Poesias de 1 a 99

  • POEMA #26: AVALIAÇÃO NOTURNA

    Este pedaço de céu
    que me foi permitido entrever
    entre os edifícios,
    assemelha-se a uma parte de mim
    que ainda se resguarda
    para nada.

    Areia (À Fragmentação da Pedra)

  • Poema #25: Becos e galerias que se bifurcam em T & L

    A paixão
    é a antessala
    de uma paranoia
    na qual entramos
    com um sorriso largo
    de quem não sabe
    que penetrou num túmulo.

    A Sentinela em Fuga e Outras Ausências

  • Poema #24: RETORNO AO FINAL

    “meu Deus, porque me abandonaste?
    se sabias que eu não era Deus,
    se sabias que eu era fraco”

    Drummond

    protagonista
    de minha vida pregressa
    hoje sou coadjuvante
    de ruinas.

    nas águas do rio
    fiz algumas tentativas
    mas acabei afogando
    na correnteza.

    mudei de fase:
    virei pescador
    de sonhos frustrados
    à beira dos barrancos.

    galopei como quem
    sonha por estradas
    poeirentas de Minas
    Gerais, sozinho.

    empinei pipas e
    papagaios em céus
    nevoentos de minha
    infância distante.

    virei (ou tentei virar)
    compositor de vanguarda
    e fiz parcerias utópicas
    com célebres defuntos.

    amante de belezas glacias
    as mulheres passaram
    por minha vida como
    barcos à vela naufragados.

    fui poeta das condolências
    em velórios de interior
    quando o defunto era
    o que menos importava.

    candidatei a representante
    do povo, mas não tinha
    propostas viáveis no bolso
    da algibeira rota e furada.

    Da Essencialidade da Água

  • Poema #23: FOGO-FÁTUO (ignis fatuus)

    .

    “e ficam tristes e no rastro da tristeza chegam à crueldade”
    Drummond

    fica estabelecido que
    os meus concidadãos,
    mesmo aqueles que
    moram em águas-furtadas
    serão livres à maneira deles.

    fica estabelecido que
    apesar do sonho já
    ter acabado desde
    o anúncio de John Lennon,
    será permitido às crianças.

    “deus é um conceito
    pelo qual medimos
    nossa dor”

    eu vou dizer novamente
    “deus é um conceito
    pelo qual medimos
    nossa dor.”

    essa é a realidade!

    Da Essencialidade da Água

  • Poema #22: AZ-2

    .

    Vozes inaudíveis
    golpeiam meu silêncio
    de bicho entocado.

    Sou perseguido por fantasmas
    (desdobramentos de mim)
    e os apascento
    em precária unidade.

    Sei da existência sem vida
    e dos hálitos fétidos da morte
    que povoam a noite dos túmulos.

    Meu corpo é um mapa
    onde se cruzam
    os mais diversos caminhos
    da imaginação fantástica.

    Tenho todos os demônios
    empalhados no quarto
    e cada dia escolho um
    para sustentar os pesadelos.

    E sobre os meus despojos
    carcomidos pelo tempo
    e pelas mortes diárias
    que impus a mim mesmo,
    nascerá uma flor infernal
    para devorar todos os homens.

    O Acaso das Manhãs

  • Poema #21: Eu Queria Fazer um Poema pra Você

    Numa ocasião em que eu estava
    (como das outras vezes) prestes
    a me naufragar no abismo do delírio,
    houve um sorriso de dentes postiços.

    Mas eu já não queria mais cair
    na cilada do amor fugaz e preferia
    estar quieto e fugir para longe do
    alcance de uma outra decepção.

    Então eu me internei num hospício
    e amarrei as minhas mãos ao pé
    de uma árvore frutífera de onde
    eu poderia escavar o chão de barro.

    Ao fim do terceiro dia de psicopatia
    veio a diretora dizer que eu deveria
    partir para um lugar que não sabia
    e me deram um endereço e o contato.

    Era um lugar acolhedor e distante
    coberto de grama e cerca de arame
    mas quando fui atravessar a ponte
    um cão vampiro me atacou de noite.

    Sobrevivi como alguém que se esqueceu
    da longa noite passada e caminha como
    se o dia estivesse amanhecendo de novo,
    apesar do rastro de sangue e a boca seca.

    Havia uma casa deserta e eu pensei em
    largar tudo o que eu não nunca tive e
    vir morar aqui no meio dos bichos que
    comunicam-se através de sinais e apitos.

    Lembro de uma escada pintada de verde
    e uma mulher bonita que veio me atender
    com as mãos estendidas e um sorriso
    encorajador para que eu dissesse tudo.

    Não havia o que contar além do fato
    de eu ter andado ausente e perdido
    e que, nesse período, eu havia criado
    enredos irreais para me manter vivo.

    Tudo era então uma simples questão
    de fechar os olhos para os pássaros e viver
    tranquilo como os homens banidos de si
    e que se refugiam no labirinto do amor.

    Ai que delícia que é poder acordar e dizer
    que estou vivo, mesmo não tendo nada
    ao redor a não ser o microfone em que
    digo isso e acompanhar o seu eco no abismo.

    O Jardim Simultâneo

  • Poema #20 – CONFIDENCIAL

    Nada consta.
    Consta que seja um nada
    em face a uma constância
    de extremos inarredáveis.
    Enfim
    um nada consta sobre
    outro consta um nada
    — A vida incerta do homem —
    Nas folhas gastas do mundo
    não consta nada em
    detrimento desse nome.
    Um simples nome em meio
    a tantos outros no arquivo
    de uma gaveta metálica.

    O Acaso das Manhãs

  • Poema #19 – CAMADAS DE ÁGUA

    .

    “o peixe sabe de tudo e nada”
    autoria desconhecida, século XIII

    tenho dois meses
    para morrer
    o ódio
    me circunscreve
    como camadas
    de água que vem
    inundando tudo,
    desde as primeiras células
    aos últimos fios de cabelo
    e são águas salobras, escuras
    de quando faço a descida
    da ponte para beber
    desta água, o líquido, mas ai,
    tem gosto de peixes putrefatos
    peixes analógicos e peixes digitais.

    “São voltas da vida, voltas da vida”,
    como dizia o enfermo Valdemar
    em seu leito de morte e honradez.

    lembro de ser abominado pelo meu próprio sangue,
    por ser alcoolizado e desistente (“mas eu não sei
    por que me sinto assim, vem de repente
    um anjo triste perto de mim”). Ah, que merda!
    e algumas e diversas era esse o meu mote
    para a distração em histórias em quadrinhos
    e as primeiras letras e composições em cadernos.

    sessenta anos, soa o sino em meu tímpano.

    meu prazo e o peso desta incongruência
    dobra-me o pé direito na sandália surrada
    “Casa da Eternidade”, que em hebraico se escreve,
    bet kevarot, mas já não sou digno de cheirar o ar,
    a água límpida, o pensamento puro, inoxidável.

    deverei ficar circunscrito a este cemitério de angu,
    atolado até os joelhos junto com as fezes dos porcos
    que se procuravam alimentar para o sacrifício final,
    num circo fúnebre onde seriam então recheados
    com “pêlo de gato, pêlo de um aleijado, chocalho
    de cascavel, pés de rã, orelhas de sapo, dentes
    de cão e garras de coelho”, para o cardápio da
    criança ingênua pensando que ao sair da escola, ah,

    e ele pensava, defeituoso e ingênuo das Gerais
    “chegando em casa vou pegar uma jantinha”.
    o controle 44 era uma tecla onde soava uma música
    em todos os dias (July 28th) e era singela como as
    lembranças que não puderam ser nesta (sic) encarnação:
    “lembrei de nós, do que ficou, se ficou não vai ter final”.

    mas antes há de vir o controle 72, do aniquilamento,
    da vida quando se torna um fardo pestilento, e eu bato
    a cabeça no travesseiro como uma lagartixa inútil, de olhos
    arregalados e o estômago e o cérebro entupido de remédios
    num quadro consolidado e sem volta, assim como do meu pai.

    “São voltas da vida, voltas da vida”,
    como dizia o enfermo Valdemar
    em seu leito de morte e honradez.

    queria ter a grandeza e a percepção da vida num leito de hospital
    para morrer fazendo este balanço isento de que tudo. “são voltas da vida,
    voltas da vida”, e no dia seguinte o Sr. Valdemar já não acordava mais.
    que venha esta noite, em mim também, ó morte, como num plenilúnio
    será que, depois disso, a vida deixará de dar as suas voltas? acho que não.
    o que eu tenho hoje são resíduos, resquícios de ressaca e sequelas
    “sofrendo com as calças e tudo” como o parente eunuco já dizia,

    e o que quer que isso tenha significado para ele de pés em perpendicular.
    durante toda aquela noite de veneno e cobra eu implorava o advento da morte
    para, ao menos, dentro dos dois meses subsequentes, eu pudesse acordar,
    invariavelmente menor, com um resto de vida e uns versos de circunstância
    como esses de agora e me faço então um urso plausível, criando forças para criar
    em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando no braço
    como fosse me virar do avesso, o que faz com que a minha cabeça não consiga
    pensar mais e eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura contábil.

    “A Solidão Clandestina” foi demais e única companhia, amigo, falecido antes de mim.
    “O Himalaia de um Vaso” era alto demais para eu escalar, falecido conterrâneo, e então
    eu caía de borco com a cara no meio do barro, palhaço, cheio de livros e dentes partidos.

    Se ao menos eu tivesse tido, o quanto antes, a droga de um buril e punhais amolados.

    Da Essencialidade da Água

  • INTERTEXTUALIDADES

    .

    Um escritor nunca escreve sozinho…
    Antes, escreve com todas as vozes
    Que sussurram a todo instante
    histórias e versos
    Acertos e desacertos
    Melodias e ilhas
    Desconcertos…

    Sou Cecília…
    Oswald, Mário, Carlos… Andrades!
    Sou também Bandeira!

    Camões, Pessoa, Castro e muito mais.

    Sou Clarice…
    Veríssimo, Graciliano, Rosa,
    Sou também o cais.

    Jorge e Murilo e  muito mais.

    Sou o que sou: olha só os tais!
    Pouco, muito…
    E até coisas banais.

    E desfaço o ser quando entender…
    e é o que basta,
    mas

    não sou sozinho, sou inteiro,
    sou vários, por vezes inabitável,
    propenso e líquido

    e, ao mesmo tempo,
    uma cidade inteira
    contrassenso

    Sou Mia, Leminski, Milton
    Caetano!
    E não há engano!

    Sou Machado
    E o texto, ironicamente,
    É mais afiado.

    Sou Carlitos, o vagabundo,
    Sou parte itinerante

    Das lembranças do mundo!
    Sou e não sou a cada hora.
    E o relógio não tarda.

    Agora
    Sou todos os textos e canções
    Sou todas as rimas e emoções

    Um escritor nunca escreve sozinho…
    Antes, escreve com todas as vozes
    Que sussurram a todo instante
    histórias e versos
    Acertos e desacertos
    Melodias e ilhas
    Desconcertos…

  • Poema #18 – NA PENUMBRA

    .

    Na penumbra
    me faço grande
    como minha sombra na parede.

    Porém a parede
    não é intacta
    como a cerâmica do banheiro.

    Suas imperfeições
    remetem-me para além dela mesma
    e me vejo em cada detalhe
    mal sucedido de sua arquitetura.

    Na penumbra
    me faço gente
    como as presenças que me povoam.

    Porém o sonho
    não corresponde
    à realidade imaginada.

    Os monólogos com a sombra
    remetem-me para além de mim
    e me sinto em cada possibilidade
    de acender a lâmpada
    e não perder o mágico domínio.

    O Acaso das Manhãs

  • Poema #02 – Quase noite; foi-se o dia, um dia

  • Poema #9 : Tudo é poesia

    .

    Tudo é poesia
    A agitação da rua
    O sinal
    E a correria!
    A voz do vendedor
    O som do dia.

    Tudo é poesia
    A propaganda
    O chafariz
    Até a melancolia
    O engarrafamento
    O papelão pra noite fria.

    Tudo é poesia
    Os menores na esquina,
    Uma bola ou um limão
    Acrobacia
    No alto dos edifícios
    A vida silencia!

    Tudo é poesia
    Nas placas, andaimes,
    Guindastes
    Não há monotonia.
    Há tremor, rumor
    A amarga dor,
    Sinestesia!

    E quando tentam tirar
    As coisas do seu devido lugar
    Autofagia!
    Não importa!
    Pois tudo na cidade
    É poesia!

  • Poema #17 – CORPO

    foi preciso
    que eu fosse
    envelhecendo
    para entender
    (em parte) o
    erotismo tardio
    nos poemas de
    Drummond.

    é que precisamos
    ir perdendo para
    poder reconquistar.
    é preciso ir morrendo
    pra aprender a gostar
    da vida e tentar
    (quando não é mais possível)
    usufruir da beleza da água

    que acabou de passar.

    Da Essencialidade da Água

  • Poema #16 – Convidados

    Da janela da casa onde moro
    aguardo a chegada de alguns
    amigos para a festa de
    aniversário.

    Nada se move, exceto a minha
    sombra na varanda, vazada de
    angústia, silêncio e noite.

    Fecho as janelas da casa
    onde moro e ainda dou
    uma última olhada através
    das frestas da veneziana.

    Nada se move, exceto a noite
    com a sua noção de simultaneidade
    do tempo, das pessoas e das coisas.

    Nada se move, exceto o silêncio
    que domina o ambiente e repousa
    na visão do telefone emudecido
    e inútil sobre o criado-mudo.

    Fecho a porta do meu quarto
    e a casa onde moro fica escura,
    imersa na solidão dos cômodos.

    Inventário de Sombras

  • Poema #15 – EUTANÁSIA

    .

    Sob uma chuva de outubro
    o germe penetrou
    no solo árido de mim,
    onde as emoções se resguardavam.

    Mas o sol e o raciocínio
    dos meses subsequentes
    atrofiaram o germe ávido
    que havia trazido o amor.

    E foram tantos os desencontros
    do clima naquele ano
    que a meteorologia afetiva
    justifica-se culpando a ambos.

    Agora, numa sala de espera
    contígua à do esquecimento,
    resta-nos como única saída
    a eutanásia cúmplice
    do que restou do sonho.

    O Acaso das Manhãs

  • POEMA #01 – QUARENTENA – QUARESMA – QUARESMEIRA

    Cinco anos depois da pandemia ser anunciada, revisito este texto que nasceu em meio ao isolamento — ecos de um tempo que ainda ressoa.

    O horizonte anunciou um desafio
    Na época que traria
    Tanta luz e liberdade
    Chegaram tempos de trevas
    Fomos convidados ao exílio
    Um inimigo invisível
    Uma tal gripezinha
    Que surgia na China
    E, de repente, fez vítima,
    Seu José da esquina
    E com o perigo iminente

    Me isolei
    Nos tempos das quaresmeiras
    Roxas como um suplício
    Pré-milagre de Cristo

    Me isolei
    Ou melhor, nos isolamos
    Em um paraíso distante
    Em um refúgio externo
    Ou no silêncio que guardo

    Me isolei
    Perdi a vaidade
    Tentei assumir os brancos
    Quase raspei os cabelos
    Mas recobrei a sanidade

    Me isolei
    Adotei duas gatas
    Meu amor surtou
    Elas ronronaram
    Ele se apaixonou

    Me isolei
    Quis morrer
    Quis sumir
    Quis viver
    Ressurgi

    Me isolei
    Perdi um tio
    Perdi uma prima
    Chorei
    Como você também chorou

    Me isolei
    Conversei com amigos
    Voltei a falar com meus primos
    Me senti parte de algo
    Dentro do meu vazio

    Me isolei
    Fiz máscaras de beleza
    Pintei as unhas
    Emagreci
    Engordei

    Me isolei
    Vi ministros humilhados
    Nossos poderes desnudos
    Ouvi o que não queria
    Falaram o que não devia

    Me isolei
    Acordei de maneiras várias
    TPM´s, alegrias
    Senti saudades
    Do que não tinha

    Me isolei
    Li tantos livros
    Escrevi quase diários
    Poemas curtos
    Contos que criei

    Me isolei
    Descobri mais de mim
    De você
    Ou até do outro
    Já nem sei

    Me isolei
    Fui amiga do sol
    Companheira na chuva
    Me perdi
    Me encontrei

  • #14 – A LUA ESCURA

    .

    sabe,
    há um momento
    em que a lua
    fica escura.

    é quando,
    a escuridão maior
    vinda dos montes
    cobre a Rua Fácil.

    e tudo,
    vira um só quadro
    negro, uma lousa
    fria que antecede
    a morte.

    Da Essencialidade da Água

  • #08 – Ofício

    E todo verso que faço
    Um pedaço de mim está e fica e se vê
    Um outro ninguém sabe, um laço
    que não se sabe onde fica e nenhuma vista lê

    E toda estrofe que nasce
    Meus sonhos e verdades lá estão
    Num outro canto, outras verdades
    No esquecimento ficarão

    Quando o poema, inteiro, surge diante de mim
    É meu o rosto e é meu o nome
    Mas é um outro que não sou eu
    Não sei se isso é o começo ou o fim…

    E então me refaço e me reescrevo
    Junto ou em pedaços o tempo inteiro
    Sou e não sou, tenho ou não tenho
    É este o poeta e o seu ofício primeiro

  • #13 – PROGRAMA NOTURNO

    No silêncio sepulcral desta noite
    abro a janela
    e recebo a visita do demônio.
    Juntos travamos um pequeno diálogo
    acerca da destruição do mundo.

    Depois percorremos os cemitérios
    e os ninhos dos pássaros agourentos,
    respiramos o hálito da morte
    e compactuamos da miséria dos homens.

    A noite era fria e indiferente
    aos nossos propósitos de celebração.
    Com dedos trêmulos cavamos o altar
    de nosso macabro ritual.

    Antes, porém do sacrifício final
    fomos resgatar a memória dos corpos
    e garantir a permanência dos zumbis
    sobre a face andrajosa do planeta.

    Abrimos um caixão e uma brisa vaporosa,
    que era ao mesmo tempo fúnebre e sensual,
    despertou nossos instintos de espécie
    e pouco depois e para sempre estava
    consumado o ato lascivo e sagrado.

    Chegamos depois ao altar fatídico,
    e sob asquerosos protestos de ódio
    à vida social e fútil dos vivos,
    pegamos os punhais do sacrifício
    e nos entregamos ao suplício eterno.

    O Acaso das Manhãs

  • #012 – ATÔMICO

    .

    Nossos filhos nascem cegos
    pela poeira do nosso tempo.
    Nós ainda enxergamos
    porque já entendemos o mundo
    a partir da poeira que há nele,
    e que não nos incomoda muito.

    Areia (À Fragmentação da Pedra)

  • #011 – Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo

    Quando acordei do coma
    eu já não tinha mais
    a mobilidade de antes.
    Olhei para as paredes
    de vidro do isolamento
    e já não tinha a mesma visão
    de antes
    a mesma audição
    de antes.

    O mundo parecia ser outro.

    Perna e braço direitos
    estavam paralisados,
    dormentes e um sono
    de letargia na noite
    fria com pedras de gelo
    no peito, do lado
    esquerdo, assim penso.

    O mundo já não era o mesmo.

    Dois dedos do pé esquerdo
    haviam sido afetados
    e minhas afeições e
    percepções já não eram
    as mesmas. Fúria de
    não ter sido antes.

    Minha intimidade
    e meus defeitos haviam
    sido expostos como
    escaras do tempo.

    Nunca mais quis tirar fotografias.

    Havia um corpo estranho
    no meu corpo fragilizado
    e uma tela no estômago
    de baixo para cima eu havia
    sido atingido por um golpe
    do destino e várias cirurgias.

    Não tinha mais condições
    suficientes para poder
    trabalhar, sobreviver
    e tive que depender
    de apoio, de cestas básicas
    da vida como um doente
    a quem falta alguma coragem.

    Remédios para a goela grande das farmácias.

    Acordei como quem entra no pesadelo
    e já não podia sonhar acordado ou dentro
    de uma noite normal e previsível.
    O eixo de tudo continuava gasto
    como o eixo do mundo, ANTES.

    Da Essencialidade da Água

  • #10 – TECNO-POEMA

    .

    – Fala o poeta de vanguarda:
    A estrutura do verso
    está invertida
    em meu caleidoscópio.
    Preciso de uma máquina
    rápida e perfeita para
    fazer uma circuncisão mental:
    “Quero que a estrofe
    gravada ao jeito
    do vídeo cassete
    saia nítida,
    sem um defeito”.

    – Fala a crítica especializada:
    A infraestrutura do verso
    está evoluída
    em meu laboratório.
    Preciso de um computador
    rarefeito e sem defeito
    para efeito de análise poética:
    “O crítico é um digitador,
    digita tão completamente
    que chega a digitar a dor,
    a dor que sua mãe sente”.

    – Fala o homem pensante:
    A superestrutura dos acima
    está equivocada
    em minha concepção histórica.
    Preciso de uma filosofia
    autêntica e própria agora
    para escrever um poema-amostra:
    “A sombra projetada de um homem
    exclui o mecanismo da repetição alheia,
    pois a condição intrínseca dele mesmo
    exige que seu poema se faça de ideias
    e despreze a vida enquanto justificativa
    para o erro de se caminhar junto ao tempo”.

    – Fala um observador imparcial:
    Poesia significa
    abrir caminho para o abismo
    e pedir que nos devolvam
    o nosso sonho antiatômico.

    O Acaso das Manhãs

  • #07 – O Homem dos Muros

    O homem dos muros
    É um ser sombrio,
    Sua imagem causa arrepio
    E gera confusão.

    O homem dos muros
    Grita e divide
    E com força Insiste
    Em mais desunião.

    O homem dos muros
    É uma grande desgraça
    Incita arruaça
    Morte e destruição.

    O homem dos muros
    Nem parece um homem
    A razão e o senso somem
    Na sua louca ambição.

    O homem dos muros
    É um menino mimado
    Birrento e enjoado
    O caos é a sua motivação.

    O homem dos muros
    É o pior presidente
    Não gosta de gente
    Não tem empatia nem coração.

    Coitado do mundo!
    Que dano profundo
    Se um outro discípulo
    Medonho e ridículo
    Pudesse aparecer!

    Coitado do mundo!
    Que dano profundo!
    Se um louco varrido
    De pedra cingido
    Pudesse crescer!

    Ainda bem que no Brasil
    Um país muito gentil
    Isso não há de suceder!

    Aqui o buraco é mais embaixo!
    Tão incerto e tão escuro
    Que não dá nem pra ver!

    Coitado do mundo
    Que dano profundo
    Se outro homem dos muros
    De atos impuros
    Pudesse aparecer!

    Não haveria mais poesia
    Seria tudo monotonia
    Difícil sobreviver!

    Mas enquanto for possível o poema
    Mas enquanto for possível a escrita
    A palavra liberdade estará em cena
    A palavra resistência terá vida!

  • #09 – EXPURGO

    hoje eu mordi
    um chumaço de
    papel higiênico
    para estancar
    (ou tentar conter)
    o sangramento
    da língua dilacerada:
    como um cadáver
    antecipado que devora
    o seu próprio sudário.

    Um Andarilho Dentro de Casa

  • #08 – A Ilha

    .

    A ilha com seu silêncio
    me comunica a morte
    dos seres espectrais
    que nela vivem ou já viveram.

    A ilha cercada por mangues
    é um poço de lama e óleo.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim
    dos pescadores da ilha.

    Os pescadores da ilha
    me apresentam a pesca de um dia,
    nada.

    A ilha com sua morte
    me comunica o silêncio
    dos seres superiores
    que a mataram e matam.

    A ilha abandonada pelos banhistas
    é um deserto de espuma e água.

    Os frequentadores da ilha
    me comunicam o desastre
    das praias da ilha.

    Os frequentadores da ilha
    me apresentam o bronzeado de um dia,
    petróleo.

    A ilha com sua sorte
    me comunica o crime
    dos seres continentais
    que seguem impunes.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim dos peixes
    e voltam tarde para casa.

    O Acaso das Manhãs

  • #07 – ANDARILHO DEITADO

    .

    cheguei cansado para deitar
    sobre a cama de papelão no chão
    e debaixo da marquise gotejante.

    uma poça de água da pingadeira
    sobre o passeio do mercado desativado
    onde dormiam indigentes à espera do fim.

    dormir é dócil como o bebê embriagado
    desapercebido dos planos de Deus.

    Um Andarilho Dentro de Casa


  • 6 poemas de Campista Cabral

    #06 – FAZER POÉTICO

    O primeiro verso é um pouco como o ar
    Palavras soltas, palavras para cá e para lá
    Mas mãos cuidadosas vão caçando no brincar
    E o céu poético se ordena e tudo lá está.

    O quinto verso, já encorpado, é como a terra
    Palavras fortes e consistentes que criam raiz
    E mãos habilidosas escolhem no tempo de espera
    E o chão poético é desejoso e tudo diz.

    O nono verso movimenta-se ágil como a água
    Veloz como as corredeiras e quieto como lago
    Percorre a vida a noite inteira e depois deságua

    E quando tudo parece a morte – derradeira cena
    As cinzas das brasas voltam ao natural estado
    O último verso dissolve-se e é o fim do poema.


    #05 – EXERCÍCIO POÉTICO

    E vai e vem e vem e vai e agora cai
    Um verso e mais outro e outro mais
    E de novo, mais um e mais um e mais um
    E a rima certeira se aconchega em “algum”

    E vem e vai e vem e vai e de novo cai
    Mais um verso e mais outro e outro mais
    A rima, no momento, se aproxima do “cais”
    E então, a estrofe, mais uma, vai…

    E assim segue o poema um pouco escorregadio
    Inteiro, em pedaço, movediço e quebrável
    Todo, completo e depois o vazio e o nada!

    E assim segue o poema um pouco vadio
    O primeiro ou o último, inteiriço, mas mutável
    Item por item, som a som, palavra por palavra


    #04 – TEMPO

    Horas… as horas… é o tempo que passa
    e passa o tempo todo o dia inteiro
    independente do que faça ou não faça
    devagar e impreciso ou certo e ligeiro.

    Curioso é que tudo muda nessa trama:
    o sentimento que se sentia já não sente
    o amor com que se amava já não ama
    todas as coisas passam, assim, de repente.

    No fim de tudo, até os sentidos somem
    e transitamos entre o que há e o que não há:
    o improvável, o contraditório, um senão…

    Tempo, palavra antiga, antes do homem…
    Marca do que foi, do que é e do que será
    máscara de sonhos, momentos, desilusão.


    #03 – LÍNGUA

    Língua breve, toda clara, toda escura,
    Aos poucos caminha, para, continua.
    E entre o areal, a bruma, a leve chuva.
    A face se mostra, inquieta e muda.

    Língua instante – objeto nada – rara, pouca.
    Para, continua, para, tonta e louca.
    Ensaia um grito, uma palavra, outra,
    A voz se insinua, miúda e rouca.

    No entanto, nas contradições do descaminho,
    Faz-se a língua na própria língua
    Faz-se o verso em todo o canto.

    O poeta, imagem irreal, o instinto,
    Busca a palavra, suga-lhe o sentido.
    Regurgita o poema sob aplausos e espanto


    #02 – SOMBRAS, PEDRAS E RIOS

    Sombras, rios, sussurros ou delírios?
    Delírios, sombras, rios ou sussurros?
    Pedras, muitas pedras correm com os rios.
    Com os rios correm os murmúrios.

    Rios, sussurros, delírios e sombras.
    Pedras, muitas pedras correm com os rios.
    O resto são assombros e tu contas
    Que escrevo um poema? Delírios!

    No primeiro terceto faço questão:
    Pedras, muitas pedras correm com os rios.
    Sombras, sussurros, mas o que são delírios?

    Imaginar que faço o poema e não
    Importa-me o verso que segue… São fios
    E tu a acreditares nas pedras e rios?


    #01 – É A ROSA

    Nas rodas antigas o freio e a vida
    É a rosa, desgosto, gosto do mundo
    Frágil, sublime, aos poucos ferida
    Viva num instante, morta num segundo.

    A entreter o poeta num beijo longo
    Ao desfalecer é pedra, mar e cio,
    Conchas de luz no céu onde ponho
    Um poema um tanto escorregadio.

    E foge de mim assim como o mar,
    E foge de mim sem sequer pensar,
    E foge de mim sem mesmo olhar.

    É a rosa, tanto doce quanto amarga,
    É a rosa metade da madrugada,
    É a rosa, poeira e mais nada.


  • #06 – O SOM DO SILÊNCIO

    .

    “sob a luz de neon, o silêncio cresce como um câncer.
    as pessoas se curvaram e rezaram
    para o deus de neon que elas criaram.
    as palavras dos profetas estão escritas nas paredes do metrô
    e nos corredores do cortiço”
    Simon & Garfunkel

    era a noite fria e chuvosa
    então eu saí como um zumbi
    para criaturas que, como eu,
    vivem nas sombras.

    sob a luz de neon
    o câncer se espalha
    e as pessoas se curvam
    ao som de Simon & Garfunkel.

    rezas, aspersões de água
    benta e nada resolve:
    o deus de barro que criaram
    se esfarela como um pó seco.

    as palavras dos profetas
    estão rabiscadas nas portas
    dos banheiros sujos das
    rodoviárias promíscuas.

    cortiços, neons resplandecentes,
    silêncios e o escuro breu da
    noite sem almas a sufocar
    nos corredores do metrô 147.

    palafitas, águas podres,
    restos de comida, latas,
    lixo reciclável, “estercoraria
    argila preta”. O Déjà Vu.

    Da Essencialidade da Água


  • #05 – A Besta de Gevaudan (*)

    .

    “entre os anos de 1764 e 1767 os habitantes da pequena província francesa de Gevaudan, atualmente parte de Lazere, próximo das montanhas Margueride foram aterrorizados por uma criatura lupina que passou a ser conhecida como La Bête Du Gevaudan ou “A Besta de Gevaudan”

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha.

    a primeira mulher atacada conseguiu escapar e chegar até ao seu vilarejo, de onde passou a adotar um comportamento estranho e agressivo. Após esse episódio, seguiu-se um tempo de calmaria, mas próximo ao natal o cântaro de água derramou e mais uma pessoa desapareceu e localizaram os seus restos terrivelmente mutilados em uma ravina. Suspeitaram então que um nobre renegado estava por detrás daquelas mortes, transformando-se em um lobo demoníaco em noites de lua cheia. as pessoas do vilarejo foram ficando incomodadas com essa presença lupina comendo a sua comida, remexendo os campos e invadindo as suas propriedades. Montaram então uma expedição de militares com um arsenal de 50 mosquetes, lanças com mais de dois metros de comprimento, armas que disparavam setas de ferro, bombas explosivas de pólvora negra, armadilhas e correntes para capturar o intruso animal. Os homens da expedição usavam armaduras negras de couro batido e metal cheio de espinhos, cabelos moicanos e pinturas de guerra. As suas peles eram besuntadas com os despojos de uma loba no cio para atrair a fera sanguinária. Esses trajes exalavam um fedor nauseabundo. Tudo preparado para fazer o abate, mas a besta atacou antes e matou várias pessoas da tropa. Então os aldeões revoltados se armaram com ferramentas, paus e pedras e um desespero de iconoclastas, e nada. Tudo fracassou e contrataram então um taxidermista de Paris. A nova expedição ou empreitada contava com 40 caçadores e uma dúzia de cães farejadores. Os homens concentraram-se em uma área rochosa, repleta de ravinas e onde se dispunha de água potável ao que tudo indicava ser o covil da fera. Esta última tentativa se enveredou pela floresta tendo como líder um taxidermista especialista em folclore e superstições e que, armado com projeteis e balas de prata que foram abençoadas pelo pároco local. Chegaram num bosque próximo de Gevaudan onde recitaram uma série de orações e cantigas místicas. E logo a fera, na forma de um lobo, apareceu e então todos dispararam com suas pistolas e os projeteis de pura prata que vararam o corpo da besta que caiu fulminada. Para alguns aquela era de fato a besta carniceira e quando tiraram a máscara de pelos e sangue era um homem com trajes de um maluco monge e assim foi queimado e as suas cinzas espalhadas ao vento. Foi preciso o decurso de algumas semanas até que dessem falta do homem tosquiador e descobriram então que a besta não passava do camponês que tosquiava as ovelhas e se chamava “O Monstro” e a sua descrição batia ipsis litteris com aquilo que eu era na aldeia.

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha, ectoplasmática.

    Da Essencialidade da Água

    (*) transcrição livre e poética do famoso caso ocorrido na França do século XVIII


  • Arrimo de família

    Noite fria, sombria, quieta.
    Ele, calado, encolhido, matutando.
    Eu, na espreita, alerta, sentinela.
    Nós, famintos, sedentos, enjeitados.
    Olhos remelentos, húmidos, arregalados.
    Corpos esquálidos, caquéticos, patéticos.
    Dentes que bambeiam, rareiam, vadios.
    Garrafa vazia, gamela vazada.
    Burburinho no beco, grupinho do boteco.
    Garotada excitada, bebida exagerada.
    Sanduba na mão, churrasco no pão.
    Passo apressado, casaco amarrado.
    Rota traçada, calçada apertada.
    Molecada bloqueada, assustada
    Carroça encostada, coberta rasgada.
    Ele apagado, encolhido, deitado.
    Eu agitado, pescoço esticado.
    Abano o rabo, procuro um afago.
    Vira-lata esfaimado, tá necessitado.
    Não tem culpa, merece um sanduba.
    Comida de gente, pro cão indigente.
    Acordo o parceiro, meeiro, hospedeiro.
    Cão de mendigo, pão repartido.
    Aninho, carinho, comunhão.
    Vida de rua, verdade nua e crua.
    Entre um cão mendigo e um mendigo no chão.
    O que abana o rabo é que garante o pão.


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