Crônicas

Gestuais domingueiros

Inequívoco:

É pleno e gélido outono, o sol perpassa a concentração de nuvens brancas, total unificação de cor, reflexo intacto da luz no rebatedor que se faz teto do dia. Olívia espreguiça e se deixa ficar, é domingo, ela pode ser toda preguiça. O amanhecer vem calmo em quase tudo.

Quase.

Pouco a pouco, as árvores exibem seus galhos desnudos, pelados; as janelas das casas perdem privacidade – e vizinhos levantam-se despreparados para os olhares um tanto desatentos, hoje, das ruas.

Os aromas confundem o hálito azedo do acordar; cheiro de café passado, cheiro de bolo de fubá no forno. O pão recém assado na padaria, ali perto. Alguém passou pelas ruas com um emaranhado de essências: perfume em demasia e teor alcóolico, sinal de um sábado que teima em se concluir. Todas as notas sobem em câmera lenta, uma dança invisível.

Rompem as barreiras de portas fechadas, cortinas, narinas.

Inequivocamente, nem tudo é imobilidade.

Certamente não na arvoreta-menina, solitária, bem na esquina. Encarcerada em um quadrado de terra, limitada à expansão de suas raízes para os fundos do concreto rotineiro e sem vida, seus fartos e imbebes
galhos vão desenhando braços aturdidos e atrevidos. Galhos de parca sombra, a desabrochar flores a partir de botões maduros, generosos e abundantes botõezinhos. É pleno outono. Até os pássaros concluem – para uma felicidade em forma de revoada – que, inequivocamente, presenciam uma das mais belas forças de resistência.

Resistência de vida. De não lamento. De esperança.

Num piscar de olhos, os aromas ao entorno de Olívia, são os mesmos. Ela se demora por entre as cobertas. Olívia pisca, um botão estoura; seus olhos teimam em se abrir, a árvore revela pétalas brancas. Uma flor rosa pende da árvore e se lança ao rés do chão, seis pétalas em formato de coração. As folhagens outonais de todas as outras árvores, verdes adoecidas, ganham nuances de possibilidades. Olívia brinca com o temporizador dos alarmes. O domingo é uma tela verde pigmentada de vida.

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Bia Mies

BIA MIES é carioca da Serra Fluminense, autointitula-se "do mundo" e reflete em sua escrita um olhar sensível sobre a vida do seu "entremeio": cada crônica torna-se uma interação entre o trivial e a reflexão poética, uma tapeçaria de influências e insights. Tece pontes entre arquitetura, urbanismo, artes visuais e cênicas, moda, leituras, cafés, viagens, família, amores, Zeca (seu fiel companheiro de quatro patas), amigos, Itália e "experiências dos usuários", área na qual atualmente se especializa. Cada percepção transforma-se em texto, numa busca exploratória de pensamentos e emoções, através de uma visão pessoal do cotidiano e do extraordinário. Celebra a beleza da imperfeição e convida o leitor a uma jornada introspectiva, onde cada palavra é cuidadosamente escolhida para ressoar e provocar. Como o sopro das vivências que se entrelaçam pelo seu caminho, Bia Mies homenageia quase duas décadas de exploração literária no Crônicas Cariocas.

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