Crônicas Cariocas

  • Custos irrecuperáveis!

    Nossos telefones celulares oferecem dopamina digital 24 horas, 7 dias por semana, aos indivíduos conectados com seus interesses apenas, e alheios ao que acontece ao seu redor. Estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e muita dopamina: drogas, comida, notícias, jogos, compras, sexo e redes sociais.

    A variedade e a potência desses estímulos são impressionantes, e todos somos vulneráveis ao consumo excessivo e à compulsão ao utilizar as redes sociais, sendo que qualquer pessoa pode desenvolver um vício desses.

    Na era moderna, é fácil perceber o problema, porque sabemos muito bem que os celulares, a “internet” e as mídias digitais são drogas potentes cujas baterias podem ser recarregadas todas as noites.

    As redes ativam os mesmos circuitos que as drogas tradicionais, como o álcool, a cocaína e os comprimidos sintéticos. Eles liberam dopamina (nosso neurotransmissor de prazer) no sistema de recompensa do cérebro.

    Quanto mais dopa mais viciante é a experiência. E a consequência disso é o que chamamos de custos irrecuperáveis, de tempo, saúde, dinheiro e uma lista amarga que surpreende os especialistas à busca de soluções.

    A Dra. Anna Lembke, psiquiatra e professora da Escola de Medicina da Universidade Stanford, escreveu o livro “Nação dopamina”, e explorou as novas e empolgantes descobertas científicas que explicam porque a busca incansável do prazer gera mais sofrimento do que felicidade. Ela mostra que o caminho para manter a dopa sob controle é encontrar contentamento nas pequenas coisas e buscar conexão com as pessoas queridas.

    Como prova disso, a Dra. Anna compartilhou diversas experiências vividas por seus pacientes em trechos emocionantes, que são histórias fascinantes de sofrimento e redenção, e que trazem esperança de que é possível transformar nossas vidas e encontrar o segredo do equilíbrio, combinando a ciência do desejo com a sabedoria da recuperação.

    “Navios não afundam por causa da água que está no seu entorno, mas sim como consequência de quem os maneja mal”.

    Não é sobre o que os outros dizem sobre nós que insistimos respirar, é sobre sonhos, os nossos, aqueles que acreditamos serem possíveis de realizar na vida real, e compartilhar com alguém, que tenha os mesmos.


  • O Luto na Visão dos Cães

    O luto, no olhar humano, é o vazio que se instala após uma perda. Uma ausência que ecoa e se faz presente em cada instante de saudade. Mas, se o luto é tão humano, como explicar que o cão também sofra quando seu dono se vai?

    Talvez isso se deva ao mistério do vínculo que une nossas almas às deles. Diferente de nós, os cães não filosofam sobre o que foi ou sobre o que virá, nem se perdem em pensamentos sobre a ausência. E, ainda assim, quando seu dono parte, algo neles se transforma para sempre. Como Hachiko, o cão que esperou incansável pelo dono que nunca retornaria, os cães têm seu próprio e singular jeito de viver a perda.

    Eles refletem nossas emoções, espelham nossos sentimentos, sentem a nossa dor e também vibram com nossas alegrias. Na ausência, os cães absorvem o vazio, percebem a mudança no ar, o silêncio dos passos que não se repetem mais, e o cheiro que gradualmente desaparece. Mesmo sem palavras ou cerimônias, são tocados pela presença que se foi.

    Um cão enlutado pode ficar apático, quieto, perder o interesse pelo que antes o alegrava. Sua conexão com o dono é uma cumplicidade que ultrapassa o toque e a presença física, algo que, de certa forma, transcende. Como uma alma pura, ele sente a perda sem as complexidades culturais ou emocionais que nós temos. É como se o cão soubesse, em sua simplicidade, que algo essencial se perdeu..

    No entanto, assim como nós, os cães possuem uma força de renovação surpreendente. O segredo está em manter a rotina, respeitar seu tempo, e, acima de tudo, não projetar sobre eles as nossas próprias tristezas. Eles não se apegam à dor; para eles, apenas o presente é real, e talvez por isso, gradualmente, eles sigam em frente. Eles não entendem a nossa pena, não precisam de lamentações.

    Diz-se que, para o cão, só existe o momento presente. E talvez isso explique porque, aos poucos, eles reencontram o caminho para a alegria. O luto dos cães não é uma prisão; é uma travessia silenciosa que nos lembra que a dor pode ser abraçada, mas não deve ser eterna.

    Talvez, de vez em quando, ao sentir um cheiro familiar ou uma brisa que traz algo do passado, ele erga o focinho e, em seu íntimo, sorria, sentindo que, de algum modo, ainda estamos presentes. Porque o amor de um cão não se apaga com o tempo ou a ausência; ele persiste, eterno e fiel, como uma chama que nunca se extingue.

    E assim, quando a noite cai e o silêncio domina, ele dorme em paz, com o coração ainda aquecido por aqueles que um dia amou. E nós, de algum lugar, talvez sintamos o mesmo: uma saudade doce, acompanhada da certeza de que um vínculo assim, entre cão e humano, nunca se rompe de verdade. Nessa complexidade de se fazer evoluir, para os cães, cada instante importa, o passado se dissolve na simplicidade do presente. Eles nos ensinam, assim, que amar também é saber soltar. Um novo lar, uma nova rotina, um novo amor… tudo no cão é levado a ser simples.


  • Equilibristas!

    Somos equilibristas! E fazemos isso com muita eficiência e profissionalismo!

    Não sabemos o tamanho da nossa força até que somos forçados, por circunstâncias várias, a viver a vida nas suas complexas contradições!

    Como não falar da vida e dos seus altos e baixos!?

    Na verdade, vivemos entre o riso e as lágrimas, o sol e a chuva, o sabor do tempero e o insosso.

    Vivemos entre dias quentes e dias frios, oscilando agudos e graves, pagando as contas, sonhando os sonhos e seguindo o fluxo!

    Em um momento estamos subindo, subindo… quase voamos!

    No momento seguinte, descemos e descemos… quase um túnel em direção ao centro do planeta! Transitamos entre o silêncio e a lentidão de um lugar remoto e o nervosismo e o caos da civilização! E assim, como perfeitos equilibristas, andamos por um fio, com passos ora leves e ligeiros, ora pesados e trêmulos.

    E assim, como desconcertados equilibristas, estamos sempre por um fio: os compromissos, as urgências, o sim e o não! A eterna fila do pão!

    Com ou sem luz, com ou sem mar, vamos seguindo…

    Com ou sem dinheiro, com ou sem energia, vamos seguindo…

    Na luta intensa de todo dia, escrevemos e apagamos, abrimos e fechamos os olhos diante da profusão de coisas e seres ao nosso redor!

    O grande problema disso tudo é que, muitas vezes, na explosão de sentimentos e momentos, muitas criaturas acabam por cometer o maior erro, o irreparável erro: o de perceber a vida quando já não há mais tempo…


  • Papilas gustativas do viver 

    Na última semana, por ocasião do aniversário de uma grande amiga, me deparei com o desafio de escrever um cartão de felicitação. Não me servia aquele que já vem com a mensagem pronta e só precisamos assinar. Tampouco queria escrever apenas: Parabéns! Saúde e Paz.

    Muito embora essas palavras, por si só, já representem as joias raras da sorte, queria desejar algo a mais. É certo que dependemos da saúde para realizarmos qualquer feito e da paz para desfrutarmos de qualquer situação, mas há que se ter outros requisitos para a magia do sorriso solar acontecer.

    Visando garantir a minha amiga o melhor dos mundos, achei de bom tom incluir a coragem. A vida depende desse impulso, dessa força propulsora que quebra a potência destruidora do medo de errar e de ser quem se é.

    Caprichei na letra e nas palavras para que a mensagem carregasse em si o poder magnético do afeto, da amizade e do pensamento positivo.

    Já estava pronta para assinar quando algo me inquietou por dentro. Tudo estava dito, o novo ciclo seria perfeito, repleto de bons acontecimentos, sonhos e conquistas. Mas, nesses termos, pareceu inverossímil o meu voto de felicidade.

    Necessitava alertar minha amiga de que essa expectativa de sucesso e vitórias infindas era uma arrumação ilusória de belas palavras. Decidi avisar sobre a possibilidade de momentos difíceis, porque a vida é real e um pouquinho injusta, mas para isso temos a esperança, agasalho dos dias frios de sofrimento.

    De imediato, achei indigesto falar de tristeza, decepção num cartão de aniversário… todavia, sem isso também não se experimenta as papilas gustativas do viver.

    Por fim, escrevi:

    “Amiga, que a vida lhe sorria muito, mas se lhe fizer chorar, não lhe falte garras para seguir em frente, lanhando a cara do infortúnio. Nos dias nublados, toque uma flor, abrace uma árvore. Jamais se esqueça: as nuvens carregadas trazem a chuva que rega a terra.”


  • Tirando a máscara todo mundo é fantasma

    Outubro me lembra Halloween, até porque, como uma bruxa legítima, nasci no dia 31 à meia-noite. Bruxas, vassouras, abóboras e todas as figuras fantasmagóricas que povoam o imaginário popular são inspiração para as mais diversas fantasias: esqueletos, vampiros, mulas sem cabeça, ao lado de figuras famosas como o Conde Drácula, Morgana, Cruella, Freddy Krueger e outras encarnações do mal.

    Para as crianças, 31 de outubro é um dia de alegria, pois significa a possibilidade de comer doces sem nenhum policiamento dos pais, por conta da brincadeira de “Trick or Treat”. Esse hábito remonta a uma prática celta do Samhain, uma festa que marcava o fim da colheita e o começo do inverno. Daí o costume de ir de casa em casa pedindo contribuições em alimentos, hoje adaptadas para guloseimas. Reza a lenda que, durante a noite do Samhain, a fronteira entre o nosso mundo e o “outro mundo”, o dos mortos, podia ser cruzada, permitindo que espíritos maus vagassem pela Terra. Por esse motivo, os celtas usavam máscaras para não serem reconhecidos, originando o uso de fantasias no Halloween.

    Esse uso de máscaras como forma de esconder a identidade me fez lembrar de Erik, o personagem criado por Gaston Leroux em seu livro de 1910, que deu origem ao musical “The Phantom of the Opera”, de Sir Andrew Lloyd Webber, um sucesso que encanta plateias até hoje.

    Erik, o Fantasma, que usa uma máscara para esconder sua figura deformada, se tornou um símbolo de amores não correspondidos, mas a mensagem dessa história vai muito além disso. Ela explora uma batalha interior entre dois aspectos importantes de nossa psique: a coragem e o medo, enfrentados pelos protagonistas. Não é à toa que esse musical atrai o público há muitas gerações.

    Do ponto de vista do Fantasma, o medo da rejeição muitas vezes nos faz usar uma máscara para esconder traços da nossa verdadeira identidade. Tentamos ocultar o que escancara nossas falhas de caráter, nossos desejos proibidos, invejas, ódios, frustrações. Acreditamos que ninguém poderá nos amar se tirarmos essa proteção, assim como o Fantasma não conseguia se mostrar à sua amada.

    Do lado de Christine, a reflexão é sobre a coragem de escutar sua voz interior e seguir Erik, seu mentor abrigado nas trevas. Renunciar ao que é fácil, confortável, belo e aceito por todos, representado no musical pela figura de Raoul. Assim como ela, na vida nem sempre conseguimos optar por nossa melhor versão e deixar fluir quem realmente somos, escolhendo o caminho que não será aplaudido, mas que nos fará mais felizes.

    Talvez porque, afinal, tirando a máscara, todo mundo é um fantasma, não é mesmo?


  • Pressupostos e subentendidos

    Boa parte do que o texto significa não se mostra explicitamente. Quando escrevemos deixamos implícitas algumas informações, e cabe ao leitor completar as lacunas.

    Os implícitos são basicamente de dois tipos: pressupostos e subentendidos. Os pressupostos estão inscritos na língua; não há como fugir ao sentido que eles determinam. Já os subentendidos dependem de interpretação.

    Se alguém diz a uma visita: “Finalmente você apareceu”, pressupõe-se que o interlocutor havia tempo não dava as caras; o advérbio que introduz a oração indica isso. Caso ele acrescentasse uma observação do tipo: “Deixou o orgulho de lado”, estaria formulando um subentendido. A ausência do outro teria sido interpretada como soberba. O subentendido sempre envolve um julgamento, um juízo de valor, e por vezes leva à distorção da verdade.

    Um exemplo disso ocorre nesta passagem de “O pagador de promessas”, a conhecida peça de Dias Gomes:

    PADRE Que pretende com essa gritaria? Desrespeitar esta casa, que é a casa de Deus?
    ZÉ Não, Padre, lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz.
    PADRE Estou vendo. E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja.

    Zé do Burro pretende entrar na igreja carregando uma cruz para agradecer a Santa Bárbara o restabelecimento do seu burro Nicolau. Ele é um homem simples, ingênuo, e jamais lhe passaria pela cabeça contestar a ortodoxia cristã. No entanto o padre Olavo interpreta o fato de ele conduzir a cruz como um sinal de heresia. Subentende na resposta do interiorano a intenção de ser um novo Cristo.
    Nos subentendidos refletem-se valores e preconceitos da sociedade. Levei para a classe o seguinte diálogo:

    – Você pretende se casar?
    – Eu tenho juízo!

    Depois perguntei à turma o que se subentende da resposta. Praticamente a totalidade dos alunos afirmou que ela dava entender que só “um doido” se casa. O curioso é que o diálogo também permite que se entenda o oposto. Pode-se interpretar a resposta como uma defesa do casamento, que seria a opção do indivíduo prudente e racional. Por que ninguém considerou esse lado?

    Nesta outra passagem a interpretação ficou mais fácil, pois o que se subentende parte de um dos envolvidos no diálogo:

    – Aquele ali teve sucesso na política.
    – Já sei. Nunca foi pego.

    Está implícita a ideia de que os políticos transgridem a lei.

    Um dos maiores riscos na redação é querer dar aos subentendidos o rigor dos pressupostos. O que se interpreta não pode ser tomado como verdade absoluta. Num texto sobre os novos papéis da mulher na sociedade, um aluno escreveu: “O trabalho da mulher fora de casa prejudica a educação dos filhos, pois ninguém substitui a mãe nessa tarefa.”

    Subentende-se que tal prejuízo possa ocorrer, mas há mulheres que conseguem conciliar as duas funções. O aluno deveria ao menos ter apresentado o seu julgamento como possibilidade. Por não fazer isso, incidiu numa discutível generalização.


  • Mês da História da Mulher!

    Lutar por causas importantes tornam pessoas desenvolvidas e preocupadas com o futuro de todos. Pensamentos racistas, homofóbicos, xenofóbicos, sexistas, misóginos, mantém mentes e comportamentos presos ao Renascimento. Por isso movimentos como o racismo e a misoginia seguem seu próprio código civil descrito na idade média, ou seja, sem sentido em nosso tempo que tem sede de respeito, que deseja se manter moderno e intelectualizado, desenvolvido para os povos que almejam espalhar o respeito e a oportunidade a todos, e não somente aquela casta que preconiza o isolamento e a falta de dignidade aos que pensam no coletivo. Gestos atenciosos sobre esses temas demonstram a qualidade das relações e a dimensão do respeito ao próximo. Como o fizeram os italianos para comemorar o dia internacional da mulher. Eles se presentearam com cachos de pequenas mimosas amarelas. Símbolo que demonstra a força feminina, e as mulheres se presentearam como sinal de solidariedade.

    Na Romênia, esse mesmo dia foi celebrado de um jeito parecido com o dia das Mães, dando motivo particularmente aos homens, do reconhecimento às suas mães, avós, e amigas, entregando-lhes cartões e flores.

    Já nos EUA não foi feriado oficial, mesmo que março seja conhecido como o Mês da História da Mulher; um período para dar atenção às conquistas durante sua trajetória. Naquele dia, capitais sediaram comícios, conferências e eventos de negócios que reuniram debates e lideranças femininas sobre o tema.

    Em oposição a tantas manifestações de acolhimento, encontramos no brasil, uma crítica literária racista que atacou um livro premiado. 

    “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, escritor, professor, pesquisador, e venceu o prêmio jabuti em 2010 com esse livro, onde descreve o racismo e narra que uma desastrosa abordagem policial acabou por matar o pai do personagem Pedro, que sai em busca do passado de sua família e refaz os caminhos paternos. 

    Com uma narrativa sensível e por vezes brutal Tenório traz à superfície um país marcado pelo preconceito, e um denso relato sobre as relações entre pais e filhos. Utilizando como pano de fundo uma frase do livro sobre sexo, a crítica, foi, na verdade, racista. 

    Expôs a permanente atitude descabida contra o negro e sua condição em um país preconceituoso, com pessoas abaladas por inevitáveis fraturas existenciais num processo de dor, mas também com redenção, superação, e liberdade.


  • Os signos da crítica

    Costumo ler em voz alta quando estou em casa. Peguei esse hábito da minha mãe, que todo sábado à tarde distribuía na mesa da sala uma penca de cadernos e livros para corrigir trabalhos, ler e reler textos, planejar as aulas da semana seguinte, tudo em alto e bom tom. Uma resma de folhas em branco e o mimeógrafo aguardavam na estante, ali ao lado. Eu podia destruir a casa desde que não relasse naquela mesa.

    Trinta anos depois, não temos um mimeógrafo e nem uma resma de papel por perto, mas mantenho a cultura familiar da leitura em voz alta que, por acaso, tem dado o que falar. Lia há alguns dias uma crítica literária no sofá enquanto minha esposa fuçava numa das gavetas da cômoda. Em algum ponto da argumentação, ela parou para ouvir, prestando uma atenção quase intimidatória; fiquei inclusive receoso com possíveis tropeços ou gaguejos. Quando cheguei ao fim do texto, ela me perguntou quem era o autor e, logo após a resposta, completou: — É taurino. Encerrou o papo saindo para a cozinha. Dois ou três dias depois, em outra leitura, veio a sentença: — É aquariano. Novamente, assunto encerrado sem mais delongas

    Aquilo não fazia sentido. Sugerir o signo do crítico a partir de uma opinião era bobagem, além disso, desmentia a independência intelectual, reduzia as perspectivas, presumia o futuro, mapeava as questões fundamentais da vida. Impossível, apenas impossível.

    Com certa malícia, busquei, sem ela saber a data de nascimento do crítico alvo do último palpite e, para minha surpresa, estava certa. Sorte de principiante, óbvio. Nada mais que isso. Provaria com facilidade se tratar de um chute bem dado e jamais voltaria a refletir sobre o assunto. Naturalmente, não revelei o acerto para não criar uma polêmica conjugal.

    Passei então a ler textos sortidos de diferentes críticos, querendo pôr à prova essa tal sabedoria mística. Tudo iria se mostrar uma baita coincidência, uma eventualidade, afinal, as questões do Zodíaco são achismos, todos sabemos disso. Mas, como em tudo na vida, há quem diga o contrário — uns românticos, alienados. O estranho é que desde então são seis críticos e nenhum erro.

    Wilson Martins foi decretado pisciano trinta segundos após o fim da leitura, mesmo signo de Otto Maria Carpeaux, decifrado sem hesitações. Álvaro Lins foi revelado sagitariano antes do ponto final, faltavam ainda uns dois ou três parágrafos. O aquariano Augusto Meyer também não demorou a ser descoberto, tampouco o leonino Antonio Cândido. Harold Bloom, por fim, não teve chances porque tinha o mesmo signo da Senhora Leidens.

    Eu não sei se há alguma relação esotérica entre as opiniões e os signos dos críticos. O fato é que agora leio crítica literária aguardando ansioso a sentença do outro lado da sala. Talvez ela esteja trapaceando e tenha até buscado os aniversários dos autores perfilados na estante, talvez eu deva esquecer o assunto antes que me contamine. Por certo, não ficaria bem como um jovem místico tardio, ou como um tardio jovem místico, como queiram. Visto melhor o cinismo com calça jeans e tênis.

    Não quero suprimir as opiniões das pessoas, também não quero tabelá-las com base em gnoses obscuras, mas, como uma experiência sociológico-literária, sugiro ao amigo leitor que balize minha dúvida e participe de um experimento científico de descomprovação: se quiseres, me encaminha tua opinião sobre este texto, seguida da data do teu nascimento. Apenas se quiseres, claro, sem obrigações nem mentiras. A ciência depende da tua sinceridade. Me comprometo a fazer uma leitura em voz alta do teu parecer com o intuito de desmistificar o esoterismo literário que me aflige ou, dependendo do resultado, iniciar uma pesquisa mais aprofundada sobre os signos e a crítica. Espero não chegar nesse ponto. Sei que também não acreditas nessas coisas. Que tal, topas?


  • Nunca iguais, revisitadas

    Assim como as folhas altas nas copas das árvores balançam com o prenúncio de intensas chuvas… tal qual o som de passos ligeiros em direção a um compromisso que estar por iniciar… ou ainda a terceira badalada de uma campainha teatral que, após outras duas de igual duração, alerta os desavisados de que o espetáculo se iniciará, assim é a vida dos recomeços. Nunca iguais, revisitados. E entre tantos reinícios em minha vida ao longo deste último ano, as campainhas, os passos e o vento trazem o Crônicas Cariocas novamente à minha rotina, o acender de uma vela em meio às trevas. O portal, que há 18 anos está colado ao meu corpo, pelo avesso; uma sinfonia interna que faz dançar o coração – e atento ao olhar sobre o cotidiano. É como se eu adentrasse pela porta da frente uma casa que sempre foi meu lar. Pois bem.

    Como em qualquer reenceto, há de se dividir o espaço com certa cautela, nada muito marcante, porém presente: o segurar da pena que vacila ao encontrar o nanquim, trechos sem amarração de uma narrativa base – logo papéis amassados por fora de cestos de lixo. A emoção é enorme. O timing da escrita, não. Em se tratando de time, ou tempo, este que é cada vez mais escasso se mostra faceiro aos olhos inocentes de minha versão quase 3.6. Eu não quero falar sobre o tempo. Não o tempo que se esvai por entre os dedos ao manusear páginas de livros novos, tampouco aquele que não se sente ao deleitar-se com amigos, familiares ou cachorros. O tempo que mais se destaca – e ecoa, como ecoa – é o do barulho dos ponteiros analógicos, o vigia implacável que nos demonstra estarmos sempre por fazer algo, por nos deslocar, por agir – sem tempo para o sentir. O tempo movimento, o tempo espaço, o tempo objeto.

    Assim como a pena está para o nanquim, na correlação da escrita, eu estou para as artes, mero instrumento a serviço de algo maior. Energias que explodem ao se chocarem; o zumbido de uma Bialetti anunciando que o espresso está pronto – reforçado pelo cheiro maravilhoso deste líquido perfeito. Tudo não passa de um chamado de alma. E este é o ponto que só os artistas compreendem. Com a volta do Crônicas Cariocas, a Bia ressurge das cinzas poeirentas, o estojo verde da Olivetti deixa de ser apenas enfeite; neste ínterim, a Núbia vem abrindo novamente as cortinas vermelhas, pelos palcos de teatros e espaços de leituras dramatizadas. Há o retumbar da essência italiana, materializada na figura dupla de secretária de uma Colônia de descendentes e responsável pelo seu Departamento Cultural. Como ainda sobram horas à rotina de microempreendedora individual, uma cadeira no Conselho Municipal de Políticas Culturais é bem-vinda. E, resgatando a minha criança interior, aulas de costura. Processo terapêutico em dia, em dia com os momentos pós pandemia que deixou todos doidos varridos, e a minha loucura particular foi casar no civil e religioso para, obviamente, findado o último grande surto mundial, divorciar-me, não somente de um relacionamento pernicioso, como de uma parte podre de mim mesma. 

    Terapia não é teatro. Mas para dar certo na terapia, o terapeuta não pode por seu juramento numa balança, e escolher como tratar pacientes com base a se estão pagando com o cartão do plano de saúde ou via Pix. Desisti das sessões com psicólogos após muitas tentativas frustradas. Eu prefiro viajar, viajar é preciso, viajar é fazer com que a vida não escape de mim mesma, encontrar o desconhecido, perder-me e encontrar-me ao mesmo tempo. Mas a viagem de 2024, ao invés de envolver o Aeroporto de Antônio Carlos Jobim, como tem sido nos últimos dois anos, envolveu altas turbulências em solo. Após me desfazer da ideia fantasiosa de um casamento que só existiu em minha cabeça – ou talvez nem isso -, tornei-me mãe solo de um recém desmamado spitz alemão. Perdi minha cachorrinha, amor de toda a minha família e praticamente contemporânea a minha entrada no Crônicas Cariocas, passei por mudanças sensíveis em meu escritório, fiz minha segunda exposição como artista luminosa.  Uma homenagem ao meu pai, que nem soube que era para ele, pois, quis o destino tirar sua presença do nosso mundo desajustado. A alma de uma pessoa como a que foi meu pai não merecia mesmo passar pelas provações de um mundo cada vez mais Macunaíma. E se fez um rombo no que era a fortaleza de toda a minha história. E ruiu parte do muro que ainda estrutura a minha família – que seria só de mulheres, agora, não fosse o Zeca, meu pequeno e maravilhoso spitz. Revisitar não significa retornar, mas se por/estar no lugar de um visitante. E como visitante, sem amarras ou destino, me deixo aperfeiçoar itens no rol das atividades econômicas do meu CNPJ, sem acompanhar o ritmo do relógio, ao mesmo tempo que a burocracia do luto e descobertas de malandragens de pessoas próximas vão tratando de escaldar meu carater e visão de mundo. Desencaixotar e encaixotar caixas e mais caixas. Empilhar. Selecionar. Pensar. Pesar. Ter pena do apego, e não. Lembranças em todos os cantos, nos bibelôs e coleções, nas fotografias, cds e discos de vinil, nos móveis, tantos e tão apertados na casa de minha mãe, assinatura da paixão do papai pelas coisas incríveis. O luto é algo inebriante e assustador. Então me cerco das artes, esses aliados, fiéis escudeiros, que tratam de cuidar do meu interior, enquanto o lado externo é moldado pelas aulas de pilates e fisioterapia.

    Voltar é sempre um movimento após, há sempre o antes que não será repetido em sua exatidão. Pintar os cabelos, fazer minhas próprias vestimentas, ajustar minhas predileções gastronômicas, cerca-me das artes e dos verdadeiros amigos – apenas realmente aqueles que se importam. Interpretar coisas ou ideias novas. Aprender. Conhecer lugares e pessoas. Aos poucos, sem me dar conta, lá estou eu a escrever! Um passo, uma campainha, uma rajada de vento e a vida que passa, de novo, sendo vivida.


  • A vida pela janela

    Ver a vida pela janela!

    A janela de casa, com a rua e as pessoas que pintam o cenário de cada dia. Com suas cores e sons! Com seus dramas e tons!

    A janela do carro ou do ônibus e a velocidade de tudo o que se vê na cidade: placas, cartazes, rostos, histórias…

    Ver a vida pela janela!

    E ver, com a pressa dos urbanoides de plantão, num frenesi e caos que não dão a certeza de nada.

    Ou ver, com a calma do poeta, com a atenção para todos os lados e lugares, sabores, odores, enfim, com todos os olhares!

    Assim, como o poeta, vejo a vida pela janela!

    Às vezes, vemos o mar, prolongado, com seu movimento constante, espumas e brilho, mostrando sua força e imponência.

    Às vezes, vemos a avenida e as milhares de histórias que se cruzam nos rostos de todos os que passam. E são aqueles que lutam a luta diária do pão. E são aqueles que procuram o sentido das coisas no meio do turbilhão. E são aqueles que se sentem sozinhos entre a multidão.

    Às vezes, algumas crianças, no colo, ainda cheias de sono, sendo levadas por mães e pais cansados, alheias à cidade e agarradas em seus sonhos e imaginação.

    Às vezes, o breve silêncio do sinal fechado e nenhuma palavra dita ou pensada. Como se fosse um transe! Como se nada fosse…

    Às vezes, o silêncio dos que não mais amam, entrecortado por automóveis ou anúncios itinerantes. Mais um transe!

    Às vezes (e estas vezes não são tão raras), basta um sorriso, um encontro, uma palavra, um mistério, um aceno, um aperto de mãos, um beijo que demora, o fuzuê na esquina, a dança dos jovens… basta que uma destas coisas aconteça, ou a junção de todas elas e… começamos ou terminamos o dia com a certeza do dever cumprido, preparados para o sono dos justos…

    Tão estranha a vida na Terra!


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