Poesias de 1 a 99

6 poemas de Campista Cabral

#06 – FAZER POÉTICO

O primeiro verso é um pouco como o ar
Palavras soltas, palavras para cá e para lá
Mas mãos cuidadosas vão caçando no brincar
E o céu poético se ordena e tudo lá está.

O quinto verso, já encorpado, é como a terra
Palavras fortes e consistentes que criam raiz
E mãos habilidosas escolhem no tempo de espera
E o chão poético é desejoso e tudo diz.

O nono verso movimenta-se ágil como a água
Veloz como as corredeiras e quieto como lago
Percorre a vida a noite inteira e depois deságua

E quando tudo parece a morte – derradeira cena
As cinzas das brasas voltam ao natural estado
O último verso dissolve-se e é o fim do poema.


#05 – EXERCÍCIO POÉTICO

E vai e vem e vem e vai e agora cai
Um verso e mais outro e outro mais
E de novo, mais um e mais um e mais um
E a rima certeira se aconchega em “algum”

E vem e vai e vem e vai e de novo cai
Mais um verso e mais outro e outro mais
A rima, no momento, se aproxima do “cais”
E então, a estrofe, mais uma, vai…

E assim segue o poema um pouco escorregadio
Inteiro, em pedaço, movediço e quebrável
Todo, completo e depois o vazio e o nada!

E assim segue o poema um pouco vadio
O primeiro ou o último, inteiriço, mas mutável
Item por item, som a som, palavra por palavra


#04 – TEMPO

Horas… as horas… é o tempo que passa
e passa o tempo todo o dia inteiro
independente do que faça ou não faça
devagar e impreciso ou certo e ligeiro.

Curioso é que tudo muda nessa trama:
o sentimento que se sentia já não sente
o amor com que se amava já não ama
todas as coisas passam, assim, de repente.

No fim de tudo, até os sentidos somem
e transitamos entre o que há e o que não há:
o improvável, o contraditório, um senão…

Tempo, palavra antiga, antes do homem…
Marca do que foi, do que é e do que será
máscara de sonhos, momentos, desilusão.


#03 – LÍNGUA

Língua breve, toda clara, toda escura,
Aos poucos caminha, para, continua.
E entre o areal, a bruma, a leve chuva.
A face se mostra, inquieta e muda.

Língua instante – objeto nada – rara, pouca.
Para, continua, para, tonta e louca.
Ensaia um grito, uma palavra, outra,
A voz se insinua, miúda e rouca.

No entanto, nas contradições do descaminho,
Faz-se a língua na própria língua
Faz-se o verso em todo o canto.

O poeta, imagem irreal, o instinto,
Busca a palavra, suga-lhe o sentido.
Regurgita o poema sob aplausos e espanto


#02 – SOMBRAS, PEDRAS E RIOS

Sombras, rios, sussurros ou delírios?
Delírios, sombras, rios ou sussurros?
Pedras, muitas pedras correm com os rios.
Com os rios correm os murmúrios.

Rios, sussurros, delírios e sombras.
Pedras, muitas pedras correm com os rios.
O resto são assombros e tu contas
Que escrevo um poema? Delírios!

No primeiro terceto faço questão:
Pedras, muitas pedras correm com os rios.
Sombras, sussurros, mas o que são delírios?

Imaginar que faço o poema e não
Importa-me o verso que segue… São fios
E tu a acreditares nas pedras e rios?


#01 – É A ROSA

Nas rodas antigas o freio e a vida
É a rosa, desgosto, gosto do mundo
Frágil, sublime, aos poucos ferida
Viva num instante, morta num segundo.

A entreter o poeta num beijo longo
Ao desfalecer é pedra, mar e cio,
Conchas de luz no céu onde ponho
Um poema um tanto escorregadio.

E foge de mim assim como o mar,
E foge de mim sem sequer pensar,
E foge de mim sem mesmo olhar.

É a rosa, tanto doce quanto amarga,
É a rosa metade da madrugada,
É a rosa, poeira e mais nada.


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Campista Cabral

Campista Cabral, leitor assíduo dos portugueses Camões e Pessoa, do poetinha Vinícius, herdou deles o gosto pelo soneto. A condensação dos temas do cotidiano, assim como a reflexão sobre o fazer poético, parece procurar a sua existência empírica ou, nas palavras do poeta, um rosto perfeito, na estrutura do soneto. Admirador e também leitor obsessivo de Umberto Eco, Ítalo Calvino, José Cardoso Pires, Lobo Antunes, do mestre Machado de Assis e do moçambicano Mia Couto, retira dessas leituras o gosto pela metalinguagem, o prazer em trabalhar um espaço de discussão da criação literária em sua prosa. A palavra, a todo instante, é objeto base dos contos e das crônicas. A memória, o dia-a-dia, o amor, as sensações do mundo e os sentidos e significados da vida estão presos nos mistérios e assombros da palavra.

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