Nós, humanas criaturas, contamos, desde sempre, histórias. Histórias para ninar, histórias para assustar, histórias de amor e outras sem fim, histórias de nós mesmos e histórias para divertir… O fato é que não importa a finalidade, contamos histórias. E elas, as histórias, têm um dono!
Não falo dos autores, não falo dos editores e tampouco dos que representam a indústria da arte contemporânea. Falo, simplesmente, do narrador.
O narrador. Este ser criado e imaginado e experimentado por seus criadores.
O narrador. Este ser entre o real e o imaginário, o ambíguo e o contraditório. Tímido ou panfletário…
O narrador com pele e ossos e cabelo… Ou apenas uma voz que nos orienta.
O narrador e o seu olhar sobre as coisas. A sua fala. As suas falas.
Somos capazes de acreditar no que ele diz. Somos capazes de odiá-lo e amá-lo!
Ao acabar o seu texto, o autor morre. O narrador não. A palavra é sua. As verdades e as mentiras, as nuanças de cor e as dúvidas que encerra. Tudo o que disser, sendo ele personagem ou não, sairá da sua boca como se fosse vida.
Em Grande Sertão Veredas, o desesperoamorpaixão de Riobaldo por Diadorim é o desespero amoroso do narrador. As falas monossilábicas de Fabiano, em Vidas Secas, são a aridez e a contenção do narrador. O riso, a crítica, a língua e o olhar de João da Ega, em Os Maias, para além de Eça, pertencem ao olhar e à língua do ferino narrador.
O narrador provoca, atiça, desorienta, como as vozes criadas por Clarice Lispector.
O narrador brinca, observa, desenha os detalhes e prepara a armadilha.
No entanto, entre diversos romances, contos, crônicas, dois narradores machadianos merecem destaque: Brás Cubas, o defunto-autor, e Bentinho, o homem traído.
O Bruxo do Cosme Velho sabia criar narradores!
O primeiro, do outro lado da vida, dedica: “Aos primeiros vermes que roeram as frias carnes do meu cadáver…” O sarcasmo e a mediocridade de Brás Cubas lhe cabem e lhe pertencem do primeiro ao último parágrafo. Seguimos com ele. Rimos. Confiamos e desconfiamos de Brás Cubas. Machado de Assis observa, apenas observa seu narrador-personagem discorrer sobre a vida e a morte, a mostrar todas as hipocrisias da sociedade de seu tempo. Muitos não compreendem o mistério: um morto que escreve. Mas escreve morto? E como se dá? É o narrador e o que diz: as suas verdades e as suas mentiras.
Por meio do seu olhar e daquilo que diz, temos um cenário perfeito do Rio de Janeiro do final do século XIX.
Brás Cubas, depois de morto, já não precisa usar a máscara social e, por isso, revela, com a ironia tão peculiar aos textos machadianos, sua total mediocridade! Brás Cubas é um intolerante, preguiçoso, presunçoso e interesseiro, enfim, um total idiota! Mas, a forma como conduz sua própria história, permite que nos aproximemos e, como mistério, mágica ou estratégia, nos afeiçoamos ao idiota genial.
Brás Cubas revela, a partir de si, a condição de miséria do gênero humano.
Ponto para Machado!
O segundo, entre o ciúme e a obsessão, a todo instante escreve sobre os olhos de Capitu: culpada! Não… Machado, mesmo que declarasse a inocência de Capitu, não nos convenceria porque Bentinho é incisivo e doentio: culpada! O que restaria ao escritor carioca diante de tão rochoso narrador? Bentinho é contundente, perseverante e, por que não dizer, envolvente! Ela é culpada segundo a versão do narrador. A versão é falsa? Distorcida? Isso não importa! Importa é que os fatos são apresentados por ele: as suas verdades e as suas mentiras!
Bentinho se protege criando camadas e mais camadas e fechando-se por inteiro. É teimoso! Ensimesmado! É, por isso, o casmurro. Dom Casmurro.
Bentinho acredita no que escreve! Bentinho fervorosamente acredita no que escreve!
Não teremos a versão de Capitu. Bentinho não cria a oportunidade. Não quer. Não pode. O que sabemos é que os olhos de ressaca prenunciam Escobar. O que sabemos é que o choro de Capitu provoca sentimentos e sensações diversas. Entre palavras e sentidos, postos e expostos, induzidos e conduzidos, os argumentos do narrador acusam a traição.
Mais um ponto para Machado.
Contar histórias define nossa identidade! Somos o que contamos e ouvimos.
Reside aí a grande questão de tudo o que se entende como narrativa: as verdades e as mentiras são contadas e recontadas de modo a fazer das verdades, mentiras e, das mentiras, verdades… ou ainda embaralhar bem os dois conceitos para não se saber distinguir o que é verdade ou o que é mentira!
Assim, todos os narradores contam suas histórias. E acreditamos nas mentiras ou verdades que são contadas através dos séculos.
Assim, conhecemos uma parte da história de Capitu. Desbravamos as terras e o sertão dentro de Riobaldo. Esfarelamos a terra e sentimos o calor e a fome de Fabiano.
Enfim, enquanto for possível abrir um livro, muitas vozes, inúmeras vozes se manifestarão. Serão as vozes de todos os narradores iniciando suas histórias e fazendo cada leitor acreditar nas suas verdades e nas suas mentiras…
Excelente!!
Excelente!!
Querido amigo, mais um texto para admirar suas produções e deixar-nos envolvidos pelas suaves, duras, inocentes e maliciosas formas de penetrar no mundo das vozes dos narradores. Ah! Como eles nos levam do choro ao riso, da perplexidade à ação na leitura das suas histórias! Bras Cubas me fez sentir assim, contraditória nos meus sentimentos. Adorei o livro. Bom, agora é esperar a próxima crônica e mergulhar em reflexões sobre as verdades ou mentiras.
Obrigado Gi! Sua leitura é uma honra! Suas palavras dupla honra!