CINZAS
As cinzas dele
“Espero que me perdoe, querida, pelo trabalho que lhe dou como meu último desejo.” Assim terminava a carta que ela leu com alguma indiferença. Era um pedido do marido (nem quando morto ele deixava de incomodar), que a essa altura estava convertido num montinho de cinzas. Saiu do crematório com a urna embaixo do braço. Pensou durante uns minutos. “Não vou dirigir duzentos quilômetros até o litoral nem morta.” Foi para casa. Parada no meio da cozinha, olhou em volta. Descartou de imediato, por uma questão de higiene, as panelas, a batedeira elétrica e o liquidificador. Pelo mesmo motivo não considerou a banheira nem o bidê. Decidida, foi até a área de serviço e jogou as cinzas na lavadora de roupas. Adicionou uma colher de sal. Escolheu um programa de lavagem rápida e ligou a máquina. Olhou o giro do tambor por alguns minutos, apreciando como as cinzas se misturavam à água salgada. Não era mar, mas parecia. Deu como cumprido o último desejo do marido. Que Deus ou Seja-Lá-O-Que-For o tenha. E pronto.
As cinzas dela
Tu tranquila aí, meu bem, que teu marido aqui ainda tem sangue, nervos e coração. Tô com um dilema, matutando aqui, mas vou resolver isso logo. Tu fica aí, quietinha e sem medo, que as coisas se ajeitam. Hum… O vaso grego, tá lembrada? Vai ser dentro dele, acabei de decidir. Sou muito rápido pra cuidar desses assuntos, tu me conhece. Tu quis comprar esse troço cafona porque combinaria com as almofadas do sofá, foi assim que tu disse, mas no mês seguinte tu trocou a estampa das almofadas, tem cabimento? Agora o vaso não combina com porcaria nenhuma nem tem serventia. Bem que pensei em usar a peça como bebedouro do Pipoca, ou então encher de terra e plantar margaridas, mas desisti. Fique sossegada, nada de terra aqui, que não sou um homem desalmado, ora bolas. Não me esqueci da paúra que tu tinha com a ideia de um monte de terra em cima de ti, por isso mandei te cremar. Agora tu é esse montinho de cinzas e não precisa temer mais nada. Tua última vontade foi cumprida: não vai ter terra em cima do teu corpo mirrado. No máximo, coloco na boca do vaso aquela toalhinha de crochê que tua mãe deu, que é pra não entrar bicho. Assunto enterrado, ops, encerrado.