Poesias de 1 a 99

  • #09 – EXPURGO

    hoje eu mordi
    um chumaço de
    papel higiênico
    para estancar
    (ou tentar conter)
    o sangramento
    da língua dilacerada:
    como um cadáver
    antecipado que devora
    o seu próprio sudário.

    Um Andarilho Dentro de Casa

  • #08 – A Ilha

    .

    A ilha com seu silêncio
    me comunica a morte
    dos seres espectrais
    que nela vivem ou já viveram.

    A ilha cercada por mangues
    é um poço de lama e óleo.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim
    dos pescadores da ilha.

    Os pescadores da ilha
    me apresentam a pesca de um dia,
    nada.

    A ilha com sua morte
    me comunica o silêncio
    dos seres superiores
    que a mataram e matam.

    A ilha abandonada pelos banhistas
    é um deserto de espuma e água.

    Os frequentadores da ilha
    me comunicam o desastre
    das praias da ilha.

    Os frequentadores da ilha
    me apresentam o bronzeado de um dia,
    petróleo.

    A ilha com sua sorte
    me comunica o crime
    dos seres continentais
    que seguem impunes.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim dos peixes
    e voltam tarde para casa.

    O Acaso das Manhãs

  • #07 – ANDARILHO DEITADO

    .

    cheguei cansado para deitar
    sobre a cama de papelão no chão
    e debaixo da marquise gotejante.

    uma poça de água da pingadeira
    sobre o passeio do mercado desativado
    onde dormiam indigentes à espera do fim.

    dormir é dócil como o bebê embriagado
    desapercebido dos planos de Deus.

    Um Andarilho Dentro de Casa


  • 6 poemas de Campista Cabral

    #06 – FAZER POÉTICO

    O primeiro verso é um pouco como o ar
    Palavras soltas, palavras para cá e para lá
    Mas mãos cuidadosas vão caçando no brincar
    E o céu poético se ordena e tudo lá está.

    O quinto verso, já encorpado, é como a terra
    Palavras fortes e consistentes que criam raiz
    E mãos habilidosas escolhem no tempo de espera
    E o chão poético é desejoso e tudo diz.

    O nono verso movimenta-se ágil como a água
    Veloz como as corredeiras e quieto como lago
    Percorre a vida a noite inteira e depois deságua

    E quando tudo parece a morte – derradeira cena
    As cinzas das brasas voltam ao natural estado
    O último verso dissolve-se e é o fim do poema.


    #05 – EXERCÍCIO POÉTICO

    E vai e vem e vem e vai e agora cai
    Um verso e mais outro e outro mais
    E de novo, mais um e mais um e mais um
    E a rima certeira se aconchega em “algum”

    E vem e vai e vem e vai e de novo cai
    Mais um verso e mais outro e outro mais
    A rima, no momento, se aproxima do “cais”
    E então, a estrofe, mais uma, vai…

    E assim segue o poema um pouco escorregadio
    Inteiro, em pedaço, movediço e quebrável
    Todo, completo e depois o vazio e o nada!

    E assim segue o poema um pouco vadio
    O primeiro ou o último, inteiriço, mas mutável
    Item por item, som a som, palavra por palavra


    #04 – TEMPO

    Horas… as horas… é o tempo que passa
    e passa o tempo todo o dia inteiro
    independente do que faça ou não faça
    devagar e impreciso ou certo e ligeiro.

    Curioso é que tudo muda nessa trama:
    o sentimento que se sentia já não sente
    o amor com que se amava já não ama
    todas as coisas passam, assim, de repente.

    No fim de tudo, até os sentidos somem
    e transitamos entre o que há e o que não há:
    o improvável, o contraditório, um senão…

    Tempo, palavra antiga, antes do homem…
    Marca do que foi, do que é e do que será
    máscara de sonhos, momentos, desilusão.


    #03 – LÍNGUA

    Língua breve, toda clara, toda escura,
    Aos poucos caminha, para, continua.
    E entre o areal, a bruma, a leve chuva.
    A face se mostra, inquieta e muda.

    Língua instante – objeto nada – rara, pouca.
    Para, continua, para, tonta e louca.
    Ensaia um grito, uma palavra, outra,
    A voz se insinua, miúda e rouca.

    No entanto, nas contradições do descaminho,
    Faz-se a língua na própria língua
    Faz-se o verso em todo o canto.

    O poeta, imagem irreal, o instinto,
    Busca a palavra, suga-lhe o sentido.
    Regurgita o poema sob aplausos e espanto


    #02 – SOMBRAS, PEDRAS E RIOS

    Sombras, rios, sussurros ou delírios?
    Delírios, sombras, rios ou sussurros?
    Pedras, muitas pedras correm com os rios.
    Com os rios correm os murmúrios.

    Rios, sussurros, delírios e sombras.
    Pedras, muitas pedras correm com os rios.
    O resto são assombros e tu contas
    Que escrevo um poema? Delírios!

    No primeiro terceto faço questão:
    Pedras, muitas pedras correm com os rios.
    Sombras, sussurros, mas o que são delírios?

    Imaginar que faço o poema e não
    Importa-me o verso que segue… São fios
    E tu a acreditares nas pedras e rios?


    #01 – É A ROSA

    Nas rodas antigas o freio e a vida
    É a rosa, desgosto, gosto do mundo
    Frágil, sublime, aos poucos ferida
    Viva num instante, morta num segundo.

    A entreter o poeta num beijo longo
    Ao desfalecer é pedra, mar e cio,
    Conchas de luz no céu onde ponho
    Um poema um tanto escorregadio.

    E foge de mim assim como o mar,
    E foge de mim sem sequer pensar,
    E foge de mim sem mesmo olhar.

    É a rosa, tanto doce quanto amarga,
    É a rosa metade da madrugada,
    É a rosa, poeira e mais nada.


  • #06 – O SOM DO SILÊNCIO

    .

    “sob a luz de neon, o silêncio cresce como um câncer.
    as pessoas se curvaram e rezaram
    para o deus de neon que elas criaram.
    as palavras dos profetas estão escritas nas paredes do metrô
    e nos corredores do cortiço”
    Simon & Garfunkel

    era a noite fria e chuvosa
    então eu saí como um zumbi
    para criaturas que, como eu,
    vivem nas sombras.

    sob a luz de neon
    o câncer se espalha
    e as pessoas se curvam
    ao som de Simon & Garfunkel.

    rezas, aspersões de água
    benta e nada resolve:
    o deus de barro que criaram
    se esfarela como um pó seco.

    as palavras dos profetas
    estão rabiscadas nas portas
    dos banheiros sujos das
    rodoviárias promíscuas.

    cortiços, neons resplandecentes,
    silêncios e o escuro breu da
    noite sem almas a sufocar
    nos corredores do metrô 147.

    palafitas, águas podres,
    restos de comida, latas,
    lixo reciclável, “estercoraria
    argila preta”. O Déjà Vu.

    Da Essencialidade da Água


  • #05 – A Besta de Gevaudan (*)

    .

    “entre os anos de 1764 e 1767 os habitantes da pequena província francesa de Gevaudan, atualmente parte de Lazere, próximo das montanhas Margueride foram aterrorizados por uma criatura lupina que passou a ser conhecida como La Bête Du Gevaudan ou “A Besta de Gevaudan”

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha.

    a primeira mulher atacada conseguiu escapar e chegar até ao seu vilarejo, de onde passou a adotar um comportamento estranho e agressivo. Após esse episódio, seguiu-se um tempo de calmaria, mas próximo ao natal o cântaro de água derramou e mais uma pessoa desapareceu e localizaram os seus restos terrivelmente mutilados em uma ravina. Suspeitaram então que um nobre renegado estava por detrás daquelas mortes, transformando-se em um lobo demoníaco em noites de lua cheia. as pessoas do vilarejo foram ficando incomodadas com essa presença lupina comendo a sua comida, remexendo os campos e invadindo as suas propriedades. Montaram então uma expedição de militares com um arsenal de 50 mosquetes, lanças com mais de dois metros de comprimento, armas que disparavam setas de ferro, bombas explosivas de pólvora negra, armadilhas e correntes para capturar o intruso animal. Os homens da expedição usavam armaduras negras de couro batido e metal cheio de espinhos, cabelos moicanos e pinturas de guerra. As suas peles eram besuntadas com os despojos de uma loba no cio para atrair a fera sanguinária. Esses trajes exalavam um fedor nauseabundo. Tudo preparado para fazer o abate, mas a besta atacou antes e matou várias pessoas da tropa. Então os aldeões revoltados se armaram com ferramentas, paus e pedras e um desespero de iconoclastas, e nada. Tudo fracassou e contrataram então um taxidermista de Paris. A nova expedição ou empreitada contava com 40 caçadores e uma dúzia de cães farejadores. Os homens concentraram-se em uma área rochosa, repleta de ravinas e onde se dispunha de água potável ao que tudo indicava ser o covil da fera. Esta última tentativa se enveredou pela floresta tendo como líder um taxidermista especialista em folclore e superstições e que, armado com projeteis e balas de prata que foram abençoadas pelo pároco local. Chegaram num bosque próximo de Gevaudan onde recitaram uma série de orações e cantigas místicas. E logo a fera, na forma de um lobo, apareceu e então todos dispararam com suas pistolas e os projeteis de pura prata que vararam o corpo da besta que caiu fulminada. Para alguns aquela era de fato a besta carniceira e quando tiraram a máscara de pelos e sangue era um homem com trajes de um maluco monge e assim foi queimado e as suas cinzas espalhadas ao vento. Foi preciso o decurso de algumas semanas até que dessem falta do homem tosquiador e descobriram então que a besta não passava do camponês que tosquiava as ovelhas e se chamava “O Monstro” e a sua descrição batia ipsis litteris com aquilo que eu era na aldeia.

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha, ectoplasmática.

    Da Essencialidade da Água

    (*) transcrição livre e poética do famoso caso ocorrido na França do século XVIII


  • Arrimo de família

    Noite fria, sombria, quieta.
    Ele, calado, encolhido, matutando.
    Eu, na espreita, alerta, sentinela.
    Nós, famintos, sedentos, enjeitados.
    Olhos remelentos, húmidos, arregalados.
    Corpos esquálidos, caquéticos, patéticos.
    Dentes que bambeiam, rareiam, vadios.
    Garrafa vazia, gamela vazada.
    Burburinho no beco, grupinho do boteco.
    Garotada excitada, bebida exagerada.
    Sanduba na mão, churrasco no pão.
    Passo apressado, casaco amarrado.
    Rota traçada, calçada apertada.
    Molecada bloqueada, assustada
    Carroça encostada, coberta rasgada.
    Ele apagado, encolhido, deitado.
    Eu agitado, pescoço esticado.
    Abano o rabo, procuro um afago.
    Vira-lata esfaimado, tá necessitado.
    Não tem culpa, merece um sanduba.
    Comida de gente, pro cão indigente.
    Acordo o parceiro, meeiro, hospedeiro.
    Cão de mendigo, pão repartido.
    Aninho, carinho, comunhão.
    Vida de rua, verdade nua e crua.
    Entre um cão mendigo e um mendigo no chão.
    O que abana o rabo é que garante o pão.


  • Poesias de 1 a 99: 04 – O Piso da Minha Alma

    #04 – O Piso da Minha Alma

    .

    ressoam em meu cérebro
    ecos de canções que eu
    nunca escreverei jamais.

    mas existem em mim
    como acordes tangíveis
    do que se aspira a ser.

    à sombra do músico adormecido
    eu vivi a minha vida inteira assim
    disfarçado de poeta como se fosse

    um andarilho dentro de casa.

    O Jardim Simultâneo


  • Poesias de 1 a 99

    #01 – ímpetos de reformulação e atitude

    .

    Acendi uma vela, e me veio
    De outro plano
    que não eu, mas era eu, também
    Acender 8
    o 8, deitado, é o infinito
    8, em pé, conforme as coloquei
    tornou-se fogueira

    O fogo ardeu, ardeu e
    enquanto eu vivia o momento presente
    As duas coisas ligaram-se
    Dançado ardentemente
    Pavios como mãos dadas
    Fogo fátuo, feito, farto

    De repente
    minha atenção recor-
    tou-se em du-as
    duas
    e eu estava
    um olho em algo,
    outro na labareda,
    e quando
    as parafinas
    finas de cada vela comprida –
    enfim fundiram-se em uma
    só coisa ardente
    pude ver-me eu
    como mãe
    de mim mesma
    e minha filha – que ainda não veio
    e mais um ser,
    nós duas em 1
    Três
    Três
    Três chamas que dançavam
    como que se conversassem
    por horas
    Anos
    Gerações
    E então o ar tornou-se perfume
    o perfume das mil velas que queimam
    dentro das catedrais
    E meu ventre
    tal qual um oráculo divino
    Escureceu
    Não era peso ou dor,
    Mas silêncio
    um peso nuvem
    Um descanso

    Hibernação
    Libertação
    dentro de uma jornada que se finda

    Aos poucos
    Infinitamente
    Para Três
    Três almas
    Três sabores
    a vida lançou-se para o infinito
    para cima
    potência de início –
    a chama única dentro do pote de vidro
    enegrecido
    abraço de fim.
    E
    Adormeci
    Nova
    para um novo amanhã


  • Poesias de 1 a 99

    04# – RÉQUIEM I

    Estou hoje calado
    como se houvesse
    roubado o silêncio
    dos mortos.

    Estou hoje tranquilo
    como se a calma
    fosse um atributo
    dos homens enfermos.

    Estou hoje festivo
    como se estivesse
    numa festa, e lúcido,
    como se a lucidez
    fosse a própria festa.

    Estou hoje vencido
    como se soubesse a verdade
    e sozinho vou indo mesmo
    a uma festa, atendendo ao
    convite dos mortos.


    05# – RÉQUIEM II

    cérebro inchado
    em recônditas gavetas,
    minha cabeça não deixa
    de doer. fui de mim
    o meu maior inimigo.


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