Crônicas

As joaninhas é que nos humanizam

De tempos em tempos, uma joaninha aparece perto de mim. Não importa aonde eu esteja: dentro de um carro, sempre ao meu lado, em uma viagem qualquer; imersa em um centro de cidade, onde esse tipo de vida parece improvável; dentro de casa – apartamento citadino que insisto, feliz, em preencher com plantas, em todos os cômodos, incluindo banheiros, cozinha e área de serviço. Para humanizar o lar, arrefecer a urgência do mundo.

Humanizar. Palavra, tão comum e gasta, usada à exaustão no meio arquitetônico, por vezes inviesada demais para justificar discursos em redes sociais como um linguajar básico de ser um humano contemporâneo. A ideia do humanizar ignora e vai contra o que a que a própria humanidade faz: afasta-se, cada vez mais, de tudo o que é natural.

Ser humano é sinônimo de alterar. Refazer. Testar. Desbravar.

Somos inconstantes – não sei quem foi que disse que precisamos de rotina.

Somos nômades antes, até, de sermos humanos. Construímos abrigos desde de as primeiras andanças de nossos vancestrais. Destruímos o status quo. Dobramos a natureza com as mãos sujas de barro, corações cheios de intenções. Quando inventamos um modo de reproduzir o fogo, com pedras, nos sentimos poderosos demais, vencendo a escuridão das noites. Invencíveis. Mudando a rotina dos sonos, espantando animais dos quais éramos presas.

O fogo foi a primeira das invenções. A primeira tecnologia. Muitas coisas em um único gesto:

Não apenas iluminava, esquentava; seduzia; convidava, espantava animais. Seu crepitar criava instantaneamente presença – do nada eis a luz, o som e o movimento. Uma dança em si. Arte. Inventamos um lugar, no invisível de ser nada, antes. Do nada, o simbolismo nasceu.

Dos agrupamentos quase fixos que a natureza tratou de dar semelhanças físicas em prol da sobrevivência, o lugar portátil. Carregamos pedras em preciosas bolsas de couro junto ao corpo. Ganhamos o mundo. Esterelizamos tudo o que era natural. Cozinhamos nossos medos, mantimentos… e o bicho.

O fogo era poder e destruição. Encantamento e medo. Possibilidades, criatividade, a continuidade dos dias. A primeira tecnologia: domamos a fome. Afastamos a morte.

Fogo se tornou potência.

E caos.

Depois, o fogo passou a ser combustível para os deslocamentos. Inventamos a roda uns 1.300 anos depois do fogo, e, aliados, a propulsão fez incríveis modificações por todo o planeta.

O fogo forjou ferramentas. Desenvolveu navios, armas, munições. O fogo nos fez atravessar o universo, na década de 50 do século passado.

O fogo é faísca. Chama fátua. Luminescência.

Embora tenhamos avançado substancialmente em nossa humanidade, o fogo continua existindo em sua forma primordial: ainda é possível evocarmo-lo com a fricção de duas pedras. Mas em casos de extrema necessidade ou vontade. Ele evoluiu, foi moldado, domesticado. Hoje pode surgir manso a partir de um botão. Habita as bocas adormecidas dos fogões elétricos, vive embutido em celulares, sobrevive através de tomadas. Pode ser carregado apenas pela luz solar – que, pasmem, é o princípio de todo fogo.

O fogo é nosso maior reflexo, expressão da vida humana.
Domado.
Mascarado.
Nunca extinto.

É sopro vital e a sentença de extinção de toda a vida. Se se rebelar contra nós, a partir de nós, nos engole.

Então, à revelia do fogo, seguimos arrancando plantas de seus habitats naturais e as limitando-as em pequenos compartimentos repletos de terras adubadas, húmus disso e daquilo. Terras corrigidas. Para humanizar o que, de fato, humanizamos.

Humanizar como ato?
Humanizar como uma necessidade de retorno às origens para, enfim, existirmos como humanos de verdade?

Fala-se muito sobre estarmos maquinificando o mundo. Mas tal expressão não seria melhor exemplificada se a reescrevessemos como humanizando o mundo? No sentido mais visceral, é o que estamos fazendo: interferindo, movendo, construindo, transfigurando, corrigindo, destruindo, tentando de novo.
Enganando.

Nos iludimos plantando vida por onde queremos que ela floresça. Assustamos e domesticamos animais. Trocamos os dias pelas noites iluminadas, confortavelmente acesas com dispositivos que controlam a intensidade e até a temperatura das luzes. Assumimos confortável e egoistamente o papel de deuses sobre todos os outros seres.

Todas as vezes que uma joaninha me encontra, me sinto especialíssima. E, por um breve instante, me esqueço de humanizar qualquer coisa.
Apenas existo.
Respiro.
Respeito.

Admiro.

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Bia Mies

BIA MIES é carioca da Serra Fluminense, autointitula-se "do mundo" e reflete em sua escrita um olhar sensível sobre a vida do seu "entremeio": cada crônica torna-se uma interação entre o trivial e a reflexão poética, uma tapeçaria de influências e insights. Tece pontes entre arquitetura, urbanismo, artes visuais e cênicas, moda, leituras, cafés, viagens, família, amores, Zeca (seu fiel companheiro de quatro patas), amigos, Itália e "experiências dos usuários", área na qual atualmente se especializa. Cada percepção transforma-se em texto, numa busca exploratória de pensamentos e emoções, através de uma visão pessoal do cotidiano e do extraordinário. Celebra a beleza da imperfeição e convida o leitor a uma jornada introspectiva, onde cada palavra é cuidadosamente escolhida para ressoar e provocar. Como o sopro das vivências que se entrelaçam pelo seu caminho, Bia Mies homenageia quase duas décadas de exploração literária no Crônicas Cariocas.

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