Crônicas Cariocas

  • Ilusões

    Surgem como uma pulsada, naquela subida de sangue que invade o cérebro, insufla as veias, tonteia, bambeia as pernas.

    Se fazem presentes no sonho desperto, no pensamento à toa, na dispersão do foco. Se estabelecem, prosperam.

    Na quentura do coração, fermentam. Levain que cresce a cada dia. Da própria farinha imaginária se alimentam. Regadas por nossos sonhos se multiplicam, se agigantam.

    Atingem seu auge, ocupam os vazios, preenchem, inebriam. Esplendor colorido de uma bola de chiclé sabor tutti-frutti.

    Pingue-pongue! A costura da vida alfineta, impiedosa. A esfera estala, murcha. Lá se vão as quimeras com que inflamos nosso balão de ilusões.

    Resta só uma goma indigesta que gruda na nossa cara, perplexa.

  • UMA CRÔNICA PARA ANNE FRANK

    Olá Anne!

    Bem, eu imaginei diversas formas para começar esta crônica e, na verdade, creio que o melhor começo seja agradecer a sua resistência!  

    E eu começo com uma pergunta que você mesma faz: “…por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por que toda essa destruição?”

    O seu diário fez toda a diferença pra mim! O seu diário fez diferença para milhares de pessoas! É um sucesso em todos os lugares do mundo! Acredito que não há um lugar que não conheça a sua história!

    E, voltando às perguntas feitas, o ser humano, nas suas complexidades, frustrações e influências, age de maneira irracional, por vezes, busca a guerra…

    Como você observou muito bem, “há uma necessidade destrutiva nas pessoas, a necessidade de demonstrar fúria, de assassinar e matar. E até que toda a humanidade, sem exceção, passe por uma metamorfose, as guerras continuarão a ser declaradas…”

    Estou escrevendo esta crônica porque, infelizmente, mesmo passado tanto tempo da guerra que você viveu e conheceu, o mundo parece não aprender nunca. No tempo em que estou, bem distante da Europa de Hitler, ainda vivemos com guerras. Pior, os homens maus nunca desistem do poder. Os homens maus não deixam de existir

    Muitos homens maus já passaram desde então, no entanto, neste meu tempo de absurdos, há um homem sem sorriso que definitivamente assusta boa parte de nós. E, não, ele não é da Europa! Ele é o presidente dos Estados Unidos! O nome dele é Donald Trump.

    O mais estranho, trágico, triste, enfim, são tantas as palavras que não consigo escolher apenas uma… O mais estranho é que esse homem parece ter aberto uma espécie de caixa de Pandora. Uma caixa do passado, com todos os fantasmas da Grande Guerra: autoritarismo, intolerância, perseguições, soberba e um olhar de superioridade que você enfrentou e conheceu muito bem!

    Anne! Falo de você para as pessoas! Falo do seu diário e da importância de tudo o que você viveu! E eu fico com esperança quando vejo o brilho nos olhos de todos os que ouvem e se emocionam com a sua história.

    Anne! Esta crônica não é um relato pessimista, mas uma forma de te dizer que é necessário resistir e acreditar nas pessoas, apesar do contrário! Olha que este mundo em que vivo parece virado de cabeça para baixo!

    Temos muitas tecnologias neste tempo, contudo, elas não nos aproximaram, ao contrário, deixaram maiores as distâncias, modificaram as relações e estão roubando de cada um de nós, a cada dia, um pouco do que insistimos em chamar de humanidade!

    Em muitos momentos, quando vejo que os erros do passado se repetem, me sinto anestesiado, confuso, desanimado, mas sei que não posso desanimar! Isso não seria justo com o seu diário, com a sua história ou com a história de tantas pessoas que passaram pelo que você passou.

    Aprendi a resistir escrevendo. Alinhando as palavras, juntando sons, criando sentidos e costurando, em prosa ou em verso, o que importa dizer: a vida e as suas cores! A vida e as suas dores!

    Anne, seu diário atravessou o tempo e chegou ao meu tempo e continua reverberando, atual e tocante, sincero e certeiro, simples, mas verdadeiro…

    Obrigado por ter resistido!

    Este cronista segue resistindo neste tempo de corações duros e verdades descartáveis…

  • Viagem no Tempo

    13 de fevereiro é o Dia do Rádio. Aquele que já foi essencial nas casas das famílias, por mais simples que fossem.

    O pai ouvia as notícias através da Voz do Brasil.

    A mãe encantava-se com as vozes dos heróis e heroínas das novelas de rádio.

    Ah, Albertinho Limonta, como você pôde renegar seu filho em O Direito de Nascer?

    E as mocinhas sonhadoras?

    Encantavam-se com as músicas apaixonadas dos cantores que se tornavam ídolos da juventude:

    “Quero beijar-te as mãos, minha querida
    És o maior enlevo da minha vida.”

    O rádio era um passaporte para outros mundos e, ao mesmo tempo, reunia a família ao redor de suas ondas sonoras. Juntos, apreciavam a música, vibravam com partidas esportivas e acompanhavam programas de entretenimento. Ah, e não se perdia o horóscopo! Na sala de casa, ocupava um lugar de destaque, e os locutores de rádio tornavam-se quase membros da família, de tão conhecidos que eram.

    O próprio aparelho era um símbolo de status. Famílias mais abastadas das décadas de 70 e 80 passaram a ter o rádio vitrola em suas salas e, posteriormente, o famoso três em um, o auge da ostentação.

    Com o tempo, o rádio perdeu seu trono na sala de estar. Pequeno e portátil, deixou de ser um evento coletivo para se tornar uma companhia individual. Depois, a televisão assumiu o protagonismo, e aquele brilho dourado das ondas sonoras foi se apagando no cotidiano das famílias.

    O Dia do Rádio. Não sei exatamente o significado dessa data, mas sei o que ela me traz: uma enxurrada de lembranças.

    Lembrei-me da caixa com brilho de verniz, com os alto-falantes escondidos pela tela entremeada de linhas douradas e, em cujas ondas, eu sonhava com o futuro.

    Lembrei-me do meu pai, no final da tarde, com seu rádio portátil preto, onde talvez ele rememorasse o passado.

    Hoje é o Dia do Rádio. E, entre tantas transformações, ele permanece. Talvez não mais no centro da casa, mas sempre no coração e na memória.

  • O agora é o antídoto da frustração

    Telma acordou cedo para cumprir tudo que havia programado: passear com seu cachorro, ir ao pilates, mercado, banco. À tarde pegar a roupa na costureira e depois tomar um café com Silvia, sua amiga de infância. 

    À medida que realizava o seu cronograma, experimentava aquela alegria fagueira dos que honram as promessas feitas para si mesmo. 

    Telma se encaminhou para o ponto de ônibus embalada pela leveza de não cair nos cambalachos da procrastinação. Tudo resolvido. Tudo pronto. Tudo perfeito. Mal podia acreditar que em trinta minutos estaria com sua amiga de uma vida inteira. Quanto tempo… quanta saudade. 

    Acostumada a dar vazão às emoções, embora sua mãe chamasse isso de ansiedade, enviou um áudio para Silvia declarando sua felicidade com o reencontro que estava para acontecer. 

    — Silvinha, já estou chegando. Tô doida pra te ver. Te amo, amiga!

    Silvia ouviu a mensagem aliviada por não ter desmarcado o encontro com Telma, embora ainda estivesse um pouco indisposta. Pensou em responder, mas estava atrasada, deixou para falar pessoalmente. Queria chegar logo e abraçá-la como nos velhos tempos. 

    Na saída de casa, a dor aumentou. Foram três passos e mais nada. 

    Telma jamais saberá o quanto sua amiga desejou revê-la. 

    Silvia tinha planos para um futuro que a vida decidiu não aguardar.

    Uns vão dizer que Telma não deveria ter criado expectativas para não se decepcionar com o desfecho.

    Outros vão achar que Telma não deveria se entregar tanto às relações para não se frustrar.

    Eu digo que Telma, pelo menos, vivenciou a alegria de esperar pela festa. Ainda que a festa não vá acontecer.

    A vida sem expectativa é um jardim sem flor. 

    Um corpo sem movimento. Um olhar sem brilho. Uma alma sem voz.

    Um texto sem leitor.

    Um salve para todos os corajosos do agora.

  • O CACHORRO ENCADERNADO

    Tenho uma relação antiga com o livro. E feliz. Eu acredito que ninguém é obrigado a ler tudo. O básico de cada um é o resultado de suas predileções e inclinações. Momentâneas ou não, ditadas por tantas coisas que reúnem um pouco de tudo que se chama você. Mutante por natureza, esponja que absorve e que despeja os excessos pelo caminho.

    O olhar muda com o tempo porque é forjado por nossa maturidade. Não ter idade para ler alguém é uma verdade, mesmo que incomode nossa vaidade intelectual. Acontece. As vezes você retorna ao livro mais adiante na sua vida. As vezes ele desaparece pelo caminho.

    Nossa estante de livros, a metafórica quero dizer, não é melhor nem pior do que a dos outros. São nossas escolhas, sem competir com ninguém.

    Na adolescência uns amigos se tornaram fãs do J.R.R. Tolkien e sua saga “O Senhor dos Anéis”.

    Eu descobrira Garcia Marques a partir de “Cem anos de solidão”. Nossos caminhos literários não se cruzavam.

    Eles insistiam em me dizer que eu não sabia o que estava perdendo por não conhecer a Terra Média. Lá em Macondo eu balançava minha rede e suspirava.

    Influências externas podem te empurrar na direção de uma estante. Ou te afastar dela. Mas o que dizer dos estalos que nos chegam de repente? Sabe quando nosso olhar examina a obra e uma voz baixinha nos diz “acho que vou experimentar esse ai”…

    Ser leitor é muito bom.

    Houve uma época da minha vida em que levava, por baixo, uma hora e meia de casa ao trabalho. E para voltar também, não tinha refresco.

    Pegava duas conduções e na primeira, a de uma hora, eu conseguia viajar sentado. Como sempre pegava o ônibus no ponto final, tanto na ida quanto na volta, era tranquilo. E para ocupar o tempo, eu lia.

    Foram mais de seis meses nesse trajeto até mudar de casa. Nesse tempo, Guimarães Rosa me fez companhia. Li “Grande Sertão: Veredas” nessas duas horas diárias de viagem. Lembro até o que eu fiz no dia em que Riobaldo uivou de tristeza. Interrompi a leitura, completamente afogado pelas emoções do jagunço e lancei um olhar perdido na cidade à minha volta. Sertão bruto me cercava. E Riobaldo uivava.

  • Errata celeste

    Os que acreditam na influência dos astros em suas vidas devem ter ficado chateados com Parke Kunkle, professor de uma instituição americana. Segundo ele, “está errada a interpretação dos movimentos celestes usada pela astrologia para determinar os signos de acordo com a data do nascimento das pessoas”. Isso porque os mapas astrológicos, produzidos 3.000 anos atrás, estariam há muito defasados. Com a mudança no posicionamento do eixo da Terra, uma pessoa que se imaginava capricorniana, por exemplo, é na verdade de Sagitário. Um suposto taurino, como eu, pertence ao signo de Áries.  

    Sem querer ser presunçoso, confesso que no íntimo eu desconfiava disso. Sentia certo descompasso entre o meu modo de ser e o desenho do meu signo, que me colocava sob a égide de um touro (bicho grosso e intratável), quando em minha alma pasta um cordato carneirinho. Não exagero se disser que essa foi uma das razões para eu nunca ter dado muita importância aos astrólogos. Sempre confiei mais nos genes e na força das circunstâncias. 

    Imagino a confusão que esse quiproquó planetário está causando na cabeça daqueles que programam suas vidas conforme o alinhamento da Terra em relação às estrelas. Eles têm na cartografia celeste um roteiro que, revelando-se ou não acertado, lhes serve de guia. Alguns a primeira coisa que fazem, antes de sair da cama, é consultar o horóscopo para ver se devem ou não fechar um negócio, fazer uma viagem, iniciar um caso amoroso. De repente vem esse professor e os deixa sem chão, ou melhor, sem céu em que possam ver delineado seu mapa existencial.    

    Não deixa de ser estranho que pensemos que Marte, Vênus ou alguma daquelas constelações distantes tenham a ver com o emprego que devemos assumir, a roupa que devemos vestir ou a mulher com quem devemos nos casar. Crer nisso não tem fundamento, mas para muitas pessoas faz todo o sentido. O mecanismo pelo qual tais crenças lhes parecem coerentes é o mesmo que fundamenta as religiões; explica-se pelo desejo de fugir ao desamparo, à incerteza quanto ao futuro e, sobretudo, ao medo da morte.   

    Ninguém pense que a descoberta de Kunkle vai mudar a crença de quem depende dos astros para conseguir a paz interior. Desde quando se crê em alguém, ou em alguma coisa, com base em evidências racionais? A  razão serve de esteio para o que se conhece, e não para aquilo em que se acredita. O fermento da ciência é o saber; o da crença é a ilusão.

    No máximo os adeptos da astrologia farão um pequeno ajustamento em seus signos – há os que vão continuar lendo as previsões segundo o mapa antigo. Se mudou o lugar das constelações, endireite-se o eixo da Terra, corrija-se o Cosmo. O importante é que, ao acordar, eles possam iniciar o dia com a certeza de que farão as escolhas certas. E, sobretudo, de que alguma força transcendente os protege contra as armadilhas do Acaso.

  • Porque a escola não é só a classe!

    O neurocientista Miguel Nicolelis publicou o livro “O verdadeiro criador de tudo”, onde tratou sobre aquilo que são as criações do cérebro humano (dinheiro, religião, ideologia, entre outras). 

    Esse órgão que deveria ser o centro do universo, desenhou nossa existência e se mantém evoluindo num caminho adverso e sem volta. 

    Como não somos máquinas ou sistemas digitais, nosso sistema nervoso opera em um estado analógico muito oposto ao digital. 

    Algumas pessoas acreditam que podemos aproximar nosso cérebro dos sistemas digitais, mas nunca chegaremos ao ponto ideal, porque a inteligência é uma propriedade de um sistema orgânico, que não foi construído, mas evoluiu em relação ao ambiente e durante o contato com outros membros de sua espécie. 

    Não há nada de inteligente na inteligência artificial, ela é um imenso amontoado de memória que opera através de estatística, e não cria nada, é um grande golpe de “marketing” para o mundo. 

    Os neurocientistas já sabem disso, porque em seu meio científico todos entendem que isso é balela. 

    Porém, essa imersão na lógica digital está alterando fisicamente e funcionalmente a forma do cérebro operar. 

    Na Universidade de Helsinki, os finlandeses estão revertendo o uso de computadores em sala de aula, porque descobriram que os efeitos são mais deletérios do que positivos para o cérebro das crianças.

     Essa história de todo aluno ter um computador é quase um fetiche, foi, na verdade, um grande projeto americano.

    A educação é um processo que você interage para aprender, e o peso da palavra depende muito do seu vínculo humano, social, emocional, com seus professores e colegas. 

    Essa experiência social faz parte da grande força evolutiva que moldou nosso cérebro primata, que é adaptado para o aprendizado em comunidade.

    Na questão educacional, o que realmente pega é o contato humano, a presença de pares numa classe e de um professor presente.

    Porque a escola não é só a classe e a sala de aula, é o recreio, a conversa das crianças, a troca de experiências individuais que passam a ser parte do coletivo. 

    Nós confundimos educação com transmissão de conteúdo, mas se fosse somente isso, poderíamos sentar na sala, ouvir o dia inteiro e decorar. O movimento humano segue rumo a quebra de paradigmas sociais, por isso não invente a desculpa de estar ocupado ao celular, ou computador, ao invés de encontrar novos amigos.

  • Carmen, a faxineira prática

    Os familiares da morta explicam que querem a casa limpa o mais breve possível, já há um comprador interessado. O imóvel precisa virar dinheiro logo e ser dividido entre eles. Perguntam a Carmen se não tem medo de entrar sozinha na residência de uma defunta. Ela responde que deixou o medo lá na terra dela, depois da chacina que matou seu pai e seus irmãos. Que necessita trabalhar, que trabalha desde criança e que não escolhe serviço. Que gente morta não faz mal a ninguém, só gente viva. Que faxina é faxina, não tem segredo nenhum, é só deixar limpo o que está sujo e pronto. Que pede a Deus para nunca lhe faltar trabalho, seja em casa de vivo ou de morto, tanto faz. Que, brinca ela, um leproso nunca reclama de uma ou duas feridas a mais num corpo todo cheio de chagas. Carmen não se mostra disposta a alongar a conversa fiada e trata logo de combinar dia, horário e pagamento para fazer o trabalho. Informa que levará o próprio material de limpeza. Dizem para voltar no dia seguinte, às dez horas.

    Carmen gira na fechadura a chave que lhe deram, empurra a porta de madeira escura e olha o ambiente por alguns segundos. Casa pequena, em dois palitos eu limpo isso aqui e recebo o pagamento, ela calcula. O silêncio lhe agrada. Morte recente, parece que ninguém da família mexeu em nada ainda. Devem ter medo de entrar aqui, pensa a faxineira. É a primeira vez que limpa casa de defunto. Isso é bom, avalia Carmen, não vai ter patroa enxerida e de mau humor vigiando o serviço nem espreitando se a gente rouba alguma coisa. Fecha a porta com o calcanhar. Veste o avental, prende os cabelos, coloca as luvas de borracha e começa a faxina pelo banheiro.

    A falecida deixou meio rolo de papel higiênico no suporte e um tubo de pasta de dente quase cheio em cima da pia. Carmen pega os dois e os guarda no bolso do avental. Os tempos não estão para se ter nojo de nada e ninguém vai notar a falta. Esfrega o vaso sanitário e a banheira com limpa-manchas abrasivo e depois aplica desinfetante perfumado. Passa pano no chão, que brilha. Fecha a porta e vai para outro cômodo.

    Na cozinha, encontra um saca-rolhas e uma garrafa de vinho pela metade sobre a mesa. Põe o saca-rolhas no bolso. Essas coisas custam barato no mercadinho, Carmen avalia, mas se não precisar pagar por elas, tanto melhor. Cheira a boca da garrafa e faz careta: O vinho azedou, que merda! Joga a bebida fora e lava a garrafa. Esfrega tudo com detergente antigordura. Enxuga a pia, recolhe o lixo, limpa o piso e sai.

    Na sala quase sem móveis, Carmen olha para a cortina listrada de tecido grosso. Decide levá-la, deve servir para alguma coisa. Sobe num banquinho para tirá-la do varão, sacode a poeira e a dobra. Pode virar uma toalha de mesa ou uma colcha de cama. Se alguém perguntar, ela dirá que não havia nenhuma cortina na janela. Na pressa de vender a casa ninguém vai reparar nesse detalhe.

    Por último, o quarto da falecida. Carmen encontra uma bonequinha de pano jogada no chão. Guarda-a no bolso do avental, porcarias assim sempre têm alguma utilidade. Decepciona-se ao ver a cama sem lençol e sem colcha. Avalia o colchão: pesado e grande demais, não teria como levar, a família daria pela falta. Suspira e se conforma. Vasculha as gavetas da cômoda à procura do que mais interessa: as pílulas. Essas mulheres remediadas são loucas por remedinhos tarja preta pra dormir, pra acordar, pra ficar alegre, pra ter energia, pra relaxar. Tomam remédio pra tudo, onde será que estão escondidos? Não tem nada aqui, vai ver algum parente já pegou, que azar! Passa o aspirador no piso e um pano com lustra-móveis nas portas do guarda-roupa. Ouve um ruído parecido com um gato arranhando a madeira, vindo de dentro do armário. Abre a porta. Uma menina de presumíveis três anos está encolhida e parece assustada. Carmen olha a criança e tem vontade de pegá-la no colo. Antes, porém, faz cálculos: é bonitinha e parece saudável, mas cuidar dela vai custar um bocado de dinheiro, além do tempo necessário até crescer, criar corpo e conseguir trabalhar. Não valia a pena. Empurra a menina de volta para o fundo do armário e fecha a porta. Termina de tirar o pó e limpar o chão do quarto. Dá a faxina por encerrada e sai para devolver a chave e receber o pagamento.

  • Sobre quando os negócios vão bem (ou nem tanto)

    Não é novidade para ninguém: a Burrice está em alta. Tão em alta como nunca antes. Embora existam os alienados que afirmem o contrário, nenhum argumento contorna a verdade, mesmo sendo complexo e recheado de palavras bonitas, técnicas e pomposas. E a verdade é que a Burrice cresce rápido. E é moda.

    Correndo sério risco de extinção, a Inteligência tem se escondido nas vielas pouco movimentadas e andado, quando necessário, camuflada na multidão, de cabeça coberta e passos ligeiros, se esguelhando entre um e outro, sem dar chances para o azar nem cogitar paradinhas despreocupadas em frente às chamativas vitrines que ornam a realidade. Não tem sido fácil a sua jornada.

    A morada da Inteligência é desconhecida há muito. Ao que tudo indica, nas últimas duas ou três décadas fez seguidas mudanças. Talvez tenha incorporado uma veia um tanto desbravadora e passou a buscar novos horizontes de tempos em tempos, talvez tenha se enfastiado ou assustado com a evolução da concorrente, optando pela reclusão.

    A concorrente, de fato, decolou. Diferente de alguns analistas mais afobados, não acho que seu crescimento foi abrupto, tampouco acredito que tenha sido por acaso. Minha teoria defende a evidência de um planejamento milimétrico e execução perfeita de cada passo dessa evolução. Não impressiona ter construído um império multinacional, aniquilando ou incorporando todo e qualquer corajoso opositor.

    Antigamente a Inteligência estava sempre disponível nos corredores das bibliotecas, mas até ali passou a se sentir ameaçada. Aos poucos foi se isolando e se apertando nos cantos mal iluminados. A chegada de caminhões de best-sellers, livros de autoajuda com palavrões no nome, livros de autoajuda sem palavrões no nome, livros de autoajuda financeira, livros de influencers e livros de religião rasa, diferentes dos antigos, com quem costumava conversar, a deixaram enclausurada e restrita a uma lateral, depois a uma estante, depois a uma prateleira, depois a um quartinho reservado nos fundos e então teve de devolver as chaves. Aquele não era mais o seu lugar.

    Sejamos razoáveis. A Inteligência tem vivido um verdadeiro inferno nos últimos tempos. Sempre que achada é rapidamente trucidada. Nem sequer lhe dão o benefício de um interrogatório. Não há hipótese nem cogitação de anistia. Trata-se vulgarmente de uma condenação sem crime. Há alguns dias, encontrada dentre os livros da biblioteca do poeta Jorge de Lima, foi logo levada à reciclagem, junto com todos os que a acompanhavam. Sem tempo para uma resposta, um argumento ou mesmo a fuga. E assim se desfez. Ninguém ousou se interpor ao martírio.

    Achar os outros poucos exemplares da Inteligência é uma tarefa para Sherlock e Watson, talvez para Poirot quando inspirado ou, em terras tupiniquins, para o elegante Espinosa. Mas também é tarefa complicada e um tanto sem sentido. No mundo do TikTok só faz doutorado quem não sabe rebolar. É o novo real. A Burrice domina os meios de atuação, produção e distribuição. Buscar a Inteligência é encargo difícil, por princípio desmotivador.

    A Inteligência cambaleia escondida enquanto os negócios da Burrice vão bem, obrigado. A Inteligência míngua, fingindo demência em buracos. Não bastasse o extermínio sem prerrogativas nem repreensões de qualquer espécie, a Burrice ainda vende cursos na internet, a custo baixíssimo e, vez ou outra, com um descontinho supimpa. É a fatia que lhe convém, já que todos querem estar com ela e ser como ela. Um exemplo vivo de sucesso, um exemplo perfeito do triunfo, da prosperidade e da felicidade. E, além disso, seguir os seus conselhos é mais fácil que aguentar as nuances, os devaneios, as angústias e os poréns da Inteligência. E, vamos falar sério, quem não gosta de uma recompensa fácil?

  • #011 – Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo

    Quando acordei do coma
    eu já não tinha mais
    a mobilidade de antes.
    Olhei para as paredes
    de vidro do isolamento
    e já não tinha a mesma visão
    de antes
    a mesma audição
    de antes.

    O mundo parecia ser outro.

    Perna e braço direitos
    estavam paralisados,
    dormentes e um sono
    de letargia na noite
    fria com pedras de gelo
    no peito, do lado
    esquerdo, assim penso.

    O mundo já não era o mesmo.

    Dois dedos do pé esquerdo
    haviam sido afetados
    e minhas afeições e
    percepções já não eram
    as mesmas. Fúria de
    não ter sido antes.

    Minha intimidade
    e meus defeitos haviam
    sido expostos como
    escaras do tempo.

    Nunca mais quis tirar fotografias.

    Havia um corpo estranho
    no meu corpo fragilizado
    e uma tela no estômago
    de baixo para cima eu havia
    sido atingido por um golpe
    do destino e várias cirurgias.

    Não tinha mais condições
    suficientes para poder
    trabalhar, sobreviver
    e tive que depender
    de apoio, de cestas básicas
    da vida como um doente
    a quem falta alguma coragem.

    Remédios para a goela grande das farmácias.

    Acordei como quem entra no pesadelo
    e já não podia sonhar acordado ou dentro
    de uma noite normal e previsível.
    O eixo de tudo continuava gasto
    como o eixo do mundo, ANTES.

    Da Essencialidade da Água

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