Literatura

  • Spoiler a contragosto

    Henzo Felisberto, com agá, por favor, nunca gostou de spoilers. Quem conviveu com ele sabe disso. Ninguém se atrevia a lhe contar algo de antemão ou lhe adiantar o assunto. Era avesso a trailers de filmes, orelhas de livros e introduções. Nunca foi público para a fofoca e achava que a experiência perdia muito nessas antecipações indevidas. O comportamento de Henzo Felisberto afastava, talvez, uns quatro quintos da população, era um moço difícil, pra dizer a verdade, com agá. Se chamava Henzo Felisberto, com agá, por favor, porque, apesar de tudo, nunca foi descortês. Educou-se ao último grau em todas as instâncias adequadas para pessoas da sua estirpe.

    Nos registros, consta que Henzo Felisberto, com agá, por favor, foi por três anos goleiro do Não Me Conte Futebol Clube. Era um bom arqueiro, apesar de falhar nas bolas aéreas, vez ou outra. Além disso, conta com a triste marca de jamais ter defendido um pênalti porque se negava a estudar o batedor. Dizia preferir a surpresa. Coisas do futebol, sabe como é. Pois bem. Parou de jogar quando tentaram-no ludibriar para uma combinação de resultado. Afinal, se perguntava, como poderiam jogar assim? Conflitos existenciais pareciam não ser recorrentes na ética defeituosa do restante do time. Uma vergonha, de fato. Abandonou o esporte para se concentrar em atividades de princípios mais firmes.

    Com agá, por favor, Henzo Felisberto tinha um verdadeiro orgasmo espiritual quando encontrava certos avisos, tais como: Nota do editor: os leitores que ainda não conhecem o livro devem levar em conta que detalhes do enredo serão revelados nessa introdução”, ou ainda, quando havia alerta de spoiler no título da publicação, de preferência em vermelho, bem visível. Pois é, ninguém gosta de ser pego desprevenido. Henzo Felisberto, com agá, por favor, sempre primou pela experiência, pela emoção, pela surpresa. Acreditava que nenhuma palavra, indicação ou comentário tinha o direito de suprimi-lo dessa vivência. Um filósofo incompreendido, diriam alguns. Um otário, muitos outros. Eis que numa manhã de terça-feira, Henzo Felisberto, com agá, por favor, ia para o trabalho no seu Peugeot 206 enquanto o celular tocava incessantemente. Moço sério, centrado, jamais atenderia no trânsito, retornaria depois, quando estacionasse em frente ao departamento. Ouviu a marcha fúnebre noticiando um falecimento no rádio.

    Desligou-o de supetão. Na verdade, nem sabia porque ainda conectava aquela estação. Pegara o hábito da avó, talvez. Só quando parou em frente ao trabalho é que percebeu ter recebido dezenas de ligações, provindas da família, dos parcos amigos, dos colegas de trabalho, até dos antigos e antiéticos companheiros de time. Então, sem pensar muito, notou que a morte anunciada tinha relação com aquelas chamadas todas. Infelizmente, concluiu, alguém próximo havia falecido. As pessoas insistiam numa tentativa esdrúxula de avisá-lo.

    Mas, por favor, com agá, Henzo Felisberto não passaria por isso. Descobriria o defunto diretamente no velório. Teria uma experiência única, como só um mestre em evitar spoilers poderia conceber. Coisa de gênio, diga-se de passagem.

    Tratando-se de alguém tão próximo, lhe dariam folga no trabalho. Nem chegou a sair do carro, depois ligaria direto do velório para o chefe, explicaria tudo e receberia os pêsames. Desligou o celular e voltou para casa num oblíquo regozijo, fez cada curva do trajeto com a curiosidade de um turista, como se não conhecesse a própria cidade, tudo se mostrava novo, as fachadas dos comércios, as calçadas, as pessoas caminhando, as faixas de pedestres, o sinal vermelho, amarelo e verde. Um tempero reluzente dava a Henzo Felisberto, com agá, por favor, um espanto de recém-chegado. Entrou sorrindo no apartamento, preparou e bebeu devagar um chá preto, precisava dar tempo ao tempo. Pelo horário, o corpo ainda era preparado na funerária. Em uma hora ou duas o velório iniciaria. Vestiu o seu melhor terno com uma gravata azul bebê, nada muito chamativo. Esses eventos requerem uma formalidade discreta, embora nem todos saibam disso. Mediu-se paciente no espelho, não gostaria de aparecer desalinhado.

    Excitado com a experiência, mesmo fugindo do seu feitio, não deixou de confabular sobre o defunto: A morte do pai causaria uma discussão tremenda com a irmã sobre a divisão da herança. O irmão Erberth, com agá derradeiro, nesse caso, já deveria estar cuidando dos processos burocráticos. A irmã Eloísa, sem agá, mora longe e não está apta a debater o assunto de forma plausível. A morte da mãe o obrigaria a encontrar outra pessoa para lavar e passar suas camisas toda semana. Além disso, provocaria um efeito nocivo ao pai, que provavelmente morreria em seguida. O papo desconfortável com Eloísa, sem agá, e Erberth, com agá derradeiro, era iminente.

    Poderia, claro, não ser alguém da família. Se for o Ugo, estranhamente sem agá, ficaria decepcionado, afinal, é personal trainer e dá aulas de spinning como ninguém. Estranharia mesmo se a causa mortis fosse um enfarte fulminante. Se for a Martinha, sem agá nem clima para hora agá, ficaria também desiludido. Ela pululou as fantasias sexuais de Henzo a vida inteira, mas nunca lhe deu abertura para uma interação mais aguda, por assim dizer. Há poucos meses vinham tendo uma breve aproximação. E voltou a fantasiar cenas quentes com ela, embora seus princípios também argumentassem contra spoilers sexuais imaginários. A esperança, por fim, é a última que morre, mas com a necrofilia fora de questão, morreria também, mesmo que por último. E sua história com a Martinha terminaria sem agá, ou hora agá, melhor dizendo.

    Henzo Felisberto, com agá, por favor, chegou ao velório com borboletas no estômago, não ergueu os olhos, pois não queria ser abordado com histórias do morto antes de descobri-lo nem ser traído pelo olhar. Aquele seria o espanto máximo e, por um segundo, quase não suportou a ansiedade. Seguiu firme mirando os pés até o caixão, mas o encontrou vazio. Nele havia só um fundo branco adornado por flores também brancas e um travesseiro de dois ou três dedos, um mimo, cortesia da funerária. Num susto pulou lá dentro e logo estava confortável. Um terço azul pousou entre seus dedos, na mesma cor da gravata. O caixão era aconchegante. Cairia logo no sono, não fosse a mãe esbravejando ao telefone com Eloísa, sem agá, porque ouvia desculpas esfarrapadas para não aparecer. O pai, atônito, não entendia os últimos acontecimentos. Erberth, com agá derradeiro, puxava as orações. O Ugo, estranhamente sem agá, não compareceu. A Martinha ficou no velório por apenas cinco minutos e não se aproximou. O Não Me Conte Futebol Clube mandou uma coroa de flores com a imagem de um gol aberto e os dizeres: sempre será lembrado. Henzo Felisberto, com agá, por favor, dormiu profundamente pela primeira vez em anos, talvez em décadas, com a sensação de dever cumprido.

    A lápide foi paga pelo Não Me Conte Futebol Clube. O valor teria sido angariado num jogo vendido, mas isso não importa agora. No cemitério, fica no quarto corredor à esquerda. Lá se encontra com os dizeres: Aqui jaz, sem spoilers, Enzo Felisberto, com um agá pintado de canetinha pela irmã Eloíse, sem agá, quando foi visitá-lo, uma única vez.


  • Só um pouquinho

    Dona Glória acabara de comemorar seus 70 anos e, como presente, ganhou um gesso no braço. Uma queda boba, o tapete fora do lugar, o piso encerado e ela se estabacou no chão. No instinto, colocou a mão na frente e o braço segurou o peso de todo o corpo. Que não era muito, pois Glória se cuidava e mantinha a silhueta em dia. Mas também não era pouco.

    Dois meses depois do incidente, ela finalmente tirou aquele incômodo e a primeira reação foi coçar a parte esbranquiçada da pele. Mantinha uma cor bronzeada, fruto da proximidade da praia, e aquele pedaço de braço cor de isopor lhe assustou. Era como se voltasse no tempo e a visse criança, chegando ao Rio, junto com os pais italianos. Era tão branca que se destacava sempre quando se misturava com outras crianças.

    — Sua recuperação foi muito boa, Dona Glória! Mas, como o braço ficou muito tempo imóvel, vou recomendar uma fisioterapia. Algumas sessões e a senhora vai ficar como nova!

    Mais essa, agora! Ela não queria ficar como nova, queria apenas poder se coçar e tomar sol.

    — Tem certeza que preciso disso?

    — Claro. Depois de certa idade a musculatura atrofia e os ossos já não se recuperam da mesma forma. A fisioterapia vai fortalecer tudo.

    Depois de certa idade… Será que todo mundo tem uma idade que marca o começo do fim? Qual seria a dela?

    — Posso fazer em casa? Não tenho saído muito e prefiro o conforto do meu cantinho.

    O que ela queria mesmo era escapar do controle do médico.

    — Tenho alguns profissionais que atendem em domicílio sim. Vou te passar os contatos e a senhora escolhe o melhor.

    Nomes e telefones em mãos, Dona Glória voltou feliz da vida para sua casinha. Realmente achava que todo aquele cuidado era um exagero e deixou de lado a história do fisioterapeuta. Era uma mulher saudável, independente, ia se virar muito bem sozinha.

    Mas já nos primeiros dias, viu que não seria bem assim. O braço não correspondia ao comando, o ombro doía, os armários pareciam mais altos, a mesa mais longe, as cadeiras mais pesadas. Tudo que fazia, doía. Acabou se rendendo. Pegou de volta o papelzinho no fundo da bolsa e resolveu ligar para o primeiro nome da lista. Wagner.

    — Boa tarde Wagner, tudo bem? Aqui quem fala é Glória, quem me deu seu contato foi o Dr. Paulo. Você atende em casa?

    — Boa tarde Dona Glória, atendo sim.

    — Você pode vir amanhã? Estou com muita dor.

    — Posso sim. Pode ser depois do almoço, às 14 horas?

    — Marcado. Anota o meu endereço.

    Glória acreditava em intuição e gostou do jeito de Wagner. Uma voz mansa, grave, como um locutor de rádio de antigamente. Deveria ser um belo homem. Tomara que sim.

    Não que ela estivesse interessada em algo mais que a fisioterapia. Viúva há 20 anos, desde então não se interessara por mais ninguém. Se distraía com as amigas, entre mesas de bar e excursões para Caldas Novas. Elas também se reuniam todas as quartas para jogar buraco, organizavam o bazar da igreja, iam às estreias de filmes, peças de teatro, aulas de dança e tudo mais que o dinheiro desse e o quadril aguentasse. Eram conhecidas como as “Velinhas da Van”: Para todo lugar que queriam ir, alugavam a van do conhecido Seu Joaquim e chegavam seguras, festivas e aprumadas. Com isso, o tempo passava e ela se esquecia da saudade do marido e a distância dos filhos e netos, que sempre tinham algo mais interessante para fazer do que visitá-la.

    Às 14 horas em ponto Wagner batia na porta. Glória olhou pelo olho mágico e gostou do que viu: um homem alto, forte, com rosto suave e mãos fortes. Se ajeitou e abriu a porta com seu melhor sorriso:

    — Bem-vindo, Wagner. Muito trabalho te espera!

    Ele sorriu de volta e começou a se ambientar com a casa. Perguntou o que tinha acontecido, onde era a dor, tirou alguns aparatos e começou a sessão.

    O primeiro contato das mãos de Wagner no braço esquerdo de Glória causou-lhe um arrepio forte até o fim da coluna. Ela tinha se esquecido daquele pedacinho chamado cóccix que ligava as costas às partes mais íntimas e tremeu. Ele pegava de maneira firme, fazia movimentos vigorosos e tudo parecia voltar para o lugar como um milagre. Depois de 40 minutos, Glória, radiante com as novas emoções e já se sentindo um pouco mais ágil, resolveu fazer um café para os dois.

    — Adoçante ou açúcar?

    — Puro mesmo.

    Café de macho. Começaram uma conversa amigável, levada pelo aroma quente da bebida. Ela descobriu que Wagner era o primogênito de seis irmãos, filho de uma empregada doméstica e um motorista de ônibus. Tinha 28 anos, cursou Fisioterapia para ajudar a avó que sofrera um acidente em casa – uma bobagem, mas que ainda limitava os seus movimentos – e conseguiu uma bolsa através do FIES. Ela se limitou a falar que era viúva. Tinha medo de dar muitos detalhes. Achava sempre que podia ser sequestrada ou roubada. E ele teria acesso a ela e a casa, melhor prevenir.

    Marcaram mais sete sessões, duas por semana, sempre depois do almoço. Glória pagou as dois primeiras e disse que ficariam assim.

    — Até sexta!

    Um sentimento novo tomou conta de Glória. Era como se sentisse de novo o seu corpo, que lhe servia apenas para levá-la da praia para casa e de lá para os encontros com as amigas. Colocou uma música no antigo aparelho de som, empoeirado de tão esquecido e se viu dançando pela sala. Feliz.

    As sessões se sucederam com verdadeiro sucesso. Glória não só já fazia todos os movimentos com o braço, como achava mesmo que todo o corpo se movimentava melhor. Já tinha contado toda a sua vida para Wagner, que também era devoto de Nossa Senhora e achou uma beleza ela se chamar Glória por ter nascido no dia 15 de agosto, dia de festa para Nossa Senhora da Glória. Depois das sessões, ela, feliz, mas sozinha, sempre arriscava uns passos de dança e começou a sentir falta de dançar com alguém. Será que Wagner lhe acompanharia em uma dança?

    No dia da última sessão ela preparou uma surpresa: comprou um presente para Wagner em agradecimento a sua dedicação e toda alegria de viver que tinha invadido a sua vida. Queria um pretexto para lhe convidar para dançar e acreditava que o presente e o fim das sessões seriam motivos suficientes.

    Depois do último exercício finalizado, ela tomou coragem. Pegou o embrulho como uma adolescente apaixonada. Sentia o rosto queimar.

    — Comprei para você. Sei que vai lhe ajudar muito.

    — Não precisava Dona Glória, imagina.

    Era um massageador elétrico, último modelo. Ele tinha comentado que um daqueles iria lhe abrir outras portas e resolveu dar um empurrãozinho. Wagner ficou contentíssimo, nem sabia como agradecer.

    — Eu tenho uma ideia, Wagner. Você me acompanha em uma dança?

    — Será um prazer, Dona Glória.

    — Glória. Me chama de Glória.

    Ela colocou um disco antigo de bolero e se deixou levar pelos braços de Wagner. Ele não sabia exatamente como se dançava um bolero, mas aquilo era o que menos importava. Os corpos unidos era só o que Glória precisava. Existia nela ainda um furor de mocidade e o contato doce daquela fartura toda fazia seu coração acelerar e o seu ventre acordava de um longo período de total esquecimento. Ela queria mais.

    Mas a música parou e Wagner se desvencilhou gentilmente de Glória dizendo que precisava ir.

    — Foi um prazer Dona Glória. Precisando de qualquer coisa, pode me ligar.

    E Glória precisava muito, de muito mais. Mas como impedir que ele sumisse de sua vida para sempre? Inventar novas dores, quebrar o outro braço? Não podia se dar ao luxo de quebrar mais nada, não suportaria mais dois meses de gesso e incômodos. Precisava de uma desculpa muito bem elaborada. Sabia que ele precisava de dinheiro, precisava ajudar em casa. Resolveu ligar para uma amiga, a mais esperta.

    — Sarah precisa que me ajude a pensar em uma desculpa.

    — Ele… O que foi?

    Glória contou toda a sua saga para Sarah, judia tradicional que frequentava as melhores rodas do Leblon. Esperta, negociante nata, ela foi certeira:

    — Ele precisa de dinheiro e nós, de distração. Que tal pagar para ele dançar com nossas amigas?

    — Será, Sarah? Não poderia parecer uma certa prostituição?

    — Ele não vai fazer sexo, só vai dançar. Por favor, Glória, nessa idade não precisamos ter tanto pudor!

    A ideia não era ruim. Glória sabia que todas as suas amigas sentiam falta de um parceiro de dança e Wagner era um pedaço de mau caminho. Elas iriam adorar a novidade e todas podiam pagar, sem dúvida. Mas, quanto ele iria cobrar? Resolveu parar de pensar e agir.

    — Bom dia Wagner, tudo bem? É Glória.

    — Bom dia Dona Glória. Está tudo bem?

    — Tudo ótimo querido. Você não vai acreditar. Conversei com algumas amigas sobre a nossa dança e como você foi gentil comigo. Elas ficaram morrendo de inveja.

    — Imagina Dona Glória. Nem danço tão bem assim.

    — Não seja modesto, rapaz. Me senti uma Ginger Rogers! E sabe o que elas me pediram?

    — Não tenho a menor ideia!

    Gloria tentava colocar toda a culpa nas amigas.

    — Elas querem que você dance com elas! Claro, vamos pagar para isso.

    Wagner ficou calado por um tempo. Achou tudo muito estranho, mas precisava de dinheiro. E o que poderia ser mais inocente em fazer meia dúzia de senhoras felizes?

    — Confesso que estou meio surpreso com a oferta…

    Glória se sentia um cafetão.

    — Mas também confesso que realmente estou precisando de uns extras.

    Aliviada, Glória resolveu encerrar o assunto e marcar:

    — Perfeito. Amanhã às 8?

    — Marcado.

    Glória desligou o telefone se sentindo uma devassa. Era como se marcasse um encontro com um garoto de programa, sentia a adrenalina tomar conta de suas emoções. Agora era convencer as amigas a ir até a sua casa e dançar com Wagner. Não seria problema. Sexta à noite normalmente ninguém tinha programa e o fato de sair de casa já era um acontecimento.

    Os preparativos começaram logo cedo. Glória arrumava a casa como uma criança que espera o Natal. Pensou em tudo: separou os discos, dividiu entre as amigas os comes e bebes, ajeitou o espaço para todas se sentarem e, também dançarem. Tinha uma sala espaçosa e precisou apenas rearrumar alguns móveis para que os novos passos coubessem no local.

    A noite chegou e Glória parecia uma debutante. Na excitação, não nos costumes. Colocou seu vestido vermelho, se perfumou como se fosse pecar e arranjou uma rosa vermelha para o cabelo. Se sentia uma cigana. Só faltava rodopiar com seu par, que acabava de tocar a campainha:

    — Chegou cedo, Wagner!

    — Achei melhor me antecipar. Quero saber como vai funcionar a hora dançante… Rs…

    — Bem, você dança com cada uma de nós pelo menos duas músicas, pode ser?

    Ele fez os cálculos de tempo: duas músicas, máximo 5 minutos cada música, 10 senhoras… Não ficaria nem duas horas por lá. Para receber uma boa grana, estava ótimo.

    — Perfeito, Dona Glória. E o pagamento é antes ou depois?

    — Posso te pagar agora!

    Tudo acordado, as amigas de Glória foram chegando aos pares, cada uma mais perfumada e arrumada do que a outra. A sala começou a ficar impregnada de sândalos e almíscares e Wagner já estava meio tonto, pois cada uma delas fez questão de cumprimentá-lo de maneira, no mínimo, efusiva. Sarah foi a que mais se demorou nos braços do rapaz:

    — Glória, esse homem é um escândalo! Vai ser difícil segurar as meninas.

    De fato, as “meninas” estavam como abelhas no mel. Sorriam, mexiam nos cabelos, destacavam os decotes. Não saíam de perto de Wagner e já se enfileiravam para começarem as danças. Glória resolveu dar início a festa e colocou uma valsa. Achava chique.

    — Valsa, Glória? Não tem nada mais moderno?

    — Moderno? Desde quando somos modernas?

    E lá se foram as primeiras danças, com Wagner se esmerando nos rodopios e as amigas de Glória se sentindo adolescentes virgens sendo conduzidas pelo pretendente. Algumas soltavam pequenos gritinhos de prazer, outras apenas se ajeitavam para sentir os músculos – todos – de Wagner e outras estavam tão excitadas que o corpo parecia desobedecer. Viúvas há anos, todas já não sabiam mais o que era sentir prazer. E o que seria apenas 2 horas de dança inocente, se tornou uma grande festa, com Wagner se desdobrando para atender a todas em passos ousados e singelos amassos.

    Na outra semana, Glória resolveu se modernizar. Pediu ajuda para a neta, que apareceu uma tarde para pegar um casaco de pele emprestada. Quase não a reconheceu, estava com o cabelo roxo.

    — Isso é moda?

    — Super, vó! Quer que eu pinte o seu?

    — Deus me livre! Do que você precisa?

    — Você ainda tem aquele casaco de pele luuuuxooo?

    — Claro que eu tenho… Mas não sabia que ainda se usava isso! Não é antiecológico?

    — Que é, é. Mas é chique, né vó?

    — Isso é verdade. Tenho uma ideia! Que tal fazermos um trato?

    — Que trato, Dona Glória?

    — Eu te dou o casaco – só não conta para a sua mãe, ela é doida por ele! – e você me ensina a mexer no celular.

    — Feito!

    Em uma hora, Glória se tornou uma expert da telinha e ainda aproveitou para lanchar com a neta e colocar a conversa em dia. Ficou sabendo das últimas fofocas, dos namoros, começos e fins, do tal “ficar” e do relacionamento aberto. Achou tudo moderno demais para ela, mas se despediu da neta pedindo que ela voltasse mais, não só para pegar peças emprestadas. E, de preferência, com os cabelos castanhos mesmo. Depois que ela se foi, Glória se ateve ao seu novo brinquedinho. Estava agora em outro patamar, muito além do bom dia e figurinhas com flores no whatsapp. Baixou um aplicativo de música e não se fez de rogada. Começou a organizar playlists como uma DJ da terceira idade. Relembrou sucessos da sua época, descobriu novos cantores e fez uma playlist de tirar o fôlego: foi de Luis Miguel a Carlos Rivera, Michael Bublé e Lucho Gatica. Ok, Lucho Gatica não era exatamente uma novidade, mas ainda fazia Glória suspirar. Lembrou-se de um jantar dançante que foi com o marido no Chile. Lucho cantava por entre os casais que deslizavam na pista e Glória tentava disfarçava o olhar e o rubor que aquele homem sedutor lhe causava ao som de “La Barca”. Sabia a letra de cor e salteado e cantava baixinho, como se fosse para ele.

    À noite, na cama, com o marido já dormindo, se masturbou querendo ser de Lucho. Foi a única traição cometida em 30 anos de casamento.

    Sexta feira chegou novamente e Glória, como sempre, eufórica. Com aquela seleção de músicas mais calientes, ninguém mais iria chamá-la de antiquada. Se sentia muito ousada, para falar a verdade. As meninas chegaram ainda mais cedo, todas vindas do salão de beleza. Impecáveis. Não se via um esmalte descascado, uma raiz de cabelo por fazer, um batom fora dos lábios. Os vestidos eram novos, sem dúvida. Ou estavam esperando por uma data especial. Brilhantes, ousados, sedentos por novidades. A sala parecia um clube na sua hora mais feliz: a dançante. O ano poderia ser 1960. Todas estavam à espera de um grande amor. Ainda guardavam a inocência e tinham aquela ilusão boba que nos permite acreditar. O que seria de nós sem ela?

    Wagner também surgiu mais bem arrumado. Seu perfume invadiu a sala e o frenesi que a sua presença causava podia ser sentido pelas cadelas no cio de toda a vizinhança. As mulheres já não mais se enfileiravam, mas se sobrepunham, uma a uma, sobre Wagner. Mal uma dança terminava, outra começava com o novo par. Eles ensaiaram paços de tango, se requebraram em boleros e se extasiaram a cada passo dado de maneira mais próxima. Ou faziam acontecer esse roçar que encorajava o próximo ato.

    Glória, como dona da casa, acabava ficando por último, pois estava sempre às voltas com as bebidas e salgadinhos que as amigas levavam. A maioria sobrava, pois todas as bocas estavam preocupadas em sussurrar gracinhas para Wagner. Aquilo já estava deixando Glória louca. Ela se mordia de ciúmes, queria tirar uma por uma dali. Enquanto isso, o rapaz tentava levar as investidas daquelas senhoras de maneira educada e, invariavelmente, tirava uma ou outra mão mais atrevida do seu peito. Ou de partes, digamos, mais baixas. Lembrava-se do pagamento e sorria para disfarçar o inconveniente.

    Com isso, Glória sempre dançava com um Wagner já exausto. Duas horas de dança ininterrupta era uma maratona. E ainda tinha o jogo de cintura, o maxilar fixo, a concentração para nada sair do combinado. Em uma dessas noites, depois de todas as amigas de Glória já terem ido embora – todas tinham medo de chegar em casa muito tarde – Wagner simplesmente se deixou cair no sofá. Recostou-se e cochilou. Estava exausto. Começava o dia muito cedo, entre atendimentos em domicílio, clínicas, ônibus e trens. Se sentiu em casa e dormiu.

    Glória voltava da cozinha com duas taças de vinho para terminaram a noite, ainda falando algo sobre o assanhamento de Sarah:

    — Você reparou como ela dança? Parece que nunca viu homem na vida, Wagner. Você não deveria deixar ela ficar tão perto de você assim…

    Claro que aquilo era puro ciúmes. Glória já estava perdendo a compostura e se arrependendo de ter começado aquela história. Queria Wagner só para ela. Mas como?

    Quando chegou na sala, ainda retrucando, deu de cara com aquele deus no seu sofá. Baixou o tom de voz, pegou uma mantinha para cobri-lo e ficou ao seu lado, como em vigília. Ele nem roncava, veja bem! Parecia um gatinho, só ronronava. Chegou um pouco mais perto para sentir o seu perfume e foi descendo o rosto para o peito de Wagner. Seu coração acelerava ao mesmo tempo que seu rosto se aproximava daquele corpo. Queria lhe arrancar a roupa, lamber seu peito, fazer loucuras que ela só tinha visto em filmes.

    De repente, Wagner se mexeu e Glória se assustou. Ele abriu os olhos e a encarou:

    — O que a senhora está fazendo?

    — Descoberta como uma contraventora, Glória perdeu a voz. O que ela estava fazendo?

    — Euuuu…quer dizer…é que…

    — A senhora estava me cheirando?

    — Imagina, Wagner! Você me respeite! – Disse, unindo toda a moral que se esvaía. Estava apenas ajeitando a manta!

    Ele se levantou indignado, pegou seu casaco e disse:

    — Acho que a senhora passou dos limites, Dona Glória. Não sou um prostituto.

    Ela tremia:

    — Meu Jesus, é claro que não. Não estava fazendo nada, Wagner, eu juro!

    — Me desculpe, Dona Glória, mas não volto mais aqui.

    E se foi, com toda a sua dignidade e dúvida. Muitas dúvidas.

    Glória chorou. Como uma menina abandonada pelo primeiro amor. Colocou Lucho na vitrola e chorou ainda mais. Ouviu Lucho até adormecer. Não queria acordar.

    Mas o dia raiou e invadiu a janela. Invadiu o quarto e iluminou o rosto de Glória. Era preciso acordar. Seu rosto, inchado pelo desespero, parecia derreter. Precisava reconquistar Wagner, precisava que ele voltasse. Precisava.

    Dessa vez não quis falar com Sarah ou nenhuma outra amiga. Queria Wagner só para ela. Pensou em lhe pedir desculpas, pedir que ele reconsiderasse. Oferecer mais dinheiro, pedir aulas particulares. Qualquer coisa que fizesse com que ele entrasse novamente pela porta da sua casa e fizesse as cadelas do bairro estremecerem.

    Resolveu esperar alguns dias, deixar a poeira baixar. A raiva nunca é boa conselheira. Na outra sexta feira, dia em que ele normalmente estaria de volta, resolveu ligar. Não sem antes avisar a todas as amigas que Wagner não daria mais aulas de dança. Inventou uma doença na família, ouvia uma dezena de lamentações e suspirou aliviada. Agora vinha a segunda parte: tomou coragem e ligou para Wagner. Ele atendeu, o que já era um bom sinal:

    — Boa tarde, Dona Glória.

    — Boa tarde, Wagner, que bom que você me atendeu.

    — Não tenho mágoas da senhora.

    — Ótimo. Gostaria de me desculpar se lhe passei uma impressão errada. Não gostaria que nossa amizade terminasse assim.

    — Fica tranqüila, Dona Glória. Acho que exagerei um pouco também.

    Glória respirou, aliviada.

    — Que bom, meu querido. Você não quer vir aqui hoje, para conversarmos? Sem as meninas, claro…

    Wagner parou um pouco para pensar. Será que ela poderia tentar algo mais?

    — Prometo que será apenas uma conversa. Mas se quiser dançar…

    Cedeu.

    — Irei sim, Dona Glória. As oito mesmo?

    Em ponto.

    Glória desligou o telefone com um sorriso maroto. Tinha jogado a isca e seu peixão tinha fisgado. Agora era com ela.

    Fez uma outra playlist, mais lenta e sensual. Estava craque em escolher e listar músicas. Comprou velas e alguns petiscos. Deixou o melhor vinho na geladeira, só para resfriar levemente. Decidiu comprar uma lingerie. Queria algo sexy, rendado, de puta, como sua mãe dizia. Nada bege, grande, feito para esconder a barriguinha ou amassar os seios. Vermelho sangue. Vermelho paixão. Parecia endiabrada, com um fogo lhe consumindo por dentro. Como no dia que gozou para Lucho Gatica.

    Wagner chegou pontualmente às 20 horas. Glória já tinha bebido um pouco, para relaxar. Abriu a porta com um sorriso encantador. Seus olhos verdes flamejavam:

    — Bem-vindo, querido!

    — Boa noite Dona Glória.

    — Glória, Wagner. Só Glória.

    — Para que tantas velas?

    — Gostou?

    — Sim, ficaram ótimas.

    — Li em algum lugar que elas dão um tom calmo ao ambiente. Resolvi experimentar.

    — Fez bem.

    Se sentia ardilosa.

    Eles se sentaram no sofá. Ela serviu o vinho. Eles se olharam ao brindar. La Barca começou a tocar.

    — Dança comigo, Wagner?

    — Claro, Do…Glória.

    Eles se encaixaram no ritmo da dança e Glória pôde sentir novamente aquele cheiro que lhe acompanhava em sonhos. Em delírios. Seu rosto se afundou no ombro de Wagner que escorregou as mãos pelas costas de Glória e sentiu também seu perfume. Era elegante, nada muito doce. Tocante. A música envolvia o ambiente e, à luz de velas, as diferenças desapareciam. Eles eram apenas um homem e uma mulher. Dançando.

    Glória se afastou um pouco para olhar o rosto de Wagner e se aproximou de seus lábios. Ele disse algo que ela não entendeu, ela chegou mais perto e ele não se afastou. Os lábios se tocaram, a princípio tímidos. As línguas se permitiram e as bocas se devoraram. Wagner e Glória pareciam febris, sem entender toda aquela volúpia. Na sala, no mesmo sofá que haviam se desentendido há uma semana, os dois se permitiram.

    Glória desabotoou a camisa de Wagner e lambeu o seu peito, com uma luxuria pecaminosa.

    Ela tinha um belo corpo e Wagner começou a explorá-lo, doce e gentilmente. Com pequenas mordidas e beijos sufocantes, seus corpos foram se encontrando em um ritmo que não estava na playlist. Nem nos mais insanos sonhos de ambos.

    Quando Glória aproximou sua mão do membro de Wagner, levou um susto. Era mulher de um homem só e não imaginava que aquilo poderia vir em tamanhos tão diversos. Sentiu medo. Será que, depois de tanto tempo, conseguiria dar conta de tanto? Tomou coragem e pediu:

    — Põe. Mas só um pouquinho!

    Wagner sorriu. Desceu sua boca até o sexo de Glória, que nunca havia recebido tanta atenção. Tinha vergonha, tinha culpa, achava sujo. Mas tudo desapareceu quando sentiu aquela língua quente. Suas pernas se abriram e suas coxas se molharam. Wagner se fartou e levou todo o gosto de Glória de novo até sua boca. Se lambuzaram até com o pouquinho, que Wagner colocou e tirou até Glória gozar aos prantos.

    Se bastaram. Dançaram. E, de pouquinho em pouquinho, se amaram.

    Imagina quando Sarah souber!


  • O tempo que não temos

    Ao escritor faltam muitas coisas, dinheiro, valorização, suporte e – frequentemente – sobre o que falar. O cronista, tendo a obrigação periódica de sentar e tirar algo do papel, é o que mais sofre com isso. Mas não, não divagarei aqui sobre a falta de assunto. Não irei cair nesse lugar comum dos autores de crônicas. Pelo menos, não agora. Não será desta vez que adentrarei no rol daqueles que possuem um texto com essa temática. Pelo menos, não agora. Do que eu quero falar e reclamar diz respeito a outra falta: a de tempo.

    Esse problema, certamente, não é exclusividade do escritor. Longe disso. Algo comum de nossos tempos é, justamente, a falta de tempo. Com exceção de alguns poucos (os muito ricos e os vadios, que são quase a mesma coisa, mas só os segundos têm minha admiração), não se escapa à correria, à agonia, à agenda apertada e ao relógio a achacar cada suspiro de nossa vida.

    Espremido pelo tempo, o homem vive; espremido pelo tempo, o literato sobrevive. Além de todos os afazeres diários, o escritor precisa lidar com as matérias artísticas e com a vida literária. Ou precisaria, pois, muitas vezes, só resta falhar. Mais uma atividade, mais algo em torno do qual a vida se desenvolverá nas mesmas 24 horas. Afora o trabalho e as obrigações diárias, há a palavra, da qual não se escapa, mesmo quando ela, na azáfama cotidiana, escapa ao texto.

    O autor se encontra comprimido no dia a dia, na exigência de comer, de pagar as contas, de comprar o leite do menino…. Necessidades a oprimir a necessidade do verbo, que remanesce tímida, taciturna e necessária.

    Ao contrário do se poderia pensar, o trabalho científico é mais concorrente do que companheiro do labor artístico. E, estando inserido na vida acadêmica e suas demandas inesgotáveis, é sobre elas que minha atenção se concentra. Mais em documentos do que em versos, mais no século XVIII do que em mim, mas na política do que no amor, é assim que meus pensamentos se encontram ao longo da semana, mesmo nas horas que – supostamente – seriam de descanso. Tomada pela pesquisa e seus problemas, raramente o cérebro se desliga daquele foco e se permite outros voos.

    Sendo mais que o tempo de irrupção da ideia, o pensar literário encontra breve espaço para existir e se nutrir. Porém, mesmo nesse contexto hostil, há vezes que uma reflexão ou um verso me ocorre. Brota em mim com efusão e, com dor e lamentação, vem a morrer sem desabrochar. Escasseiam-se os momentos durante a semana nos quais poderia cultivar aquilo que me veio de repente e que se foi ainda mais de repente, existindo apenas no fugaz instante em que me lembrei escritor.

    Todavia, não raro, aparecem, no final do dia, algumas horas disponíveis. “Vou abrir o computador e escrever”, penso eu. Porém, outra vez, o cansaço vence a vontade e me vence. Mais do que a página do word, meu corpo chama a cama e me entrego a ela. Em berço esplêndido, quando já espero encontrar meus sonhos, alcança-me um mote. Todos sabem como se deve proceder nessa situação: pegar o caderninho e anotar. Faço isso? Que nada, o pouco de energia que sobrou não me permite. Assim, cerro os olhos e o expediente de escritor, que, naquele dia, nem começou.

    Já se foi a época em que minha principal preocupação no mundo da escrita eram as questões estéticas que rondavam a minha cabeça e os livros que lia. Hoje, a maior inquietação que me toma é ter um minutinho para rabiscar meia dúzia de letras ou passar os olhos em algum poema.

    Talvez esteja aí minha grande dor; dor que, com certeza, aflige a tantas outras pessoas que vivem a literatura. A tantas pessoas que veem seu contato íntimo com a matéria viva mais dissipado, que veem sua experiência humana mais pobre e apenas veem.

    Não irei fechar essa página e esse desabafo desejando a morte do meu respeitável público como fez Rubem Braga ao se queixar da falta de assunto. Entretanto, irei xingar o sistema econômico, a academia, o relógio, o motorista de ônibus que queimou a parada, a fila do supermercado, o amigo que me parou para conversar e eu mesmo. Xingarei a todos que merecem e que não merecem.

    Todavia, enquanto xingo, sonho. E, em minha utopia, – não tenho dúvidas – haverá tempo para a arte; para tudo haverá, até para se balançar na rede olhando o pássaro na caixa de ar-condicionado. Nós teremos o tempo.


  • Crônica biografia do mundo de hoje

    Tenho sobre a minha mesa de canto all’aperto1 (como gosto de mesclar palavras e expressões das minhas duas línguas de fluência, o português e o italiano, a minha rotina! É uma forma de sintetizá-las numa só coisa, o meu eu real, a configuração amorfa do que sou enquanto um ser em constante expansão) cerca de duas dezenas de livros, referências de uma vida “pré” graduação e especializações várias. Me preparo para um estudo de caso que validará mais um diploma ao rol das coisas que vira e mexe me proponho a aprofundar-me – ou abrir sob meus pés um abismo de questionamentos profundos, quiçá sem respostas, que, como curiosa intensa e exploradora de mundo, me dedico numa corrida sem fim. Em tais exemplares, o assunto, se sintetizarmos, pontua-se, sempre nas recônditas zonas do espírito humano: das codificações de mundo que criamos à ideia da extinção das nossas mortes, passando pelas transformações dos desenhos das cidades e por nossas interações com artefatos e com as nossas casas, reflexo material do que pensamos e do modo como agimos – consequente demonstração de como o desenho urbano atua sobre nossas atitudes.

    Um destes exemplares, publicado em 1967, foi presente de meu pai (como sempre, em tudo na minha vida, ele me presenteou com referências de todas as formas possíveis – e como me tornei essa parte dele, que agora me acompanha em espírito já que não é mais possível tê-lo fisicamente). “A crise das cidades”, de Wolf von Eckardt com prefácio do então administrador de recreação e assuntos culturais da Cidade de Nova York, August Heckscher, é um marco na minha existência, pois, além de me batizar como a cronista que sou (Bia Mies nasceu de um ‘apelido’ extraído do meu nome “oficial”, Nú Bia, acrescido de um “pseudo sobrenome”, Mies2, originado do nome de um dos arquitetos que mais aprecio, o Mies Van der Rohe, que conheci através das páginas deste livro), reforçou minha escolha pela graduação em Arquitetura e Urbanismo, numa época em que as dúvidas me jogavam para o jornalismo, para as artes cênicas e para essa inenarrável responsabilidade e comprometimento de vida que é titular-se arquiteta e manter-se firme em tal posição com todas as provações da vida profissional. Reforçarei uns recortes do prefácio, que julgo ser de interesse educacional geral:

    (…) Aliás, a influência da Arquitetura sobre nossa vida – Arquitetura
    compreendida nos termos mais amplos, incluindo o planejamento e
    preocupação com o ambiente total – pode ser tão grande que
    quase ficamos estarrecidos com as responsabilidades que cabem a
    essa profissão. Não faz muito tempo, bastava que o arquiteto
    tivesse a habilidade de desenhar prédios individuais, elegantes ou
    utilitários, conforme o caso. Agora, ele concebe e planeja cidades e
    regiões e pensa em termos da filosofia do homem e dos seus
    valores fundamentais. Portanto, é essencial que se desenvolvam
    bons críticos de Arquitetura (…) Também é indispensável que o
    público possa compreender plenamente o que o arquiteto está
    procurando fazer. (…) também falar sobre limites num sentido mais
    exato – o ponto além do qual os arquitetos não podem ir sem ousar
    fazer o trabalho de estadistas – ou mesmo de deuses. (…) este livro
    deixa claro, o arquiteto não é apenas um construtor; ele também é
    um artista e, como artista, arca com o peso da profecia e da
    compulsão por nos dizer o que é o bem-viver.”

    A crônica de hoje começa quase biográfica, mas hei de traçar o paralelo com o todo, fora de mim: se compreendemos o mundo a partir de uma leitura pela íris de nossas bagagens pessoais de experiências, todos os textos são um tanto quanto biográficos, mas ao passo que se transformam em publicação, destinam-se aos que os leem, e, portanto, tornam-se públicos, sem domínio direto de seu conteúdo, um descolamento do pessoal por trás da escrita. Enquanto a minha vida assemelha-se cada vez mais ao
    casamento entre uma esponja e um liquidificador, tento gerar filhos que sejam produtos das receitas que pelos seus progenitores se misturem, e assim, ser crítica, ser artista, ser técnica e ser humana, colocando-me a serviço da sociedade, em tempo integral. Habilidade ou loucura?

    Uma busca constante, um eterno esforço a caminho de algo que nunca chega; é sobre o tempo que eu gostaria de dissertar: o que somos, não basta. O presente é constantemente tratado como o momento em que devemos viver; mas a condição humana que nos difere dos outros animais é ter a noção da finitude. E seria essa uma habilidade adquirida com a educação? De quando passamos da fase em que tudo é plena novidade e tentamos nos comunicar através de gestos, sorrisos, choros ou sons incipientes e sem nexo, Kairós é derrotado por Chronos, dois deuses da mitologia grega que simbolizam, em breves palavras, o tempo eterno – sem quaisquer referências ao passado ou futuro, sinônimo de qualidade – e o tempo cronológico e implacável – passagem do tempo, o presente constante que esquece de si mesmo,
    sinônimo de quantidade.

    Se cada um de nós é formado, independente do seu grau de instrução – basta viver em sociedade -, para agir, adquirir, aprender e tantos outros verbos de A a Z, como é que conseguimos dar conta de puramente ser, no fim das contas? Na filosofia é comum aproximar ambos os deuses à ideia do estado de flow, esse tempo distorcido da realidade que nos permite ter espaço para a consciência. O que somos não basta, repito. Se temos um intenso contato conosco, somos, provavelmente, improdutivos. Se não produzimos, somos excluídos; se produzimos elevamo-nos a um estado de esforço profundo que afrouxa as presilhas da nossa identidade. Mas todos esses esforços em favor da vida levam-nos à morte. E a morte é o que devemos combater, acima de qualquer coisa. Então construímos sociedades, cidades, casas, famílias, seres humanos. Quantidades. E nos baseamos em leis – palavras formuladas para ‘um todo’, acessível universalmente à ideia imperativa do que seja isso, a cada época -, que procuram ser democráticas, mas que excluem. Ontem assisti a um filme contemporâneo do cinema italiano intitulado Nata per te3, que narra a história verídica de um jovem homossexual católico que tenta adotar uma bebê com síndrome de Down (disponível a todo público brasileiro pelo link CLIQUE AQUI do Festival de Cinema Italiano até 08 de dezembro). Na prática, o abandono de um ser deveria ser julgado com mais profundidade do que a tentativa de criá-lo, com todos os percalços que a vida irá impor – além da dialética Kairós e Chronos, obviamente. Mas percebe-se como o peso das culturas, construções humanas de grupos, e as leis são de maior relevância do que a vida, em si. Como nossas habilidades são poderosas demais perante o que realmente é de vital importância. Quantidade ou qualidade? Como é a verdadeira face do tempo se nos vestirmos com qualidades reais, uma roupagem de amor, a nós mesmos e aos próximos, nossas habilidades qualitativas? O que somos, não basta?

    Minha pilha de livros tende sempre a aumentar; eu não sei basear-me em pouco para ser uma pessoa só. Culpa do tempo (in)visível que nos molda, culpa dos meus pais, que fizeram o melhor frente ao que a sociedade sempre os impôs. Culpa de ser humana, imperfeita e performática. Culpa da arte pela qual extravaso meus dilemas, e com a qual as coisas – palavra mais significativa e influente deste tempo – nos vulgarizam.

    Termino com a tradução e letra original da música Il mio canto libero4, de Lucio Battistini, que foi base do filme aqui comentado (e cujo link do QR CODE).

    Em um mundo que
    In un mondo che
    Não nos quer mais
    Non ci vuole più
    O meu canto livre é você
    Il mio canto libero sei tu
    E a imensidade
    E l’immensità
    Se abre ao nosso redor
    Si apre intorno a noi
    Além do limite dos seus olhos
    Al di là del limite degli occhi tuoi
    Nasce o sentimento
    Nasce il sentimento
    Nasce em meio aos prantos
    Nasce in mezzo al pianto
    E se levanta bem alto e vai
    E s’innalza altissimo e va
    E voa sobre as acusações das pessoas
    E vola sulle accuse della gente
    Sobre todos os seus legados indiferentes
    A tutti I suoi retaggi indifferente
    Apoiado em um anseio de amor
    Sorretto da un anelito d’amore
    De verdadeiro amor
    Di vero amore
    Em um mundo que – Pedras um dia casas
    In un mondo che – pietre un giorno case
    Prisioneiro é – recobertas pelas rosas selvagens
    Prigioniero è – ricoperte dalle rose selvatiche
    Respiramos livres eu e você – revivem, nos chamam
    Respiriamo liberi io e te – rivivono ci chiamano
    E a verdade – Bosques abandonados
    E la verità – boschi abbandonati
    Se oferece nua a nós e – por isso virgens sobreviventes
    Si offre nuda a noi e – perciò sopravvissuti vergini
    E límpida é a imagem – abrem-se
    E limpida è l’immagine – si aprono
    Agora – nos abraçam
    Ormai – ci abbracciano
    Novas sensações
    Nuove sensazioni
    Jovens emoções
    Giovani emozioni
    Exprimem-se puríssimas
    Si esprimono purissime
    Em nós
    In noi
    A roupa dos fantasmas do passado
    La veste dei fantasmi del passato
    Caindo deixa o quadro imaculado
    Cadendo lascia il quadro immacolato
    E se levanta um vento quente de amor
    E s’alza un vento tiepido d’amore
    De verdadeiro amor
    Di vero amore
    E te redescubro
    E riscopro te
    Doce companhia que
    Dolce compagna che
    Não sabes pedir, mas sabes
    Non sai domandare ma sai
    Que aonde quer que irás
    Che ovunque andrai
    Ao teu lado me terás
    Al fianco tuo mi avrai
    Se tu o queres
    Se tu lo vuoi
    Pedras um dia casas
    Pietre un giorno case
    Recobertas pelas rosas selvagens
    Ricoperte dalle rose selvatiche
    Revivem
    Rivivono
    Nos chamam
    Ci chiamano
    Bosques selvagens
    Boschi abbandonati
    E por isso virgens sobreviventes
    E perciò sopravvissuti vergini
    Se abrem
    Si aprono
    Nos abraçam
    Ci abbracciano
    Em um mundo que
    In un mondo che
    Prisioneiro é
    Prigioniero è
    Respiramos livres
    Respiriamo liberi
    Eu e você
    Io e te
    E a verdade
    E la verità
    Se oferece nua a nós
    Si offre nuda a noi
    E límpida a imagem
    E limpida è l’immagine
    Agora
    Ormai
    Novas sensações
    Nuove sensazioni
    Jovens emoções
    Giovani emozioni
    Exprimem-se puríssimas
    Si esprimono purissime
    Em nós
    In noi
    A roupa dos fantasmas do passado
    La veste dei fantasmi del passato
    Caindo deixa o quadro imaculado
    Cadendo lascia il quadro immacolato
    E se levanta um vento quente de amor
    E s’alza un vento tiepido d’amore
    De verdadeiro amor
    Di vero amore
    E te redescubro
    E riscopro te

    1 = ao ar livre, tradução da autora.
    2 Mies é um real sobrenome; através do Crônicas Cariocas, em 2008, “ingressei” para a família Mies
    através do querido Paulo (saudosos abraços, espero que conheça meu pai aí no céu), que me encontrou
    através dos meus textos neste nosso portal Crônicas Cariocas e me enviou mensagens perguntando se
    éramos parentes próximos.
    3 “Nascida para você”, versão do título da película em português.
    4 O meu canto livre


  • A casa do ontem

    Se existe algo que podemos considerar indestrutível é a infância. Não importa quanto o tempo ou a maturidade bombardeie esse território, quando menos se espera, dos escombros do passado, desterra-se uma recordação, um medo, um trauma, uma saudade ou um fantasma.

    As lembranças infantis têm poder de reencarnação no agora. Prova disso é o peso cortante, na vida adulta, dos apelidos pejorativos de outrora, do escárnio ou da exclusão vivida num tempo distante. Ninguém esquece o gosto amargoso de uma humilhação. Mesmo que as coisas mudem, as condições se transformem, as pessoas sejam absolutamente diferentes dos primórdios de sua evolução, a infância insiste dentro de nós. Se agarra nas vísceras, forma limo, provoca erosões. Ora traz sorrisos fortuitos, ora rasga os pontos da cicatriz.

    O curioso é perceber que ela reencarna não só nas memórias e dores, mas também nas atitudes cotidianas. Um bom exemplo disso são as redes sociais. Quem nunca se descobriu excluído do grupo secreto de amigos do whatsapp ou constatou, pelo Instagram, que foi o único a não ser convidado para uma festa de aniversário?

     A bem da verdade, a infância também se presentifica em nossas imperceptíveis tolices, seja quando fingimos não ver alguém na rua, para não ter que cumprimentar, seja comentando defeitos alheios ou fazendo pequenas fofocas.

    Para ser justa, saliento que a infância é bem maior do que suas rusgas, basta lembrarmos do quanto os afagos, colos e incentivos nos encorajaram a chegar até aqui. Então não se trata de promover uma caça à infância, até porque ela é o jardim eterno de cada um de nós. Sugiro uma boa faxina. Se a todo tempo visitamos a casa das memórias, que possamos lavar as mágoas com desinfetante, esfregar, até sair, o lodo do sentimento de menos valia, jogar no lixo as culpas e autoacusações. E, depois, vir com um pano úmido e essência de lavanda ou alfazema perfumando o ambiente.

    Feito isso, é hora de abrir as janelas, colocar uma música, contemplar o céu e orgulhar-se de si. 

    Tenho me empenhado nisso. Me recuso a criar um altar de lembranças dolorosas e culto a pessoas infelizes, invejosas e cruéis.

    A missão é habitar-me com harmonia, cercar de afeto o perímetro da existência e apostar nas minhas escolhas.

    Ainda que o amor do outro me anime, não me valida ou constitui.  

    Amigos, venham visitar a minha casa. Limpa, florida e perfumada!


  • A ambiguidade é inimiga da clareza

    Ambiguidade é a duplicidade de sentido. Ela pode se constituir num bom recurso expressivo, mas deve ser evitada quando compromete a clareza do texto. São ambíguos enunciados do tipo:

    — “Vivemos numa sociedade cuja aparência é mais importante do que a essência.” (o uso de “cujo” no lugar de “em que” dá a entender que a aparência da sociedade é mais importante do que sua essência, e não que na sociedade atual a aparência importa mais do que a essência);  

    — “A maioria das redes e blogs dá apenas uma visão parcial do indivíduo que publica.” (não está claro se quem publica é o indivíduo ou a maioria das redes);

    — “Um grupo de assaltantes rendeu elevou o carro de uma família.” (parece que o grupo rendeu o carro antes de levá-lo!!).

    Um dos fatores que levam à ambiguidade é a má ordenação das palavras. Quando o período não está na ordem direta, pode haver margem para mais de uma interpretação. Por exemplo: “Encontrou o diretor o secretário na sala de reuniões”. Não se sabe quem encontrou quem.  Na ordem direta, em que o sujeito aparece antes do complemento, desfaz-se o equívoco: “O diretor encontrou o secretário na reunião.” Outra forma de distinguir sujeito e objeto é antepor uma preposição a este último: “Encontrou o diretor ao secretário na sala de reuniões”. 

    Deslocar o atributo oracional para longe do termo que ele modifica pode tornar ambígua a frase: “Refiro-me a um conflito no meu namoro, que ocorreu há oito anos”. O que aconteceu há oito anos – o conflito ou o namoro? Como a referência temporal diz respeito ao conflito, o melhor para a clareza é deslocar a oração adjetiva: “Refiro-me a um conflito que ocorreu há oito anos no meu namoro”.

    A separação entre componentes de uma mesma função sintática também pode gerar ambiguidade. Exemplo: “As pessoas que gostam de saber das novidades procuram a internete até mesmo as grandes empresas, para vender seus produtos.” O aluno dá a entender que apenas “pessoas” é sujeito do verbo procurar, e que “internet” e “grandes empresas” são objetos diretos. A frase fica sem sentido, pois o propósito do autor era afirmar que tanto as pessoas quanto as empresas procuram a rede. Ele traduziria claramente essa ideia se tivesse mantido coordenados os sujeitos: “As pessoas que gostam de saber das novidades e até mesmo as grandes empresas procuram a internet para vender seus produtos.”

    No plano semântico, é comum haver ambiguidade devido à polissemia. A diversidade de sentidos de uma mesma palavra pode levar a que se diga o que não se queria dizer. Em redação sobre a atual crise da Igreja, outro aluno escreveu: “Hoje, por força das circunstâncias, a Igreja admite a pedofilia em alguns de seus membros”.

    Entre os significados de “admitir”, está o de “reconhecer” (“Ele admite seu erro”); o redator quis dizer que a Igreja, forçada pelas circunstâncias, reconhece que há pedófilos entre seus membros. Não lhe ocorreu que esse verbo tem também o sentido de “aceitar”, “permitir”, o que poderia levar a um julgamento negativo da instituição religiosa.

    www.chicoviana.com


  • Cães e o Poder de Curar a Depressão

    Quantas pessoas acordam todas as manhãs sem grande propósito? Permanecem deitadas, sem forças para romper a gravidade invisível que as prende ao abismo da depressão. Pare essas pessoas, a cama se torna uma prisão, como se a vida estivesse suspensa e elas impedidas de viver.

    Nesse cenário devastador, onde a dependência de medicamentos é uma realidade frequente, a chegada de um cão pode ser transformadora. Diferente dos humanos, os cães não compreendem o que é depressão, mas percebem quando algo não vai bem. Eles possuem uma sensibilidade extraordinária, capaz de refletir o que muitas vezes escondemos até de nós mesmos.

    O simples toque de uma pata, um olhar atento que convida a sair ou o abanar de um rabo podem quebrar o ciclo de apatia. Eles nos lembram, sem palavras, que há um mundo lá fora, repleto de brilho e possibilidades. É um convite sutil, mas poderoso, para explorar, respirar, viver.

    Muitas pessoas encontram em seus cães a motivação para se levantar. Uma pequena caminhada pela rua deixa de ser um fardo e se torna um momento de prazer. É nesse ato quase mágico que os cães se entreguem por inteiros. Com sua companhia serena e amor incondicional, se oferecem para nos animar a seguir em frente, a redescobrir o milagre que é estar vivo.

    Cuidar de um cão nos faz olhar mais para o presente, e nos conectarmos ao aqui e agora. Eles nos mostram que, mesmo nos dias mais sombrios, há sempre uma chance de escapar da tristeza profunda. Talvez a maior cura que os cães oferecem seja a de nos ensinar a reencontrar a simplicidade da vida.

    No final, não são apenas os cães que nos salvam, mas também o amor que cultivamos ao lado deles. Eles não precisam de palavras para transformar vidas. Enquanto farejam, correm ou se deitam calmamente ao lado de quem precisa, passam uma lição simples: felicidade não é algo distante, mas algo que pode ser encontrado em pequenos instantes.

    O vínculo entre cães e pessoas vai além da companhia; é uma troca silenciosa de cuidado e afeto. Para quem enfrenta a depressão, um cão pode ser um guia que o conduz de volta à luz, mesmo quando tudo lhe parece cinza e sem propósito.


  • A presença do óbvio

    Ao escrever, deve-se em princípio fugir do óbvio. Nada irrita mais o leitor do que se deparar com informações que ele já conhece ou pode facilmente deduzir. Elas parece que estão no texto para “encher linguiça” e completar o número de linhas.

    O óbvio está para o conteúdo assim como o clichê está para a forma. É um lugar-comum mental. Indica pobreza de ideias mais do que de estilo e concorre para baixar a informatividade. Dizendo o que todos já sabem, o redator dá a entender que não tem um pensamento próprio. É uma espécie de “maria vai com as outras” (escrito agora sem hífen, em razão dessa esdrúxula reforma ortográfica).

    São óbvias afirmações como as de que “o Estado deve promover o bem-estar dos cidadãos”, “o capitalismo aumenta a desigualdade social”, “o homem precisa continuamente rever os seus conceitos” etc. etc. Informações desse tipo, de tão batidas, nada acrescentam ao que o leitor já sabe.

    Mas nem tudo no óbvio é inútil. A evidência que ele representa pode ter valor argumentativo, ou seja, servir de reforço a um ponto de vista. Existe um nome para esse recurso: argumento de presença. Por meio dele se realça uma verdade indiscutível, um conceito ou ideia que as pessoas devem ou deveriam ter em mente.  

    Esse tipo de argumento aparece, por exemplo, nesta passagem da redação de um aluno: “A adolescência é uma idade de conflitos e insegurança, por isso o adolescente deve ser orientado em suas escolhas”. O que ele afirma na primeira oração não é novidade. Psicólogos, pedagogos, terapeutas (e os pais, pelo que experimentam em casa!) sabem que os conflitos e a insegurança em boa medida caracterizam o universo mental dos adolescentes.  

    Geralmente quem formula o argumento de presença não o faz apenas para “dizer de novo” o que já se sabe. Procura associá-lo a outros recursos argumentativos. No exemplo que acabamos de mostrar, a verdade enfatizada pelo estudante serve de reforço ao apelo que ele faz na segunda oração (no sentido de que se devem orientar os indivíduos nessa faixa de idade).

    Por que precisamos trazer à tona o óbvio? Porque o ser humano comumente se alheia de princípios que não poderia nem deveria esquecer. Isso o leva a negligenciar deveres, distorcer valores, praticar injustiças contra si ou contra os outros. Repetir antigas verdades é sempre uma forma de chamá-lo à razão.


  • As cartas

    Ela estranhou quando o carro parou em frente à sua casa tão cedo. Não costumava receber clientes naquela hora do dia. O homem que desceu do veículo tinha o semblante assustado e, ao vê-la no alpendre, lhe fez um aceno. Ela foi até o portão; antes de abrir, notou as olheiras de quem parecia não ter dormido. 

    – Entre, moço – falou, sem perguntar de que se tratava. Não era preciso. A fama que acumulara fazia com que a procurassem sobretudo por uma razão: desfazer algum temor ligado ao futuro. 

    Ela o fez atravessar o pequeno alpendre rumo a uma saleta onde havia uma mesa forrada com um pano verde sobre o qual estava um baralho já gasto. Sentou-se e fitou o rapaz com um ar doce e compreensivo. Aprendera, com o tempo, que essa expressão acalmava os que a vinham procurar. 

    – O que o atormenta, meu jovem?

    Ele baixou a vista e, com algum esforço, falou as primeiras palavras: 

    – Daqui a pouco vou encontrar alguém. Quero saber se corro algum risco.

    Disse e ficou mudo. Ela esperou que continuasse. Depois ponderou que, se lhe desse uma ideia de que adivinhava o motivo da sua inquietação, despertaria nele mais confiança. 

    – O que é que no comportamento dele lhe provocou tanto medo?

    “Dele”. Então ela sabia que se tratava de um homem! E, de fato, era o marido da colega de trabalho com quem vinha saindo há alguns meses.

    – Como sabe que é “ele” e não “ela”?

    – “Ela” ocupa sua mente, mas de outro modo – respondeu com um olhar malicioso, dando à expressão um ar conivente que o confortou.  

    A senhora é perspicaz – ele disse, com um suspiro que fez os olhos dela brilharem ainda mais. 

    Explicou-lhe então que vinha se encontrando com uma mulher casada. Os encontros ocorriam com a máxima discrição, claro. Chegara a ponderar que o que fazia não estava certo, mas se sentia incapaz de resistir. Desejava-a, tinha paixão por ela, e sabia que era correspondido.

    Fez uma pausa, levemente emocionado com o que acabara de dizer. Em seguida explicou que mal conhecia o marido, por isso estranhou o telefonema pedindo-lhe um encontro para falar “da situação profissional da esposa”. Ficou com a mosca na orelha. E se ele soubesse de tudo e pretendesse lhe fazer algum mal?

    Depois de ouvi-lo, a mulher pegou o baralho e começou a misturar as cartas. 

    – Vamos ver o que elas dizem. As cartas não mentem jamais.

    Esse lugar-comum lhe soou como uma verdade profunda. As cartas pareceram infalíveis e certamente o orientariam sobre o que deveria fazer. A mulher pediu que tirasse uma delas, depois outra, juntou as duas e olhou por cerca de meio minuto a combinação. Depois levantou a vista e o fitou com um sorriso entre cúmplice e triunfante.

    – Tranquilize-se, meu filho. Ele não sabe de nada.

    – Tem certeza de que ignora o que há entre nós?

    – Absoluta. Siga em paz e viva com intensidade essa paixão, pois a vida é curta. 

    Sorriu, aliviado, e lhe perguntou quanto devia.

    – Dê o que o seu coração mandar.

    Abriu a carteira e lhe passou uma quantia generosa. O alívio que as palavras dela lhe trouxeram não tinha preço. Ao se despedir, apertou a mão da mulher e agradeceu com uma humildade que a surpreendeu. Ela é que devia se mostrar humilde diante daquele homem elegante e de uma classe social bem superior à sua. Mas o que dá a cada um a medida da sua importância é a situação que está vivendo, e ele se sentia frágil em razão da dúvida que o afligia.   

    Depois que saiu, ela contou as notas. Era um montante considerável, que lhe permitiria consertar o ar-condicionado e comprar uns objetos com que vinha sonhando.

    Depois do jantar, sentou-se diante da TV para assistir ao noticiário local. Ficou curiosa ao se deparar com a primeira manchete: um marido que se soubera enganado matou com três tiros o amante da esposa. Em seguida vinham detalhes do crime e a foto da vítima. Tomou um susto ao ver que era o homem que tinha vindo consultá-la pela manhã. A mesma roupa, o mesmo cabelo, e nos olhos vidrados um ar de perplexidade.

    Por um instante sentiu remorso, mas logo tratou de banir do espírito esse sentimento. Qual fora a sua culpa? Não tinha concorrido para o crime. Deixara o rapaz confortado como podia ter feito o oposto. Se confirmasse as suspeitas dele e estivesse errada, poderia pôr fim à vivência de uma grande paixão. 

    Pensando bem, foi melhor que ele ignorasse o que estava por acontecer e marchasse tranquilo para o fatídico encontro. A sentença já fora providenciada pelo destino, e quem era ela para interferir nos seus desígnios? O que fez, no final das contas, foi dar um pouco de ilusão a quem já se condenara pelos seus próprios atos.

    Com esse pensamento recontou o que o morto tinha lhe dado, antecipando os pequenos luxos que iria comprar.


  • O Luto na Visão dos Cães

    O luto, no olhar humano, é o vazio que se instala após uma perda. Uma ausência que ecoa e se faz presente em cada instante de saudade. Mas, se o luto é tão humano, como explicar que o cão também sofra quando seu dono se vai?

    Talvez isso se deva ao mistério do vínculo que une nossas almas às deles. Diferente de nós, os cães não filosofam sobre o que foi ou sobre o que virá, nem se perdem em pensamentos sobre a ausência. E, ainda assim, quando seu dono parte, algo neles se transforma para sempre. Como Hachiko, o cão que esperou incansável pelo dono que nunca retornaria, os cães têm seu próprio e singular jeito de viver a perda.

    Eles refletem nossas emoções, espelham nossos sentimentos, sentem a nossa dor e também vibram com nossas alegrias. Na ausência, os cães absorvem o vazio, percebem a mudança no ar, o silêncio dos passos que não se repetem mais, e o cheiro que gradualmente desaparece. Mesmo sem palavras ou cerimônias, são tocados pela presença que se foi.

    Um cão enlutado pode ficar apático, quieto, perder o interesse pelo que antes o alegrava. Sua conexão com o dono é uma cumplicidade que ultrapassa o toque e a presença física, algo que, de certa forma, transcende. Como uma alma pura, ele sente a perda sem as complexidades culturais ou emocionais que nós temos. É como se o cão soubesse, em sua simplicidade, que algo essencial se perdeu..

    No entanto, assim como nós, os cães possuem uma força de renovação surpreendente. O segredo está em manter a rotina, respeitar seu tempo, e, acima de tudo, não projetar sobre eles as nossas próprias tristezas. Eles não se apegam à dor; para eles, apenas o presente é real, e talvez por isso, gradualmente, eles sigam em frente. Eles não entendem a nossa pena, não precisam de lamentações.

    Diz-se que, para o cão, só existe o momento presente. E talvez isso explique porque, aos poucos, eles reencontram o caminho para a alegria. O luto dos cães não é uma prisão; é uma travessia silenciosa que nos lembra que a dor pode ser abraçada, mas não deve ser eterna.

    Talvez, de vez em quando, ao sentir um cheiro familiar ou uma brisa que traz algo do passado, ele erga o focinho e, em seu íntimo, sorria, sentindo que, de algum modo, ainda estamos presentes. Porque o amor de um cão não se apaga com o tempo ou a ausência; ele persiste, eterno e fiel, como uma chama que nunca se extingue.

    E assim, quando a noite cai e o silêncio domina, ele dorme em paz, com o coração ainda aquecido por aqueles que um dia amou. E nós, de algum lugar, talvez sintamos o mesmo: uma saudade doce, acompanhada da certeza de que um vínculo assim, entre cão e humano, nunca se rompe de verdade. Nessa complexidade de se fazer evoluir, para os cães, cada instante importa, o passado se dissolve na simplicidade do presente. Eles nos ensinam, assim, que amar também é saber soltar. Um novo lar, uma nova rotina, um novo amor… tudo no cão é levado a ser simples.


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