DIGNÍSSIMO CANALHA
Pelo presente instrumento, venho dirigir-me a vossa excelência. Com minúsculas e na segunda pessoa, pessoa de segunda que és, mauricinho de nariz empertigado. Tu, que te ocultas, sorrateiro, por trás dessa impecável e pretíssima toga escrota. Tu que recebes aprumado a reverência do povo de joelhos à espera de tuas soberanas e irretocáveis decisões peremptórias. Tu que estás imbuído da divina prerrogativa, intransferível e vitalícia, de deliberar sobre o destino dos homens que habitam o mundo dos vivos, já que o dos mortos foge à tua jurisprudência, instância suprema à do teu Supremo. Tu que reclamas indignamente indignado por direitos inalienáveis e vives na intimidade inescrutável da tua vida privada de práticas inconfessáveis. Tu mesmo, nobre calhorda, que de tanto exercer o ofício de julgar os outros, julgas-te acima dos outros.
Venho oficiar-te, honorável patife, que há mais retidão e honra na palavra espontânea e honesta que brota do coração de um humilde iletrado do que no alfarrábio que sustém tuas áridas, infindáveis, mirabolantes e ordinárias sentenças. As mesmas que apões em papel pergaminho com letras douradas, fazendo-as constar dos anais onde exibes tua soberba grandiloquência farisaica e tua rocambolesca sapiência estéril.
Amealhas com vileza recursos subtraídos do povo injustiçado para manter intacto esse intrincado e indecifrável sistema, tão inócuo quanto iníquo, que qualificas cinicamente de Justiça, a fim de cobrir com aura de magnificência e infalibilidade essa espetaculosa e suntuosa pantomima patética e embusteira que estarrece as legiões dos sem-justiça desse país, mantendo-os sob o jugo do teu julgar.
Cultivaste esse interminável cipoal de leis, decretos, normas, códigos, tratados, regimentos, resoluções, regulamentações, pareceres, dispositivos e medidas provisórias para reservares a ti próprio o monopólio do conhecimento e das práticas a ti outorgadas tautologicamente “por lei”, afastando o povaréu inculto de teu demarcado território. Para que, na mesma medida em que amplias a doutrina do direito, reduzas o primado da justiça.
A chave de tua inoperância chama-se prazo. Consideraste, eminente pulha, que, após décadas de espera, a sentença já foi proferida, independente do transitado em julgado? Abstrais, emérito canalha, a variável tempo sob presunção de que o tempo é uma mera ‘questão de tempo’. Adias, protelas, procrastinas, prorrogas, retardas, demoras, protrais, diferes, pospões, alongas, espichas, espacejas, alastras, esticas, dilatas, intervalas, encompridas, acresces, amplias, expandes, empurras com a barriga. Pois, então, devo informar-te, distinto safardana, que quem aguarda por anos, seja nutrindo a raiva da privação de benesses não fruídas, seja gozando do deleite de penas não cumpridas, já é repositório da sentença, seja esta qual for. Em meio a tantos réus, jurados e testemunhas, apenas um deve ser declarado culpado em todas as instâncias: tu, criatura ignóbil.
Sai da tocaia, egrégio velhaco. Desce desse palácio de letras, capítulos, parágrafos, alíneas, incisos, caputs e cláusulas em que te enclausuras. Cumpre salientar, excelentíssimo pústula, que as cruas ruas, inobserváveis das janelas do palácio que ergueste, sem decurso de prazo, para te isolares da realidade de fato e de direito, estão repletas de malfeitores que levianamente livrastes das masmorras. Não por um sentimento benevolente de perdão ou por uma crença abnegada no poder de recuperação humana, mas por uma ardilosa interpretação das normas vigentes. Delinquentes de toda a espécie a quem remistes da pena, hoje libertos de punição, zombam, sob tua retumbante indiferença, dos tolos que se pautam em princípios e honradez.
Vivem os justos à margem das formalidades legais que queres agrilhoar os cidadãos, a fim de emparelhares todos pelo mesmo nível de calhordice de que imaginas serem, por natureza, dotados. Por certo, espelhando tua maneira de te comportar e de enxergares os homens para necessitarem de tua mediadora e interesseira presença,
Sob o manto do teu venerável ‘estado de direito’, corruptos, patifes, ladrões de todas as espécies ascendem aos postos de direção com a tua máxima leniência, amparando-os com a força irrefutável das brechas da lei, aplicando-lhes impiedosamente draconiana indulgência e intolerância zero. Cobrindo a impunidade com o manto legalista da imunidade.
De quem é a culpa? “Dos legisladores, do governo, da polícia, da falta de juízes, da falta de vagas no sistema prisional, da falta de investimento, da má distribuição da renda, do desemprego, da falta de políticas públicas, dos baixos salários, da alta dos juros, do neoliberalismo, da crise do euro, da colonização portuguesa, da gripe suína, do derretimento das calotas polares”, bradas indignado. Tu, homo vermis, és o único triplamente qualificado como “not guilty” nessa história. Justo tu! “Por falta de provas”, provas.
Todo teu empenho é de não punir. Inocentes ou culpados, pouco importa. ‘In dubio pro reo’, desde que teus honorários sejam quitados ‘in specie’ com correção, exatidão, integridade e… justiça.
E assim, pelos mais variados pretextos, vais libertando das grades todos os poderosos tubarões, reservando os horrores dos calabouços aos despossuídos que não participam do pecúlio que sustenta a devassidão moral que apadrinhas, consagrando esse país como o paraíso da impunidade.
Deixa de hipocrisia. A quem pretendes enganar dizendo que és a fonte da Justiça? Teu ofício é apenas advogar em prol de vermes, devolvendo-lhes em serviços pérfidos o vil metal que banca o suntuoso padrão de vida que ostentas. A verdadeira justiça é o oposto de ti. É tornar o mundo digno, decente, com as pessoas podendo se olhar de frente, sem dissimulações, confiando umas nas outras. Prescindindo de teus sórdidos préstimos.
Justiça seja feita: quem te sustenta, respeitável biltre, são apenas os safados. Crápulas que, dispensando nobres considerações éticas, estudam teus intrincados preceitos e se formam doutores para assimilar os meios legais, penais, constitucionais e amorais de permanecer impunes e qualificarem-se a ingressar em tuas rodinhas infames. Partilharem do papo do cafezinho do fórum. Onde, restritas às indevassáveis paredes que os protegem, rolam torpezas inimagináveis. Tornam-se teus amigos e cupinchas. Uma corporação fechada de rábulas parasitas. Justamente!
Os princípios de retidão e civilidade trazemo-los dentro de nós. Num mundo de justos, tua justiça não se ajusta. Gente honrada entende-se entre si, sem necessitar da tua protocolar intermediação. Bastam os princípios. Quem carece de lei são os que dela vivem à margem. Se para os honrados, é desnecessária e para os bandidos, ineficaz, para os da escória que integras, é verba no bolso.
Data vênia, vai pra p* que te pariu.