Diário do comandante do grupo de sobreviventes
Segunda-feira, 15 de março
Cruzamos a linha que tínhamos marcado no chão como limite infranqueável e com isso provocamos esse desastre que nos trouxe até aqui, à beira do abismo. Fomos imprudentes e as consequências não tardaram. Acredito que nada possa piorar. É grande a sensação de que fodemos com tudo. Quase podemos sentir a respiração dos inimigos em nosso pescoço, o bafo quente deles em nossa nuca. Estamos vulneráveis, mas ainda armados e lutando e nos defendendo todos os dias. Abatemos três esta manhã.
Sexta-feira, 26 de março
É hora de levantar e respirar um pouco. Temos que recobrar os ânimos e buscar a cor verde para alegrar as pupilas de todos. Precisamos ver árvores, florestas, bosques, passarinhos piando entre as folhas. Para onde estendemos os olhos só vemos o cinza, a fumaça, o céu preto. Está na hora de nos abraçar e começar de novo. Necessitamos de um pacto entre nós. Sobreviver, para poder viver.
Tenho animado a tropa na medida do possível, quando o tiroteio dá uma trégua. Não está sendo fácil, mas vou conseguir.
Quinta-feira, 2 de abril
Esse tem sido o meu maior erro nos últimos tempos: ignorar a verdadeira natureza do ser humano, que é capaz de produzir o desastre mais inacreditável sobre ruínas já existentes. Não nos contentamos com o ruim, queremos sempre chegar ao pior.
Perdemos o Desidério, ele se deu mal no corpo a corpo com o inimigo. O Anacleto pisou numa mina que estraçalhou seu corpo, tivemos que enterrá-lo aqui mesmo, perto da trincheira. O Negro quase pisou também, mas viu a tempo e conseguiu se salvar.
A comida está perto de acabar. A água também. Todos comemos uma vez só ao dia. Estamos economizando a ração que nos resta.
Aqui o tempo demora a passar. Às vezes parece que nem passa.
Quarta-feira, 15 de julho
Não há mais razão para continuar lutando. Tudo degringolou de maneira que ninguém poderia imaginar. A catástrofe de alguns meses atrás foi somente um prelúdio inocente em comparação com o que ocorre agora. Estou escondido numa cova com uns poucos soldados. Eles resistem com bravura, mas não sei por quanto tempo estarão dispostos. Eles são cada vez em menor número e dia após dia perdem o entusiasmo. Tenho que ser criativo para animar a tropa. Não é sempre que consigo.
Sexta-feira, 17 de agosto
A bravura dos soldados se esfumaçou. A vida deles também. Enterrei um ao lado do outro. Pus um pedaço de tábua com o nome de cada um para identificar quem era quem. Fiquei só. A comida está no limite. Água, só a que está dentro do meu cantil.
O tempo ainda demora muito para passar.
Sábado, 18 de agosto
Esta guerra, qual é mesmo a razão dela? Já não me lembro mais por que tudo começou. Ou como viemos parar aqui. Ou quem nos mandou para cá. Não vejo a hora de voltar para casa, tenho muita saudade.
Domingo, 19 de agosto
Estou só. O inimigo teve tantas baixas quanto nós. Percebo que no outro lado há apenas um também. Já o localizei com a mira telescópica da metralhadora e tenho a cabeça do sujeito no alvo. Sei que ele também aponta sua arma para o meio da minha testa.