Crônicas Cariocas

  • O Beco

    Dia frio, chuvoso, cair da tarde. Penido se preparou para a volta à casa, depois de um expediente na repartição que lhe rendera uma tremenda enxaqueca. Não era para menos, pois o contato com o público lhe estressava. Na maioria dos casos ignorava as queixas desses “infelizes”, como bem dizia, que lhe importunavam e canetava um “indeferido” na petição. A têmpora direita latejava. Tomou uma dose dupla dos comprimidos que sempre guardava na gaveta, fechou os olhos por alguns segundos para esperar o efeito do medicamento.

    O barulho dos pingos no vidro da janela aumentou, invadiu seus tímpanos causando um temporal de dor. Lembranças afogadas em poças d’água foram tomando conta de sua mente. Os sintomas da cefaléia cresciam, uma névoa lhe toldava a visão.

    ***

    De paletó, galochas, e guarda-chuva só lhe restava enfrentar o caminho até o ponto de ônibus, caminhando atento ao chão. O percurso era grande, a noite baixava sem luar, deserta, soturna. Começou a tremer de frio e desconforto, sentindo os pés mergulhados na água enlameada que cascateava pelos paralelepípedos irregulares da ruela em frente ao escritório. A cabeça pesava e um reboliço gasoso começou a lhe importunar o estômago.

    Se viu frente à entrada da viela estreita e íngreme que dava acesso à avenida. Sentiu as pernas bambalearam. Sempre teve maus pressentimentos em relação a essa viela tortuosa, furtiva.

    Pelas paredes molhadas, o reflexo dos raios pipocando no céu formavam figuras fantasmagóricas. As criaturas bruxuleavam a cada rajada de vento e aqueles seres aprisionados, emparedados em sua mente, sopravam lamúrias, blasfêmias, ameaças.

    A ruela tinha uma curva fechada e dali se deparou com um fim de linha – a viela havia se transformado em um beco sem saída.

    Viu se aproximarem as criaturas que se despegaram das paredes, e a elas foram se juntando outras, e mais outras que o alcançaram. Não tinha para onde fugir, se esconder.

    Esse círculo de algozes com olhos ameaçadores, bocas peçonhentas, corpos desformes, desferiam golpes em sua cabeça. A cada machadada, evocavam uma das injustiças, descasos, desrespeitos, ilegalidades, por ele cometidos.

    ***

    Banhado de suor, sentiu uma mão lhe sacudir os ombros.

    — Penido, que está a fazer aí cochilando? Não vê que a fila está imensa atrás do balcão?


  • Yoga com cães: uma prática que transforma vínculos e promove o equilíbrio

    As relações entre humanos e cães se fortalecem a cada dia. O cão, há muito tempo, deixou de ser apenas um amigo fiel e agora ocupa um espaço fundamental na vida das pessoas. Nossa felicidade ao lado dos pets parece estar ligada ao convívio em todos os aspectos. Não queremos mais que nossos cães fiquem longe de nós; em qualquer lugar que uma pessoa vá, há sempre um cantinho reservado para receber seu amigão. Mas a pergunta que se impõe é: a sociedade está realmente preparada para esse convívio?

    Nesse contexto, a busca por atividades que promovam o bem-estar físico e emocional tem crescido consideravelmente. Uma tendência inovadora está conquistando o coração dos amantes de animais: a prática de yoga com cães. A Escola Lobatos foi uma das pioneiras a reconhecer esse movimento e a implementar essa prática em seu espaço de ensino. A yoga transcende a mera atividade física; é uma oportunidade única de fortalecer os laços entre humanos e seus cães, além de oferecer benefícios significativos para ambos.

    A Prática do Yoga com Cães

    Conhecido como “Doga”, o yoga com cães combina posturas tradicionais com a interação e a presença do animal. A proposta é criar um ambiente em que tanto o humano quanto o cão possam relaxar, alongar-se e se conectar. Nossas aulas em grupo são acompanhadas por professores experientes, garantindo segurança e tranquilidade durante a prática.

    A Experiência de Praticar Yoga com Cães

    Ao participar de uma aula de yoga com cães, somos guiados a conectar nossa respiração e a nos concentrar no momento presente. A presença dos cães torna o ambiente mais leve e divertido, promovendo um espírito genuinamente colaborativo.

    As aulas geralmente começam com alongamentos suaves, seguidos por posturas que permitem que os cães se juntem, seja deitando-se ao lado do dono ou preso à guia. O foco não está na perfeição das posturas, mas na experiência compartilhada e na alegria de estarmos juntos.

    Entre Conosco Nessa Jornada Transcendental

    A prática de yoga com cães é muito mais do que uma atividade física; é uma celebração do amor, da amizade e da conexão. Em um mundo onde a correria do dia a dia muitas vezes nos desconecta, encontrar tempo para se conectar com nossos animais de estimação é essencial. O yoga com cães nos convida a parar, respirar e apreciar o momento presente, lembrando-nos de que a verdadeira felicidade reside nas pequenas coisas.

    Venha fazer parte dessa experiência única que transcende os limites do cotidiano. Junte-se a nós para descobrir a harmonia e o bem-estar que a prática de yoga com cães pode proporcionar. Cada aula é uma oportunidade de aprofundar os laços com seu parceiro canino, enquanto você se conecta com o seu interior e encontra a paz em meio ao movimento e à alegria.

    Acredite na transformação que essa prática pode trazer para sua vida e a do seu cão. Entre conosco nessa jornada transcendental e permita-se viver momentos de pura conexão, amor e crescimento. Estamos ansiosos para compartilharmos essa aventura!

    Benefícios para os Humanos

    1. Redução do Estresse: A prática de yoga é amplamente reconhecida por suas propriedades relaxantes. Ao incluir os cães, que são fontes naturais de conforto e amor, a experiência se torna ainda mais eficaz na diminuição do estresse e da ansiedade.
    2. Conexão e Vínculo: O yoga com cães fortalece o relacionamento entre o humano e o animal. A interação durante as posturas, os olhares trocados e os momentos de carinho são essenciais para aprofundar essa conexão.
    3. Saúde Física: As posturas de yoga melhoram flexibilidade, força e equilíbrio. A presença do cão, que muitas vezes participa ativamente, traz um elemento lúdico e divertido à prática.
    4. Socialização: As aulas em grupo oferecem uma oportunidade de socialização, não apenas para os humanos, mas também para os cães, que podem interagir e brincar com outros animais.

    Benefícios para os Cães

    1. Exercício Físico: Embora o yoga seja uma prática suave, os cães também se beneficiam do movimento, essencial para manter um peso saudável e promover a saúde cardiovascular.
    2. Redução da Ansiedade: Cães que participam dessa prática podem se tornar mais calmos e equilibrados, pois a atividade proporciona uma sensação de segurança e relaxamento.
    3. Estimulação Mental: A nova experiência estimula a mente do cão, que aprende a se comportar em um ambiente diferente, fundamental para seu desenvolvimento e bem-estar.
    4. Socialização Canina: A interação com outros cães durante as aulas proporciona uma socialização importante, ajudando os animais a desenvolverem habilidades sociais.
  • Conteste ideias, não pessoas

    Muitas vezes, ao argumentar, o redator deve contestar um ponto de vista diferente do seu. É preciso cuidado ao fazer isso. Quando a opinião a ser contestada vai de encontro a valores ou crenças, ele corre o risco de deixar de lado as ideias e investir contra as pessoas.     

    Um exemplo: numa redação sobre “Nível cultural e opção religiosa”, apresentei no suporte o fragmento de uma entrevista com Richard Lynn. Nessa entrevista o pesquisador britânico afirma que os indivíduos inteligentes são mais propensos a se tornar ateus, pois têm acesso a teorias alternativas de criação do mundo. Diz também que no Brasil, devido à miscigenação, há menos ateus e mais religiosos.  

    Um dos alunos tentou contestar o ponto de vista do estudioso dizendo que “essas duas afirmações estão totalmente equivocadas, ele com certeza não sabe nada sobre religião.” Afirmou isto sem explicar em que residiria o equívoco do pesquisador nem por que Lynn, uma autoridade no assunto, não saberia “nada” de religião.  

    Juízos apressados e genéricos não demonstram inteligência, mas birra e intolerância. Dão a entender que o emissor, tomado pela emoção, não está disposto a refletir, debater, avaliar os argumentos do outro. Há neles um predomínio quase que exclusivo dos afetos, que são um obstáculo ao discurso racional.

    Existem maneiras mais inteligentes de demonstrar que não se concorda com as ideias ou as atitudes de alguém. Contestar pessoas, além de ineficiente do ponto de vista argumentativo, constitui o primeiro passo para a intolerância e o preconceito. É o que se vê neste fragmento de uma redação sobre o caso Bruno: “Eliza Samudio não foi apenas vítima. Ela teve o que merecia. Quis dar o golpe do baú e acabou se dando mal. Ela deve ter importunado tanto a vida do ex-goleiro que ele não teve outra saída.”

    É fácil perceber nessa passagem que a precariedade dos argumentos decorre do propósito de julgar a vítima. A afirmação de que Eliza “quis dar o golpe do baú” e “deve ter importunado tanto a vida do ex-goleiro” não se baseia em fatos; é mera presunção. E, mesmo que fosse verdadeira, de modo algum justificaria o que se fez com ela.


  • K-Pop apresenta Tom Jobim

    Respeito muito a ideia de que cada geração tem sua música. Nem sempre concordo com o que é tocado, já vou avisando. Mas respeito.

    Em outro momento, volto a falar sobre música geracional, mas confesso que meu respeito é movido menos por qualquer elevação espiritual e mais pelo medo de ser apedrejado em praça pública. A execração na ágora me arrepia; ser apontado nas ruas é meu pior pesadelo.

    Mas, voltando ao que interessa: a música, e não as minhas fobias. Minhas filhas seguem o padrão, e para elas, K-Pop é sinônimo de música.

    Como pai, fiquei curioso para saber do que se tratava. “É música pop coreana”, me explicaram e completaram: “Tem J-Pop, que é japonesa; C-Pop, a chinesa…”. E eu, engraçadinho, quis completar com B-Pop, a brasileira, mas elas logo me cortaram: “Não é nada disso”. E fiquei calado, segurando o riso.

    Existem grupos de K-Pop masculinos e femininos, todos super jovens. Elas preferem as meninas, e eu achei que eram todas coreanas. Fui repreendido: “Não, pai, nem todas nasceram na Coreia do Sul”, me cortaram elas de novo. “Asiáticas, então?”, rebati. “Também não, a Rosé é da Nova Zelândia.” Balancei a cabeça, sem saber o que dizer.

    Elas são fãs, ou melhor, k-popers. Por elas, já fui ao cinema ver um filme com o encerramento da turnê mundial do Black Pink. Cenas dos diversos shows, das moças nos bastidores, e muitas músicas perfeitamente dançáveis. Sim, do alto dos meus 59 anos, vejo que o balanço delas é bom. Ponto para elas.

    Por isso, qual não foi minha surpresa ao ser brindado por uma das minhas filhas com a informação de que “Garota de Ipanema” havia sido gravada no mundo K-Pop. Em uma pesquisa rápida, descobri que a música é comum no repertório dos grupos de K-Pop. Achei ao menos umas três gravações distintas.

    Mas a informação de que K-Pop gravara Tom e Vinicius veio acompanhada de: “Quer ouvir?” Prontamente, concordei e qual não foi minha alegria ao escutar a gravação feita pelo Tom Jobim em um CD de 1987!

    Suspirei ao volante e escutei minha outra filha falar baixinho: “Olha a cara de relaxado do velho”…


  • Quando um amigo me visita

    Amigos. É assim que os chamo. Caracterizam-se por exalar nítido cheiro de afeto. Dessa nitidez brotam o contorno de seus ombros, seu nome, suas palavras e gestos, sua presença, mesmo quando já não estão perto de mim. São o contrário da pedra dura. São o revés do espinho. São o oposto do metal cortante. Gosto de pensar neles como esponjas com formato humano.

    Eis que um deles chega à minha casa. Aperto sua massa corporal entre meus braços e fico feliz por me sentir um dos seus. Peito com peito, calor compartilhado, olhar terno indo e vindo. “João!”, ele exclama. “Dalton!”, eu exclamo igual.

    Assim que começamos a conversar, a linguagem ganha corpo e sentido em torno de nós. Repartimos, como pão, a luz do dia em dois. Falamos de literatura, nosso assunto predileto. Falamos de poesia. Falamos de amigos comuns. Eu o convido a um pássaro, ele retribui com o balançar de um ramo seguro de árvore, perfeito para um ninho. Pergunto-lhe sobre o mar, que há tempos não vejo, e sobre o sol nele refletido. Ele me pede que fale das montanhas e do verde que há no lugar onde moro agora. A distância nos aproxima, a saudade nos irmana, o desterro nos mimetiza.

    A tarde escorre com centenas de lembranças e cheiro de comida. Depois que nos despedimos, acompanho com o olhar sua figura se afastando. Comprovo nesse instante que metade de mim vai com ele, que metade dele permanece comigo.


  • Mesmo instante fugaz!

    Especialistas e pensadores debatem quais são os dilemas acerca da passagem dos anos. O documentário “Quantos dias. Quantas noites” abraça a conexão humana com a idade e o tempo desde o aumento da expectativa de vida até as desigualdades que envolvem esse tema. 

    O longa de Maria Farinha Filmes, dirigido por Cacau Rhoden, realiza um profundo mergulho nos propósitos de nossa existência no planeta, e lhe faz refletir o que realmente tem valor para se preocupar nesse exato momento.

    Drauzio Varella “considerou que se você transformar sua vida num vale de lágrimas no qual submerge de corpo e alma, estará tornando-a uma experiência medíocre. Julgar que aos seus 80 anos, seus melhores momentos foram aqueles dos 15 aos 25, é não levar em conta que a memória é editora autoritária, capaz de suprimir por si as experiências traumáticas, e relegar ao esquecimento as inseguranças, medos, desilusões afetivas, riscos desnecessários e as burradas que fizemos em nossa tenra época.

    Nada mais ofensivo para o velho do que dizer que ele tem “cabeça de jovem”, isso é considerá-lo mais inadequado do que o indivíduo de 20 anos que se comporta como criança de 10″.

    A melhor idade é aquela que lhe traz qualidade em um determinado momento, e não somente na velhice. Quanto mais cedo você construir seu melhor capital social de amigos e parentes, sua base de satisfação se tornará sólida e larga, bem antes daquele instante que vais necessitar de um ombro como apoio à seus passos doloridos.

    O curioso é que a vida de uma pessoa se encerra somente quando morre aquele que falava dela, e que até então as memórias do que ela viveu ainda são lembradas em falas curtas e incompletas. Por isso, nada mais razoável fazer se valer da presença desse indivíduo em sua vida, e demonstrar o valor e suas habilidades únicas em qualquer época de sua curta existência.

    “Os sábios geralmente morrem loucos, os tolos morrem sufocados pelos conselhos. Embora muitos morram de tolhices, outros tantos nem começaram a viver.” (Antônio Abujamra)

    Aprenda a andar mais perto dos jovens, eles trazem novas ideias e formas de conviver diferentes nesse mesmo instante fugaz, por vezes mais leve, e assim lhe oportunizam sentir melhor no mesmo momento por estar envelhecendo, e não aborrecendo. A dor passa, mas a beleza permanece.


  • À Criança

    Não deixei de brincar pelo medo de cair, nem de sorrir depois de receber um “carão”.

    Não deixei de assistir a desenhos por perceber que estava perdendo tempo em frente à TV.

    Não deixei de falar com meus pais sobre como foi meu dia, mesmo que para eles fosse apenas um dia qualquer.

    Não deixei de me enturmar, mesmo percebendo que não era bem-vinda.

    Criança não tem filtro. Por vezes, ouvimos que as crianças são páginas em branco que precisam ser preenchidas com uma vida idealizada pelos pais. A gente só entende o “ser criança” observando uma.

    Na beleza da sua inocência infantil, a gente é quem aprende, em vez de ensinar.

    Embarquei na decoreba das tabuadas e na escrita torta no quadro de giz. Mal sabia eu que, aos pedidos de biscoito recheado e à vontade de não mais largar minha amiga da escola, não existia comparação nem competição; a gente apenas queria passar de ano e desejava que o recreio não acabasse.

    A palavra futuro era um palavrão que aparecia no livro de português nas conjugações dos verbos.

    Tínhamos de distinguir bem o que era o futuro do pretérito, ou futuro do presente. E o que dizer do pretérito mais-que-perfeito? Sempre achei bonita essa composição de palavras, mas, ao pé da letra, existe um passado mais-que-perfeito?

    A vida podia ser simples, mas profunda. Não havia artifícios; apenas tudo acontecia naturalmente. O medo vinha, mas bastava fechar os olhos bem forte e se cobrir com o lençol para que tivéssemos um mundo só nosso, na nossa imaginação fértil.

    Deus quis que a fase mais feliz fosse a infância, para que entendêssemos sobre a pureza, dependência, restauração, lealdade e amor incondicional.

    Hoje não é um dia de tributo ao Peter Pan, mas quem sabe a gente aprendeu mais na idade em que tudo era uma brincadeira, onde nada era tão sério, a não ser o amor desmedido dos pais e a preocupação deles ao perceber que não íamos bem na escola, sabendo que só queríamos brincar e deixar o dever pra lá.


  • Voltemos

    Em 2023, o Crônicas Cariocas tirou um período sabático. No mesmo ano, praticamente no mesmo período, foi a minha vez, o momento de – mergulhado (ou afogado mesmo) em outras páginas da vida – me distanciar um pouco dos periódicos. Como um legítimo casal, demos uma pausa e saímos juntos para o recesso.

    Porém, o tempo passa e é necessário calçar a botina outra vez. Em nova situação, retorno à cronicidade que estava de férias e da qual sentia falta. E, tenho certeza, foi com saudades dos seus autores e leitores que o portal voltou, de nova cara e a todo vapor. Saudades que leitores e escritores também nutriam pela revista, que, completando 18 anos, ostenta o título de “maior portal de literatura do Brasil”. Não é para qualquer um.

    E, dessa forma, volta o Crônicas, sempre carioca e, mais ainda, brasileiríssimo. Como tal, sinto-me em casa. Afinal, torcedor do Vasco, amante de samba, leitor de João do Rio e cronista, tenho um quê de carioca, é ou não é? Assim como o Crônicas Cariocas tem uma boa dose de paraibano, a começar pelo seu editor, passando pelo mestre Chico Viana. Com estes e com outros tantos, reencontro-me nesta bancada.

    Carioca, paraibano, pernambucano, mineiro, paulista, um pouco disso tudo há. E o que se procurar, achará. Pois o que ele mais tem – e toda boa crônica é assim – é de universal. Em cada esquina do texto, topamos com todas as esquinas do mundo e com todo o coração que pesa na terra. Uma vez que a crônica é universal, daquela universalidade da experiência humana, que se encontra e é acrescida em cada linha lida. Aqui, ali ou acolá, que a crônica esteja em nossos peitos e mentes, é aí onde ela deve estar.

    Mas deixemos de divagação, rufem os tambores. Cidadãos do mundo, amantes das letras, vivos e viventes, avisem a todos ou a ninguém: estamos de volta.


  • Nós que aqui estamos…

    Está se aproximando o Halloween e, com ele, o momento de brincar com algo que nos assusta. Mesmo que não se leve nada a sério, entrar na brincadeira, se fantasiar, é ter contato com figuras fantasmagóricas, com o objetivo de causar medo. Assumir a identidade dessas criaturas é uma forma lúdica de extravasar a face maligna que, de certa forma, está presente em todos nós. Aquele território obscuro do mal que nos habita.

    Me chama a atenção que as representações figurativas do mal venham, na maioria das vezes, associadas à morte. Talvez porque, na cultura ocidental, consideramos morrer algo negativo, a passagem para o indefinido. Seja para os que acreditam que não há nenhum outro plano de existência depois da morte, seja para as pessoas com alto grau de crença na vida eterna, ou mesmo entre os que acreditam na reencarnação, não há certeza do que nos espera do outro lado.

    Não por menos, o Dia das Bruxas antecede o Dia dos Mortos, como se a brincadeira de se vestir de alma penada por um dia fosse uma forma de se preparar para encarar a passagem para o outro lado, no dia seguinte.

    Nessa sequência comemorativa do final de outubro, o Dia dos Mortos é reverenciado com visitas aos cemitérios, e outros rituais. As pessoas reagem de diferentes formas à perspectiva da morte: algumas a encaram de uma maneira suave e natural; outras se apavoram, não podem nem ouvir falar nessa palavra; e há aquelas que cultuam esse momento, seja de pessoas próximas ou mesmo desconhecidas e, como carpideiras, aproveitam para liberar lágrimas de outras emoções reprimidas.

    Sem entrar no mérito de qual seria a melhor maneira de lidar com a passagem para a morada eterna, creio que qualquer pessoa evita pensar em quão próxima ela está.  Por isso mesmo, ao ler esse “convite” colocado no portal de um cemitério, dei uma risada, confesso, um pouco nervosa.

    Nós que aqui estamos, por vós esperamos.


  • Evite o abuso do verbo “fazer”

           — O que o músico faz em comum com o sapateiro?

           — Sola.

           No diálogo acima há um jogo de palavras que se apoia na homonímia da palavra “sola”. Ela é verbo e substantivo. Significa, no primeiro caso, o ato de “executar um canto ou solo”. E no segundo, a “sola do sapato”.  

         O jogo de palavras só foi possível graças ao emprego do verbo “fazer”. Ele significa “produzir, confeccionar” no que diz respeito ao ofício do sapateiro (“sola”, ou “solado”, é mesmo o que o sapateiro faz). No que tange à atividade do músico, “fazer” não tem sentido próprio; substitui o verbo “solar”. Ou seja: é um verbo vicário.

          Vicários são os termos que aparecem no lugar de outros. Pronomes, numerais, advérbios (sim e não) e o verbo “ser” também desempenham esse papel. Veja alguns exemplos: “Pedro desistiu de concorrer a uma vaga para medicina. Ele não tinha esperança de passar”, “Veio acompanhado de um irmão e um primo; o primeiro era mais educado do que o segundo”, “Você gosta de cinema? Sim (ou seja: gosto)”, “Se desistiu, foi porque não teve o estímulo da família (quer dizer: “desistiu porque não teve o estímulo da família)”.

          O verbo “fazer”, seguido ou não de pronome, pode substituir qualquer verbo de ação da língua portuguesa. Uma pergunta como “O que você faz?” admite como respostas frases do tipo: “Estudo”, “Construo prédios”, “Organizo eventos” etc. “Fazer” toma o lugar de todas essas ações.

              A amplitude semântica desse verbo pode levar a abusos no seu emprego. É quando, em vez de empregar uma forma verbal específica, usa-se “fazer” seguido de substantivo. Eis alguns exemplos retirados de redações: “Decidiu-se fazer a votação de duas propostas bem especiais”, “É preciso fazer uma avaliação honesta do que está ocorrendo no País”, “O governo precisa fazer uma sondagem na opinião pública”.  

              Devem-se evitar essas construções perifrásticas. O texto ganha em economia e expressividade quando elas são substituídas pelos verbos correspondentes. Por que não dizer “votar duas propostas” “avaliar honestamente” ou “sondar a opinião pública”?  Além de ter mais energia do que o nome, o verbo designa diretamente a ação. 

              Há casos em que o conjunto “verbo mais substantivo” é pertinente (como em “fazer um levantamento”), mas na maioria das vezes ele afrouxa a expressão.


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