hoje eu mordi
um chumaço de
papel higiênico
para estancar
(ou tentar conter)
o sangramento
da língua dilacerada:
como um cadáver
antecipado que devora
o seu próprio sudário.
Um Andarilho Dentro de Casa
hoje eu mordi
um chumaço de
papel higiênico
para estancar
(ou tentar conter)
o sangramento
da língua dilacerada:
como um cadáver
antecipado que devora
o seu próprio sudário.
Um Andarilho Dentro de Casa
.
A ilha com seu silêncio
me comunica a morte
dos seres espectrais
que nela vivem ou já viveram.
A ilha cercada por mangues
é um poço de lama e óleo.
Os pescadores da ilha
me comunicam o fim
dos pescadores da ilha.
Os pescadores da ilha
me apresentam a pesca de um dia,
nada.
A ilha com sua morte
me comunica o silêncio
dos seres superiores
que a mataram e matam.
A ilha abandonada pelos banhistas
é um deserto de espuma e água.
Os frequentadores da ilha
me comunicam o desastre
das praias da ilha.
Os frequentadores da ilha
me apresentam o bronzeado de um dia,
petróleo.
A ilha com sua sorte
me comunica o crime
dos seres continentais
que seguem impunes.
Os pescadores da ilha
me comunicam o fim dos peixes
e voltam tarde para casa.
O Acaso das Manhãs
.
cheguei cansado para deitar
sobre a cama de papelão no chão
e debaixo da marquise gotejante.
uma poça de água da pingadeira
sobre o passeio do mercado desativado
onde dormiam indigentes à espera do fim.
dormir é dócil como o bebê embriagado
desapercebido dos planos de Deus.
Um Andarilho Dentro de Casa
O primeiro verso é um pouco como o ar
Palavras soltas, palavras para cá e para lá
Mas mãos cuidadosas vão caçando no brincar
E o céu poético se ordena e tudo lá está.
O quinto verso, já encorpado, é como a terra
Palavras fortes e consistentes que criam raiz
E mãos habilidosas escolhem no tempo de espera
E o chão poético é desejoso e tudo diz.
O nono verso movimenta-se ágil como a água
Veloz como as corredeiras e quieto como lago
Percorre a vida a noite inteira e depois deságua
E quando tudo parece a morte – derradeira cena
As cinzas das brasas voltam ao natural estado
O último verso dissolve-se e é o fim do poema.
E vai e vem e vem e vai e agora cai
Um verso e mais outro e outro mais
E de novo, mais um e mais um e mais um
E a rima certeira se aconchega em “algum”
E vem e vai e vem e vai e de novo cai
Mais um verso e mais outro e outro mais
A rima, no momento, se aproxima do “cais”
E então, a estrofe, mais uma, vai…
E assim segue o poema um pouco escorregadio
Inteiro, em pedaço, movediço e quebrável
Todo, completo e depois o vazio e o nada!
E assim segue o poema um pouco vadio
O primeiro ou o último, inteiriço, mas mutável
Item por item, som a som, palavra por palavra
Horas… as horas… é o tempo que passa
e passa o tempo todo o dia inteiro
independente do que faça ou não faça
devagar e impreciso ou certo e ligeiro.
Curioso é que tudo muda nessa trama:
o sentimento que se sentia já não sente
o amor com que se amava já não ama
todas as coisas passam, assim, de repente.
No fim de tudo, até os sentidos somem
e transitamos entre o que há e o que não há:
o improvável, o contraditório, um senão…
Tempo, palavra antiga, antes do homem…
Marca do que foi, do que é e do que será
máscara de sonhos, momentos, desilusão.
Língua breve, toda clara, toda escura,
Aos poucos caminha, para, continua.
E entre o areal, a bruma, a leve chuva.
A face se mostra, inquieta e muda.
Língua instante – objeto nada – rara, pouca.
Para, continua, para, tonta e louca.
Ensaia um grito, uma palavra, outra,
A voz se insinua, miúda e rouca.
No entanto, nas contradições do descaminho,
Faz-se a língua na própria língua
Faz-se o verso em todo o canto.
O poeta, imagem irreal, o instinto,
Busca a palavra, suga-lhe o sentido.
Regurgita o poema sob aplausos e espanto
Sombras, rios, sussurros ou delírios?
Delírios, sombras, rios ou sussurros?
Pedras, muitas pedras correm com os rios.
Com os rios correm os murmúrios.
Rios, sussurros, delírios e sombras.
Pedras, muitas pedras correm com os rios.
O resto são assombros e tu contas
Que escrevo um poema? Delírios!
No primeiro terceto faço questão:
Pedras, muitas pedras correm com os rios.
Sombras, sussurros, mas o que são delírios?
Imaginar que faço o poema e não
Importa-me o verso que segue… São fios
E tu a acreditares nas pedras e rios?
Nas rodas antigas o freio e a vida
É a rosa, desgosto, gosto do mundo
Frágil, sublime, aos poucos ferida
Viva num instante, morta num segundo.
A entreter o poeta num beijo longo
Ao desfalecer é pedra, mar e cio,
Conchas de luz no céu onde ponho
Um poema um tanto escorregadio.
E foge de mim assim como o mar,
E foge de mim sem sequer pensar,
E foge de mim sem mesmo olhar.
É a rosa, tanto doce quanto amarga,
É a rosa metade da madrugada,
É a rosa, poeira e mais nada.
.
“sob a luz de neon, o silêncio cresce como um câncer.
as pessoas se curvaram e rezaram
para o deus de neon que elas criaram.
as palavras dos profetas estão escritas nas paredes do metrô
e nos corredores do cortiço”
Simon & Garfunkel
era a noite fria e chuvosa
então eu saí como um zumbi
para criaturas que, como eu,
vivem nas sombras.
sob a luz de neon
o câncer se espalha
e as pessoas se curvam
ao som de Simon & Garfunkel.
rezas, aspersões de água
benta e nada resolve:
o deus de barro que criaram
se esfarela como um pó seco.
as palavras dos profetas
estão rabiscadas nas portas
dos banheiros sujos das
rodoviárias promíscuas.
cortiços, neons resplandecentes,
silêncios e o escuro breu da
noite sem almas a sufocar
nos corredores do metrô 147.
palafitas, águas podres,
restos de comida, latas,
lixo reciclável, “estercoraria
argila preta”. O Déjà Vu.
Da Essencialidade da Água
.
“entre os anos de 1764 e 1767 os habitantes da pequena província francesa de Gevaudan, atualmente parte de Lazere, próximo das montanhas Margueride foram aterrorizados por uma criatura lupina que passou a ser conhecida como La Bête Du Gevaudan ou “A Besta de Gevaudan”
eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha.
a primeira mulher atacada conseguiu escapar e chegar até ao seu vilarejo, de onde passou a adotar um comportamento estranho e agressivo. Após esse episódio, seguiu-se um tempo de calmaria, mas próximo ao natal o cântaro de água derramou e mais uma pessoa desapareceu e localizaram os seus restos terrivelmente mutilados em uma ravina. Suspeitaram então que um nobre renegado estava por detrás daquelas mortes, transformando-se em um lobo demoníaco em noites de lua cheia. as pessoas do vilarejo foram ficando incomodadas com essa presença lupina comendo a sua comida, remexendo os campos e invadindo as suas propriedades. Montaram então uma expedição de militares com um arsenal de 50 mosquetes, lanças com mais de dois metros de comprimento, armas que disparavam setas de ferro, bombas explosivas de pólvora negra, armadilhas e correntes para capturar o intruso animal. Os homens da expedição usavam armaduras negras de couro batido e metal cheio de espinhos, cabelos moicanos e pinturas de guerra. As suas peles eram besuntadas com os despojos de uma loba no cio para atrair a fera sanguinária. Esses trajes exalavam um fedor nauseabundo. Tudo preparado para fazer o abate, mas a besta atacou antes e matou várias pessoas da tropa. Então os aldeões revoltados se armaram com ferramentas, paus e pedras e um desespero de iconoclastas, e nada. Tudo fracassou e contrataram então um taxidermista de Paris. A nova expedição ou empreitada contava com 40 caçadores e uma dúzia de cães farejadores. Os homens concentraram-se em uma área rochosa, repleta de ravinas e onde se dispunha de água potável ao que tudo indicava ser o covil da fera. Esta última tentativa se enveredou pela floresta tendo como líder um taxidermista especialista em folclore e superstições e que, armado com projeteis e balas de prata que foram abençoadas pelo pároco local. Chegaram num bosque próximo de Gevaudan onde recitaram uma série de orações e cantigas místicas. E logo a fera, na forma de um lobo, apareceu e então todos dispararam com suas pistolas e os projeteis de pura prata que vararam o corpo da besta que caiu fulminada. Para alguns aquela era de fato a besta carniceira e quando tiraram a máscara de pelos e sangue era um homem com trajes de um maluco monge e assim foi queimado e as suas cinzas espalhadas ao vento. Foi preciso o decurso de algumas semanas até que dessem falta do homem tosquiador e descobriram então que a besta não passava do camponês que tosquiava as ovelhas e se chamava “O Monstro” e a sua descrição batia ipsis litteris com aquilo que eu era na aldeia.
eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha, ectoplasmática.
Da Essencialidade da Água
(*) transcrição livre e poética do famoso caso ocorrido na França do século XVIII
Noite fria, sombria, quieta.
Ele, calado, encolhido, matutando.
Eu, na espreita, alerta, sentinela.
Nós, famintos, sedentos, enjeitados.
Olhos remelentos, húmidos, arregalados.
Corpos esquálidos, caquéticos, patéticos.
Dentes que bambeiam, rareiam, vadios.
Garrafa vazia, gamela vazada.
Burburinho no beco, grupinho do boteco.
Garotada excitada, bebida exagerada.
Sanduba na mão, churrasco no pão.
Passo apressado, casaco amarrado.
Rota traçada, calçada apertada.
Molecada bloqueada, assustada
Carroça encostada, coberta rasgada.
Ele apagado, encolhido, deitado.
Eu agitado, pescoço esticado.
Abano o rabo, procuro um afago.
Vira-lata esfaimado, tá necessitado.
Não tem culpa, merece um sanduba.
Comida de gente, pro cão indigente.
Acordo o parceiro, meeiro, hospedeiro.
Cão de mendigo, pão repartido.
Aninho, carinho, comunhão.
Vida de rua, verdade nua e crua.
Entre um cão mendigo e um mendigo no chão.
O que abana o rabo é que garante o pão.
.
ressoam em meu cérebro
ecos de canções que eu
nunca escreverei jamais.
mas existem em mim
como acordes tangíveis
do que se aspira a ser.
à sombra do músico adormecido
eu vivi a minha vida inteira assim
disfarçado de poeta como se fosse
um andarilho dentro de casa.
O Jardim Simultâneo
.
Acendi uma vela, e me veio
De outro plano
que não eu, mas era eu, também
Acender 8
o 8, deitado, é o infinito
8, em pé, conforme as coloquei
tornou-se fogueira
O fogo ardeu, ardeu e
enquanto eu vivia o momento presente
As duas coisas ligaram-se
Dançado ardentemente
Pavios como mãos dadas
Fogo fátuo, feito, farto
De repente
minha atenção recor-
tou-se em du-as
duas
e eu estava
um olho em algo,
outro na labareda,
e quando
as parafinas
finas de cada vela comprida –
enfim fundiram-se em uma
só coisa ardente
pude ver-me eu
como mãe
de mim mesma
e minha filha – que ainda não veio
e mais um ser,
nós duas em 1
Três
Três
Três chamas que dançavam
como que se conversassem
por horas
Anos
Gerações
E então o ar tornou-se perfume
o perfume das mil velas que queimam
dentro das catedrais
E meu ventre
tal qual um oráculo divino
Escureceu
Não era peso ou dor,
Mas silêncio
um peso nuvem
Um descanso
Hibernação
Libertação
dentro de uma jornada que se finda
Aos poucos
Infinitamente
Para Três
Três almas
Três sabores
a vida lançou-se para o infinito
para cima
potência de início –
a chama única dentro do pote de vidro
enegrecido
abraço de fim.
E
Adormeci
Nova
para um novo amanhã
Estou hoje calado
como se houvesse
roubado o silêncio
dos mortos.
Estou hoje tranquilo
como se a calma
fosse um atributo
dos homens enfermos.
Estou hoje festivo
como se estivesse
numa festa, e lúcido,
como se a lucidez
fosse a própria festa.
Estou hoje vencido
como se soubesse a verdade
e sozinho vou indo mesmo
a uma festa, atendendo ao
convite dos mortos.
cérebro inchado
em recônditas gavetas,
minha cabeça não deixa
de doer. fui de mim
o meu maior inimigo.