminosas — sinuosas, douradas, prateadas. O estrondo dos trovões explodia no ar, um após o outro!

    A grande ventania passou, mas o vento ainda balançava os galhos das árvores, que pareciam adornadas por milhares de cristais cintilantes nas gotas que escorriam. A cada trovão, a cada raio, pairava a iminência do apagão.

    E aconteceu!

    Ouviu-se um forte baque, como se algo grandioso tivesse desabado. No chão, como um grande corpo com várias pernas e braços, jazia um gigante tombado — uma árvore caída bem no meio da rua! Na queda, levou consigo os fios elétricos, deixando o bairro sem energia.

    Com a luz apagada e o dia se despedindo, a chuva continuou. Forte e soberana.

    Elevadores parados, televisores mudos, semáforos sem sinais. Automóveis alternavam entre lentidão e pressa, enquanto as buzinas tomavam conta do ar.

    Por alguns minutos, a grande metrópole silenciou. O afã em sempre ter algo para fazer, a importância, a pressa e a impaciência perderam a vez. Nada a ser feito, a não ser o quê?

    Olhar a chuva!

    E nesse tempo, ela reinou…

  • Poema #16 – Convidados

    Da janela da casa onde moro
    aguardo a chegada de alguns
    amigos para a festa de
    aniversário.

    Nada se move, exceto a minha
    sombra na varanda, vazada de
    angústia, silêncio e noite.

    Fecho as janelas da casa
    onde moro e ainda dou
    uma última olhada através
    das frestas da veneziana.

    Nada se move, exceto a noite
    com a sua noção de simultaneidade
    do tempo, das pessoas e das coisas.

    Nada se move, exceto o silêncio
    que domina o ambiente e repousa
    na visão do telefone emudecido
    e inútil sobre o criado-mudo.

    Fecho a porta do meu quarto
    e a casa onde moro fica escura,
    imersa na solidão dos cômodos.

    Inventário de Sombras

  • Crônicas, Filmes e Fotos

    Em Crônicas sobre uma foto falei sobre o tempo, falei um pouco do passado, falei de memória. Tomei emprestado um verso do grande Manuel Bandeira, “…tempos de eu-menino…” E, também, tomei por empréstimo Pasárgada. Mas o poeta há de entender. Retirei algumas fotos de caixas de papelão (quem hoje ainda faz isso?) e lembrei de mim e de pessoas que passaram pela minha vida. Muitos, ainda sempre vistos e abraçados. Outros, nunca mais vistos… Não tive e talvez nunca tenha o paradeiro ou qualquer referência que o valha.

            Mas.

            Ao falar sobre o tempo nessa sequência de crônicas, percebi como dói, às vezes, lembrar certas coisas, certos fatos. Contudo vi que, de mesmo modo, a alegria em rememorar determinadas aventuras era, também, muito forte. Escrevi em outros textos, escrevi em poemas e contos sobre a questão do tempo, sobre a passagem do tempo. Quem escreve sempre fala sobre o tempo…

            Sempre há algo a dizer. Sempre há alguma coisa para desenterrar… O tema não se esgota.

    Eu me lembro de um filme interessante, Conta comigo (1986), com Richard Dreyfuss. Neste longa, a temática do tempo é abordada por um escritor (Dreyfruss) que resolve fazer um livro sobre a sua infância. Ao pensar sobre o passado, percebe que seus verdadeiros amigos (no que essa palavra possui de mais significativo) sempre foram os ‘esquisitos’ dos tempos de moleque. As aventuras e desventuras vividas pelo grupo de meninos marcaram de tal forma a sua visão de mundo que ele não poderia jamais esquecê-los.

            Em Quero ser grande, outro filme dos anos 80, um menino, inconformado com certas ‘barreiras’ da infância encontra uma forma de crescer bem rápido e, então, o jovem Tom Hanks fica perplexo com a sua imagem de homem adulto: um homem dividido entre as coisas de garoto e a descoberta do amor.

            O tempo e o fascínio que nos provoca. E se tivéssemos poder sobre o tempo? Uma máquina, por exemplo?

            Foi o que pensou Robert Zemeckis em De volta para o futuro (1985), uma trilogia que brincava e bagunçava de vez com o tempo. Eu era garoto. Um garoto de dez anos. E via Marty McFly correr com seu skate, tocar a sua guitarra em volume ensurdecedor e entrar em um DeLorean para voltar aos anos 50 e aprontar muito.

            Mas o que eu quero dizer com tudo isso?

            Em todos os filmes citados, o tempo é o assunto abordado. O tempo é o elemento mestre que impulsiona as personagens em suas histórias.

            Quando via as fotos e escrevia as crônicas não parava de pensar em mim mesmo: criança, jovem, adulto. O gosto da jabuticaba tirada do pé. O gosto da manga e os joelhos esfolados pelas quedas de bicicleta. O mergulho nas cachoeiras. As trilhas na Reserva da Mata da Câmara feitas por pequenos grupos. Mais uma vez o gosto, o gosto do primeiro beijo. Aquele morder de lábios e os olhos fechados e as mãos nervosas e incontroláveis… Ah! As mãos!

            Posso ver o olhar abobalhado de Marty Mac Fly quando sente que sua mãe o olha perdidamente apaixonada. Posso ver o sorriso de Tom Hanks pulando como criança junto com o amigo de 12 anos em uma cama elástica. Posso ver os meninos que atravessam léguas e léguas seguindo os trilhos da ferrovia só para resgatarem o corpo de um garoto.

            É o tempo. O fascínio do tempo. A passagem das horas e a vida que vai e vai…

            Recoloco as caixas em seu devido lugar: o armário.

            Mas.

            Ouço as vozes do tempo. Sou eu-menino correndo nas ruas da pequena cidade. Sou eu jovem descobrindo os anseios do corpo. Sou eu homem, inquieto olhando para a tela do computador e pensando terminar esta crônica.

    E, mesmo ao terminá-la, embora o tempo das coisas vividas terá seu espaço no passado, o tempo da escrita destas mesmas coisas será sempre o agora…

            Quando a crônica acabar, um tempo – o tempo da escrita – se foi. No entanto, o tempo da leitura trará as mesmas lembranças de volta num só tempo.

    *Texto originalmente publicado no livro Terra Brasilis.

  • Dia sim, dia não

    Seria pouco honesto dizer que Shirley não tentou caber na mesmice dos dias. Todos somos testemunhas de sua dedicação: levava o cachorro na rua, duas a três vezes, o filho na escola, no futebol, na explicadora, fazia mercado, voltava de lá com os braços lotados de sacolas pesadas e ainda arrumava tempo para vender os panos de prato que ela mesma bordava.

    Uma vez, a observei limpando os vidros da janela da sala, metade do corpo para fora do apartamento, apoiando-se feito malabarista no parapeito. Parecia não temer altura nem queda. Invejei sua disposição para viver com vigor horas sem nenhum atrativo.

    No condomínio sua fama de exímia cozinheira corria os andares. O cheiro do seu tempero invadia os corredores do prédio na hora do almoço e da janta. Sempre comida fresca.

    Aos domingos, com o filho no colo e de braços dados com o marido, encaminhava-se para o templo. Cabelo preso, bem esticado num coque, vestido abaixo dos joelhos, de manga longa, acho que usava sempre o mesmo, sapatilha fechada e perfume de alfazema. Não demonstrava cansaço ou desagrado. Sua perfeita adaptação ao morno da vida me jogava no buraco da culpa. Odiava o jeito firme com que Shirley fazia continência para a felicidade, mas, confesso, me causava um prazer macabro observá-la abrir a cortina, às cinco da manhã, animada para começar seus afazeres enquanto eu apagava o último cigarro antes de ir dormir.

    Ontem, como de costume, assisti ao ritual: a janela se abriu lentamente, corpo rígido como quem já está pronto para a luta, palmas das mãos voltadas para cima, olhos pregados no céu. A boca pálida parecia balbuciar a oração do amanhecer. Agora, eu podia dormir sem paz.

    Passava das duas horas da tarde quando o barulho das buzinas me despertou. Corri para a varanda. No meio da avenida, caminhando entre os carros, passos lentos, braços abertos, salto alto e despida de tudo, desfilava Shirley.

    Quando os enfermeiros a alcançaram, não resistiu, não chiou, não chorou. Entrou na ambulância com seu sorriso cansado todo borrado de batom carmim.

  • Precisamos falar sobre Elon

    “Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto os outros macacos morressem de fome, os cientistas estudariam aquele macaco para descobrir o que diabos estaria acontecendo com ele. Quando os humanos fazem isso, nós os colocamos na capa da Forbes” (Prof. Emir Sader)

    Li recentemente que se os 3000 sujeitos mais ricos do planeta, num ato coordenado de filantropia, resolvessem doar 5% de sua fortuna, a dinheirama gerada seria suficiente para extirpar a fome do planeta. Esse distinto grupo, uma turminha que poderia ser acomodada confortavelmente no interior de um desses navios de cruzeiro, teria capacidade de resolver num passe de mágica o trágico problema que há séculos assombra a humanidade. Estamos nos referindo a apenas 3 mil felizardos, uma gotinha de 0,0000375% em meio ao oceano humano de quase 8 bilhões de criaturas que com eles partilham o mesmo planeta.

    Elon Musk está no topo desse seleto clube. O presidente-executivo da Tesla e dono do Twitter (atual X) tem um patrimônio de quase 300 bilhões de dólares, ou seja, 1,5 trilhão de reais. Convertido em papel moeda, resultaria em quase cinco vezes todo o dinheiro em circulação no Brasil! Equivalente a 15 bilhões de notas de 100 reais que, alinhadas, formariam uma fila de tamanho igual ao triplo da distância até a Lua, ida e volta! Essa grana toda que faria o tio Patinhas resignar-se à constatação de que não passa de um pato chucro, está nas mãos de um único indivíduo.

    Pois é, se esse sujeito sozinho resolvesse, numa ação iluminada de generosidade, abrir mão de meros 2% de sua fortuna, algo que obviamente não lhe passa pela cabeça, poderia impedir a morte de 40 milhões de pessoas que se encontram em situação de penúria extrema. Mitigar a fome de africanos pretos pobres e desmilinguidos definitivamente não faz parte dos planos do nobre empresário trumpista, empenhado que está em destinar seus preciosos bilhõezinhos a iniciativas de maior relevância para a raça humana como projetar naves espaciais para levar outros endinheirados para passear em Marte já que a démodé Terra, lugar de plebeu, já era.

    Mas, sejamos justos, nem todos os super-ricos são tão zelosos com a integralidade de seus estimados bilhões. Ao contrário do que se possa imaginar, alguns desses seres celestiais têm consciência de que a fortuna que amealharam ao longo da vida veio acompanhada da obrigação moral para com a sociedade que os possibilitou chegar a essa privilegiada condição financeira. Afinal, as estatísticas revelam que os principais expoentes dessa nata assistiram sua fortuna se multiplicar na última década, enquanto nós outros, pobres mortais, que já estávamos na pindaíba, afundamo-nos ainda mais em nossa indigência.

    Uma pesquisa recente revela que 3 em cada 4 super-ricos não se oporia à criação de impostos incidindo sobre suas posses. Um grupo de 200 magnatas (entre eles um brasileiro) lançou há pouco um manifesto reivindicando (acredite) pagar mais impostos.

    “Nosso pedido é simples. Nós, os muito ricos queremos ser taxados por vocês. Isso não vai alterar fundamentalmente o nosso padrão de vida, tampouco prejudicar nossas crianças ou afetar as economias de nossas nações. Transformará a riqueza extrema e improdutiva em investimento em nosso futuro democrático comum. (…) Quando vocês vão taxar a riqueza extrema? Se os representantes eleitos nas principais economias do mundo não adotarem medidas para lidar com o aumento dramático da desigualdade econômica, as consequências serão catastróficas para a sociedade”, diz o documento direcionado à elite econômica e política reunida no Fórum de Davos.

    É de se estranhar que nossa civilização tão diligente em alardear as conquistas no campo da ciência e tecnologia que pretensamente nos possibilitaram melhor qualidade de vida não seja capaz de equacionar esse simples probleminha matemático de distribuição de renda que traria maior paz e equilíbrio social, minorando o sofrimento de bilhões de seres humanos. É pródiga em criar novas tecnologias, mas inapta em permitir que todos tenham acesso a elas.

    No Brasil, a situação é particularmente alarmante. Estima-se que o 1% mais rico concentre nada menos do que 2/3 da riqueza nacional, enquanto os 50% da base da pirâmide detêm apenas 2% da riqueza.  Esse fosso gigantesco é absolutamente ultrajante.

    Ainda que tendo apoio da maioria da população (85% segundo pesquisas), a taxação de grandes fortunas, por incrível que pareça, encontra resistência na sociedade. Boa parte dos deputados de direita que tomaram conta do Parlamento votou contra projeto do atual governo de taxar bilionários (‘virou crime ser rico no Brasil’ disse o ex-presidente Bolsonaro, antevendo problemas com o fisco quando chegar a essa condição). 

    Para tanto, contou com o apoio dos evangélicos, adeptos da ‘teologia da prosperidade’, segundo a qual, os abastados são merecedores da bênção material que lhes foi oferecida por seu Deus empresário. Recusam-se a colaborar com um tostão que seja para um necessitado (‘fracassado’), mas doam de bom grado um décimo de seu parco salário para o nababo pastor, que foge da caridade (e dos impostos) como o diabo foge da cruz.

    Mas não são só esses que se opõem à ideia de taxar super-ricos. Diversos economistas neoliberais para quem ‘imposto’ é palavrão, também se posicionam contra.  Alegam que de nada adianta taxar os bilionários pois eles desviariam suas fortunas para outros países, em especial os paraísos fiscais, além de serem mestres em dar um chapéu na Receita, corrompendo fiscais e sonegando tributos. Ou seja, já que a sociedade não consegue enquadrar os larápios, deve-se curvar a eles. E fica tudo como está.

    Assim como os advogados, os economistas são especialistas em criar dificuldades para implementar mudanças de caráter social. Submetendo-se à frieza dos números, cortam nossos sonhos de ter um mundo melhor. Ao invés de conceber uma sociedade composta por humanos empenhados em viver em harmonia entre si, enxergam um ambiente mercantilizado, onde agentes se digladiam, cada qual querendo otimizar sua posição, com base em seus interesses particulares, visando maximizar seus ganhos materiais. Nesse campo de batalha, chamado mercado, os super-ricos desempenham o papel fundamental de investidores, os motores do capitalismo. Em direção ao apocalipse socioambiental.

    O que não enxergam é que esse é um tema que transcende a esfera econômica. Não é também uma questão ideológica, coisa de comunista. Exigir maior equidade e evitar essas aberrações na distribuição dos recursos é uma necessidade ética, de justiça social.

    O que a humanidade produz é mais do que suficiente para suprir a necessidade de todos os indivíduos, mas apenas uma minoria cada vez mais afunilada colhe os frutos e ainda se dá ao luxo de esbanjar as sobras em futilidades, em detrimento de legiões de famintos que perambulam pelos continentes à procura de um lugar onde consigam sobreviver com as migalhas. Taxar os super-ricos é um imperativo para que possamos superar esse dilema e nos tornar uma civilização superior. Pelo menos, no mesmo nível da dos macacos.

  • Terrores infantis

    Penso que as mais intensas lembranças da infância são marcadas pelo que dá medo. Existem as de aniversário, viagens, reuniões em família, e todas constituem um repertório gratificante que nos faz ter saudades do tempo em que éramos guris. Mas elas não se imprimem na memória com a força dos eventos que nos deixavam o coração em sobressalto.  

    Grande parte deles está ligada aos “fantasmas” da noite e aos tipos conhecidos como “doidos”. Qual a criança que não chegou a tremer sob os lençóis com medo da visão de algum ente sobrenatural? Podia ser a imagem de alguém que morreu ou de uma dessas personagens que povoam as histórias contadas em filmes, gibis ou por pessoas próximas.

    Eu ouvia das empregadas histórias de crianças perseguidas por entidades monstruosas que vinham puni-las em razão de algum malfeito. Essa espécie de pedagogia do horror maltratava como um castigo, e de noite eu me encolhia sob as cobertas com medo de encarar a escuridão. Sentia os pingos de suor escorrerem pela barriga, mas não me atrevia a remover o lençol e ficar exposto às tenebrosas visões. Podia ser a de um vampiro, uma mula decapitada ou uma tal de La Condessa, que saía de noite do túmulo para perseguir crianças desobedientes.  

    Já os “doidos” eram fantasmas concretos, que povoavam as ruas e não precisavam do escuro para nos assustar. Geralmente se tratava de pessoas feias e malvestidas, que associavam a bizarrice da figura a um considerável acervo pornográfico. Os nomes feios, diga-se a bem da justiça, vinham como resposta às provocações que faziam a elas.  

    Tenho vivas as lembranças de alguns desses tipos. Um deles era Leôncio, que costumava ficar sob uma marquise numa das ruas mais famosas da cidade. Ele pedia dinheiro aos passantes e descompunha sem cerimônia os que negavam. “Filho da p…” era das expressões mais leves. Como já o conheciam, ninguém o denunciava. Sua agressividade ficava mesmo no plano das palavras, pois nunca se soube que tivesse feito mal a ninguém.

    Certa vez eu passava pela rua com a minha mãe e o vi dirigir-se a nós. Risonho, desdentado, estendeu a mão me pedindo “um troco” (era assim que ele falava). Na inocência dos meus oito anos, larguei a mão que me segurava e desandei a correr. Depois dessa experiência, evitei de uma vez por todas passar por aquela rua.

    Mas a pior experiência foi com “Baleia”, como era conhecida uma mulher que costumava no fim da tarde passar pela rua onde morávamos. Nada provocava mais a sua ira do que a menção ao cetáceo com que inventaram de apelida-la. Justamente por isso os meninos insistiam na cruel designação, o que a fazia correr atrás deles enquanto aguentasse. Nunca pegou nenhum, e duvido que quisesse mesmo fazer isso.

    Certa vez, ao voltar de uma padaria perto de casa, percebi com o coração aos pulos que ela vinha na minha direção e que iríamos cruzar um com o outro. Mudei de calçada e ela fez o mesmo, atribuindo o meu gesto a uma tentativa de fugir por tê-la em algum momento provocado. Enquanto se aproximava, vociferou com uma voz rouquenha e arquejante: 

     – Diga “Baleia” agora! Diga, se tiver coragem! 

    Corri em pânico para casa e lá cheguei “branco”, conforme disse  minha mãe. Deram-me um copo d´água e buscaram me acalmar enquanto eu tentava explicar o que tinha acontecido.

    Houve outros além de “Baleia” e Leôncio, mas esses dois foram os que mais me impressionaram. Hoje vejo que não eram tão maus assim. A explicitude de suas figuras fazia com que nós de antemão os identificássemos e nos preveníssemos. Ao longo da vida eu me depararia com outros mais perigosos, que sob o disfarce da normalidade nos surpreendem neste mundo hostil e nervoso em que estamos confinados.  

  • Cry me a river

    Se você de repente descobrir que se perdeu de mim, não sofra muito. Ou ao menos faça como eu e tente não sofrer muito. A falta da presença minimamente incomoda e honestamente se não conseguir tudo bem porque eu mesmo nem sei se isso é possível.

    Mas sei que se perder acontece. Lamentavelmente.

    Pode ter sido algum caminho que eu ou você escolhemos. Ou nem isso, fomos apenas jogados nessas direções, opostas ou paralelas mas sem nos cruzarmos. Circunstâncias, azares, ventos, quem sabe. Os gregos acreditavam que as pessoas eram meros joguetes da vontade dos deuses. Pode ser também. Zeus e Hera brigam e nós pagamos a conta. Enfim…

    Se foi você quem escolheu esse caminho diferente ou fui eu, ainda importa mesmo? Talvez seja mais importante saber o que nos motivaria a olhar na direção um do outro. Não um olhar de estranhos mas aquele olhar de olhos que se cruzam e se alinham e aninham no reconhecimento.

    O reencontro dos olhares não é impossível. Não seria como foi um dia porque aquilo que passou, passou. Seria certamente em outros termos. Uma nova receita.

    Com boa vontade mútua para abrir os trabalhos, umas doses de concessões leves e bastante atenção para não abrir feridas. Paciência para regar por cima e pode servir levemente aquecido deixando a temperatura ambiente decidir se esquenta ou esfria.

    No mais, não pode faltar boa vontade em crer que não foi por maldade que os passos tomaram direções diversas levando um para longe do outro. Um par por opção, outro por falta de opção.

    De qualquer forma terá algo de doloroso para os dois se os olhares se cruzarem. Sempre é para quem amou demais – como se houvesse amar de menos ou se amor fosse demais. Mas a gente sobrevive. Vida que segue e vem em ondas.

    Se eu for até você, não sei o que vou encontrar. Mas minha coragem é grande. E sofro calado. Se você vier até mim não vai encontrar a porta trancada. Venha sem medo porque comigo mal algum encontrará.

    Se a porta estiver dura de abrir é porque as dobradiças estão enferrujadas. Nada demais. Normal em porta fechada por muito tempo. Não pode usar força para abri-las. Com um pouco de determinação e alguma paciência elas cedem.

    Mas se vindo do outro lado da porta você escutar “Cry me a river” na voz de Julie London, atenção. Seja paciente e vá dar uma volta. Ou entre e venha escutar junto.

  • Confundir e preencher os olhos!

    Movimentos sociais levam décadas para implantar suas regras e conceitos prodigiosos, que por vezes chegam às raias do lamentável. 

    As atividades culturais se diferem no tempo durante seu processo de maturação, tornando-se belos quadros sociais para serem apreciados ao longo de nossa era. 

    Na política, são anos para estabelecer uma nova ideia, convencer o povo que será a melhor opção de bem-estar, seu, e de sua família, mesmo que essa nova partitura tenha consumido seus dias, como o fascismo, que proporcionou capítulos indesejáveis. 

    Na Itália, em outubro de 1922 ocorreu a “Marcha sobre Roma”, evento considerado o marco zero da revolução fascista. O projeto na época freou o avanço dos partidos, socialista e comunista. A milícia violenta, chamada camisas-negras, ocupou Roma, e Mussolini assumiu na Itália como Primeiro Ministro da era fascista. Por isso não há dúvidas de que esse movimento foi filho da Primeira Guerra Mundial, evento ocorrido bem antes de suas raízes se fincarem nas entranhas da política. O fascismo sempre mobilizou massas e as absorveu perigosamente. 

    Como entendido, levou tempo pra se estabelecer junto ao povo, mesmo após arrastar consigo maldade, tristeza e morte.

    Lentamente movimentos importantes para a sociedade, estabelecem razão de existir e fascínio atraente, mas nunca ocorrem rápidos e rasteiros. 

    As obras do Filósofo, Advogado, Escritor e Intelectual, Sêneca (século I), de forma muito distinta, promissora e sem sangue no chão, dignificaram no tempo o comportamento humano. Sete peças trágicas chegaram a nossa era, Medeia, Fedra, Édipo, e outras tantas se mantém preenchendo de cultura e lazer as novas gerações. Esses eventos foram criados por um homem de bem, e trouxeram reflexões saudáveis sobre nossas vidas. Mesmo exilado, em meio a grandes privações materiais, dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos. Entre eles, os três intitulados Consolationes 

    (“Consolos”), onde expôs os ideais estoicos clássicos de renúncia aos bens materiais, em busca da tranquilidade da alma, mediante o conhecimento e a contemplação. 

    Bem distinto do fascismo que dominou a sociedade através da política, sem medida aos danos avassaladores, desvencilhados de dó. 

    Nem tudo que brilha é ouro, mas pode confundir e preencher os olhos de inocentes e curiosos. Não devemos esperar um resultado saudável apenas por decurso de prazo, vindo de qualquer nova ideia, nascida com diferença e inovação a seu tempo. Nenhuma revolução se faz as pressas, isso não se obtém senão com o tempo, este senhor da verdade.

  • O seleto grupo dos iluminados

    Há poucos dias finalmente descobri o meu lugar no mundo. Depois de vagar entre planaltos e ribanceiras por anos e anos, depois de me notar perdido, ansioso e angustiado, tive, por fim, a revelação. Foi um instante daqueles em que o coração não acelera porque sente que algo tranquilo abrandará para sempre as aflições. E o futuro de repente abre as portas para um andar sossegado, como se a vida até então fosse um longo pesadelo.

    Depois da epifania as cores ficaram mais nítidas, os problemas mais curtos e o sorriso mais largo. O calor, que incomodava meus sovacos suarentos, agora se aprochega tranquilo como um velho amigo. A vida já me parece mais simples e até o meu humor rançoso tem se esvaído devagar.

    O grupo do qual me desvencilhei é composto pela imensa maioria dos seres humanos: os que não sabem o seu lugar e, pior do que isso, não desconfiam qual a sua missão. No entanto, não quero causar alarde. Caso você pertença a essa multidão, não se desespere. Eu mesmo demorei quase quarenta anos para chegar à iluminação. Quem garante que você não será o próximo?

    Agora sou oficialmente da minoria. Na verdade, sempre fui do contra. Multidões me arrepiam e amedrontam desde criança. Jamais me comportei como um “Maria vai com as outras”, como diria minha avó. Sempre tive opinião forte, às vezes burra, mas sempre forte. Tenho pouquíssimos amigos e parto da premissa de que se todos gostam de algo é porque aquilo não presta, sobretudo culturalmente. Logo, se está na moda é uma porcaria e se é unânime, pior ainda.

    Hoje me sinto diferente. A satisfação do dever cumprido é inenarrável. Nunca fiz parte de grupos seletos. Não participo de sociedades secretas, não estou no coro da igreja, não li nem lerei “Café com Deus pai” e não abro a casa para a capelinha da paróquia. Não posto fotos ajudando os necessitados, não dou pitacos estilo coach na internet e não vendo cursos; porém, também me vejo como um homem realizado e iluminado, talvez não em estágio tão evoluído, mas ainda um tanto luzidio, por assim dizer.

    Se minha mãe estivesse aqui, não me furtaria o prazer de ligar para ela no exato momento em que a epifania aconteceu para contar que seu filho, depois de décadas e décadas, alcançou a iluminação e descobriu o seu lugar no mundo. Não sei como o orgulho agiria sobre ela, mas certamente mediria as palavras para não lhe causar algum infortúnio emotivo.

    Desde que a revelação me ocorreu, confesso não pensar em outra coisa, no afã de ocupar logo o meu posto, dia a dia, sorvendo a vida com a mais sincera alegria e a mais pura certeza de que não quero nem devo estar em qualquer outro lugar.

    O garçom, que entende os pormenores dos meus acessos de ansiedade, como todo bom companheiro, assim que me vê, traz logo uma cervejinha gelada para que eu possa realizar a minha imponente missão. O antigo bar na beira de um lago enorme, em que me sento sob a sombra de uma árvore bicentenária, parece funcionar também melhor naquela paisagem com a minha presença. Sinto que precisam de mim. De alguma forma, o bar, a árvore, a sombra, o lago, o céu, as montanhas ao fundo e eu damos sentido ao lugar e criamos ali uma atmosfera singular. Talvez só nós consigamos entender essa energia.

    Somos uma pintura antiga, esquecida por séculos num porão escuro, que enfim ganha os primeiros toques de restauração. Amanhã, com enorme alegria, lá seguirei. E depois de amanhã também, e depois e depois, e depois e depois. Na certeza de que não há desassossego que perdure muito tempo quando estamos no nosso lugar.

  • Botafumeiro

    Incensos sempre estiveram presentes na minha casa. Desde que, na juventude, comecei a praticar Yoga, sua fumaça perfumada me encantou e daí para frente fez parte do meu ritual de meditação e recolhimento.

    Passei a acender um incenso para estimular minha criatividade na hora de escrever, desenhar, deixar fluir novas ideias, mas também para afastar os maus fluidos de um lugar que me pareça meio carregado. Escolho cuidadosamente a procedência, a fragrância e o efeito a que se destina, e me entrego ao efeito inebriante que o sândalo, o benjoim ou a mira provocam.

    Mas essa prática sempre me fez lembrar do tempo em que ainda se usava o incenso nas missas de domingo, nas igrejas católicas. Os sacerdotes entravam balançando o turíbulo fumegante de olibano, com o intuito de elevar as orações dos fiéis ao divino. Sua fumaça criava uma sensação de mistério e reverência própria do misticismo da fé.

    Apesar de esse ritual não ser mais praticado com frequência nas igrejas brasileiras, o Botafumeiro, termo que deriva do galego e que significa, literalmente, “arremessador de fumaça”, continua sendo um dos símbolos mais emblemáticos da Catedral de Santiago de Compostela.

    Na minha caminhada pela Galícia, não pude deixar de participar da missa dos peregrinos e me deixar envolver pela fumaça perfumada que o turíbulo espalhava pela nave central e pelas laterais.

    O ambiente era de grande religiosidade, pois antes da missa começar os sacerdotes solicitavam a todos os visitantes não católicos que se retirassem, para os fiéis poderem acompanhar a missa em silêncio, sem fotografias, celulares e comentários — somente os cânticos e o rito em latim ecoavam pela magnífica basílica.

    O Botafumeiro era acionado ao iniciar a liturgia, e se repetia em determinados momentos da cerimônia, envolvendo os presentes numa névoa permanente, que propiciava a introspecção necessária à elevação do espírito e inundava o ambiente de um perfume reconfortante e acolhedor.

    Qual não foi minha surpresa ao descobrir, anos depois, que havia uma “segunda intenção” nesse ritual, muito mais prosaica do que a elevação dos espíritos — livrar o ambiente do odor dos peregrinos que, na idade média, faziam a caminhada em péssimas condições de higiene.

    Dei graças a Deus e ao Botafumeiro, pois pude constatar que, de lá para cá, nada mudou — bendito incenso!

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