Poesias de 1 a 99

  • #05 – A Besta de Gevaudan (*)

    .

    “entre os anos de 1764 e 1767 os habitantes da pequena província francesa de Gevaudan, atualmente parte de Lazere, próximo das montanhas Margueride foram aterrorizados por uma criatura lupina que passou a ser conhecida como La Bête Du Gevaudan ou “A Besta de Gevaudan”

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha.

    a primeira mulher atacada conseguiu escapar e chegar até ao seu vilarejo, de onde passou a adotar um comportamento estranho e agressivo. Após esse episódio, seguiu-se um tempo de calmaria, mas próximo ao natal o cântaro de água derramou e mais uma pessoa desapareceu e localizaram os seus restos terrivelmente mutilados em uma ravina. Suspeitaram então que um nobre renegado estava por detrás daquelas mortes, transformando-se em um lobo demoníaco em noites de lua cheia. as pessoas do vilarejo foram ficando incomodadas com essa presença lupina comendo a sua comida, remexendo os campos e invadindo as suas propriedades. Montaram então uma expedição de militares com um arsenal de 50 mosquetes, lanças com mais de dois metros de comprimento, armas que disparavam setas de ferro, bombas explosivas de pólvora negra, armadilhas e correntes para capturar o intruso animal. Os homens da expedição usavam armaduras negras de couro batido e metal cheio de espinhos, cabelos moicanos e pinturas de guerra. As suas peles eram besuntadas com os despojos de uma loba no cio para atrair a fera sanguinária. Esses trajes exalavam um fedor nauseabundo. Tudo preparado para fazer o abate, mas a besta atacou antes e matou várias pessoas da tropa. Então os aldeões revoltados se armaram com ferramentas, paus e pedras e um desespero de iconoclastas, e nada. Tudo fracassou e contrataram então um taxidermista de Paris. A nova expedição ou empreitada contava com 40 caçadores e uma dúzia de cães farejadores. Os homens concentraram-se em uma área rochosa, repleta de ravinas e onde se dispunha de água potável ao que tudo indicava ser o covil da fera. Esta última tentativa se enveredou pela floresta tendo como líder um taxidermista especialista em folclore e superstições e que, armado com projeteis e balas de prata que foram abençoadas pelo pároco local. Chegaram num bosque próximo de Gevaudan onde recitaram uma série de orações e cantigas místicas. E logo a fera, na forma de um lobo, apareceu e então todos dispararam com suas pistolas e os projeteis de pura prata que vararam o corpo da besta que caiu fulminada. Para alguns aquela era de fato a besta carniceira e quando tiraram a máscara de pelos e sangue era um homem com trajes de um maluco monge e assim foi queimado e as suas cinzas espalhadas ao vento. Foi preciso o decurso de algumas semanas até que dessem falta do homem tosquiador e descobriram então que a besta não passava do camponês que tosquiava as ovelhas e se chamava “O Monstro” e a sua descrição batia ipsis litteris com aquilo que eu era na aldeia.

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha, ectoplasmática.

    Da Essencialidade da Água

    (*) transcrição livre e poética do famoso caso ocorrido na França do século XVIII


  • Arrimo de família

    Noite fria, sombria, quieta.
    Ele, calado, encolhido, matutando.
    Eu, na espreita, alerta, sentinela.
    Nós, famintos, sedentos, enjeitados.
    Olhos remelentos, húmidos, arregalados.
    Corpos esquálidos, caquéticos, patéticos.
    Dentes que bambeiam, rareiam, vadios.
    Garrafa vazia, gamela vazada.
    Burburinho no beco, grupinho do boteco.
    Garotada excitada, bebida exagerada.
    Sanduba na mão, churrasco no pão.
    Passo apressado, casaco amarrado.
    Rota traçada, calçada apertada.
    Molecada bloqueada, assustada
    Carroça encostada, coberta rasgada.
    Ele apagado, encolhido, deitado.
    Eu agitado, pescoço esticado.
    Abano o rabo, procuro um afago.
    Vira-lata esfaimado, tá necessitado.
    Não tem culpa, merece um sanduba.
    Comida de gente, pro cão indigente.
    Acordo o parceiro, meeiro, hospedeiro.
    Cão de mendigo, pão repartido.
    Aninho, carinho, comunhão.
    Vida de rua, verdade nua e crua.
    Entre um cão mendigo e um mendigo no chão.
    O que abana o rabo é que garante o pão.


  • Poesias de 1 a 99: 04 – O Piso da Minha Alma

    #04 – O Piso da Minha Alma

    .

    ressoam em meu cérebro
    ecos de canções que eu
    nunca escreverei jamais.

    mas existem em mim
    como acordes tangíveis
    do que se aspira a ser.

    à sombra do músico adormecido
    eu vivi a minha vida inteira assim
    disfarçado de poeta como se fosse

    um andarilho dentro de casa.

    O Jardim Simultâneo


  • Poesias de 1 a 99

    #01 – ímpetos de reformulação e atitude

    .

    Acendi uma vela, e me veio
    De outro plano
    que não eu, mas era eu, também
    Acender 8
    o 8, deitado, é o infinito
    8, em pé, conforme as coloquei
    tornou-se fogueira

    O fogo ardeu, ardeu e
    enquanto eu vivia o momento presente
    As duas coisas ligaram-se
    Dançado ardentemente
    Pavios como mãos dadas
    Fogo fátuo, feito, farto

    De repente
    minha atenção recor-
    tou-se em du-as
    duas
    e eu estava
    um olho em algo,
    outro na labareda,
    e quando
    as parafinas
    finas de cada vela comprida –
    enfim fundiram-se em uma
    só coisa ardente
    pude ver-me eu
    como mãe
    de mim mesma
    e minha filha – que ainda não veio
    e mais um ser,
    nós duas em 1
    Três
    Três
    Três chamas que dançavam
    como que se conversassem
    por horas
    Anos
    Gerações
    E então o ar tornou-se perfume
    o perfume das mil velas que queimam
    dentro das catedrais
    E meu ventre
    tal qual um oráculo divino
    Escureceu
    Não era peso ou dor,
    Mas silêncio
    um peso nuvem
    Um descanso

    Hibernação
    Libertação
    dentro de uma jornada que se finda

    Aos poucos
    Infinitamente
    Para Três
    Três almas
    Três sabores
    a vida lançou-se para o infinito
    para cima
    potência de início –
    a chama única dentro do pote de vidro
    enegrecido
    abraço de fim.
    E
    Adormeci
    Nova
    para um novo amanhã


  • Poesias de 1 a 99

    04# – RÉQUIEM I

    Estou hoje calado
    como se houvesse
    roubado o silêncio
    dos mortos.

    Estou hoje tranquilo
    como se a calma
    fosse um atributo
    dos homens enfermos.

    Estou hoje festivo
    como se estivesse
    numa festa, e lúcido,
    como se a lucidez
    fosse a própria festa.

    Estou hoje vencido
    como se soubesse a verdade
    e sozinho vou indo mesmo
    a uma festa, atendendo ao
    convite dos mortos.


    05# – RÉQUIEM II

    cérebro inchado
    em recônditas gavetas,
    minha cabeça não deixa
    de doer. fui de mim
    o meu maior inimigo.


  • Poesias de 1 a 99

    #01 – METAMORPHOTHRILLER

    Liberdade ilusão
    Vontade reprimida
    Prisão de si mesmo
    Encaixe em moldes
    DECEPÇÃO…
    Nunca foi o que realmente era, considerava o seu próprio ser repugnante aos grandes olhos dos filtros sociais. Lamentava, vestia a máscara e… FIN-
    GI-A…
    DECEPÇÃO…
    Continuava a Tentar…Encaixar…
    Nos moldes | Nos padrões
    Eram pequenos, causavam desconforto
    O Desconforto… DESconfortava
    DECEPCIONAVA…
    Necessidade de…FUGA
    Medo/co…co…co…co…
    CORAGEM!
    Coragem/necessidade

    ATITUDE…
    Olhos fechados ao alheio
    Poder sobre as próprias escolhas
    Atitudes e… CORAGEM
    NOVA VIDA | VIDA NOVA


  • Poesias de 1 a 99

    #03: Paredes

    Estou cercado de objetos
    sem expressão ou significados
    (utensílios para o desempenho
    de um trabalho sem utilidade).

    Tenho as mãos ocupadas
    na tarefa de preencher
    o vazio com papéis
    de números impressos.

    A cabeça gira à procura
    de lembranças que possam
    desviá-la do tédio
    de ver gentes.

    Arquiteto planos
    sem propósito algum
    além de preencher
    as horas de um expediente.

    Estou cercado pelos
    quatro lados de um cômodo
    onde recebo clientes
    de um banco de dados.

    Tudo é muito lento
    como o motor ligado
    de um ar-condicionado
    a esfriar meus pés.

    Tenho um olhar cansado
    de olhar o silêncio e
    estar calado, ouvindo
    vozes que não decifro
    e tenho medo.

    Inventário de Sombras


  • Poesias de 1 a 99

    002# – AGUACEIRO

    A chuva cessou de chover
    e já agora eu posso
    tirar as mãos dos bolsos
    e atravessar a rua.

    Mas já não tenho mãos
    e nem tampouco posso
    atravessar esta rua, pois
    a água levou-me as pernas.

    E a rua, embora chovida, está seca.
    Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu.

    Milton Rezende in “O Acaso das Manhãs”


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