Crônicas Cariocas

  • A nossa vida dos outros

    Queremos mais que uma vida. Queremos viver várias vidas. Desejamos ser piratas, mouros, cantores famosos, astros do cinema, reis e cavaleiros. Desejamos ser o outro e nunca nós mesmos. Não reparamos no espelho o nosso rosto… Em que espelho ficou perdida a minha face? Deixamos o tempo passar. Deixamos nossas coisas para deslumbrar outra vida, outras vidas. Nos assustamos depois com o que vemos: velhice.

    O pior de tudo é quando nos metemos na vida do outro. Somos os donos do conhecimento. Entendemos todos os males e problemas alheios e não sabemos resolver os nossos.

    No entanto, possuímos apenas uma única e delicada vida. Se há ou não há aventuras ou tesouros, grandes batalhas ou fantásticos enigmas, não importa. Importa a vida. A nossa.

    É cotidiana e tributável e a mesma e a mesma e a mesma continuamente? O que fazer? Somos humanos. Somos falhos. Somos loucos e controversos. Somos o próprio conflito e o próprio caos. E quando amamos, tudo piora. Tudo alcança dimensões maiores e mais dramáticas. E morremos sem morrer. E perdemos e ganhamos e continuamos a jogar seja qual for o jogo. E é assim e sempre será. Estamos vivos e este fato, por si só, possui um valor incalculável.

    Queremos outras vidas, mas temos uma, uma só para gastar e para amar e para chorar. Não percamos tempo.

    O que se há para viver, viva. O que se há para gastar: gaste. O que se há para amar: ame. O que se há para chorar: chore. Tudo no seu tempo…

    Encontre-se e perca-se e deixe-se levar. Aprume-se, endireite-se e siga o que há de significante. Veja ou não veja. Sinta ou não sinta. Escreva ou leia ou faça os dois ou nenhum dos dois. Faça o que é importante para a sua vida.

    Queremos mais que uma vida. Queremos viver várias vidas. Queremos viver a vida dos outros.

    No entanto, a melhor e mais valiosa a ser vivida, definitivamente, será a nossa…


  • Só se vive no agora

    Num almoço animado com as amigas, um engasgo rasga o tempo entre o vivido e o viver. O ar não passa pela garganta, os olhos arregalam diante da impossibilidade da salvação. Um ruído no peito anuncia o desengonçar dos segundos, a fragilidade do devir. Tento tossir, não consigo. O que parecia abundante se torna rarefeito. O ar não entra, não sai. Meu olhar aterrorizado de desespero encontra o olhar pronto da amiga médica. Uma manobra feita.  Nada. De novo, nada. Mais uma vez. Tento. Tento. Ouço meu nome entre pedidos de calma. Alguém me abraça pelas costas. Me aperta. Me sacode. Penso no sorriso do meu filho. Nas pessoas que eu amo. Que seja assim a despedida. Que me amparem as melhores memórias.

    O ar volta, a vida abraça, a morte se vai. 

    Uma alegria faceira dança em meus lábios. As cores retornam aos seus lugares, os sonhos se arrumam, mais uma vez, nas gavetas do pensamento.

    Uma certeza ordinária me agarra: sobrevivi!

    A obviedade corpórea desses feitos (respiro, enxergo, ouço, falo, ando) esconde no cotidiano um segredo cruel: a qualquer momento o sempre pode decidir partir.

    Hoje, por sorte, bênção ou privilégio, ele decidiu continuar a meu lado. Então, que me acompanhe no ensaio da minha escola de samba.

    O sempre só existe no agora!


  • A Troca

    Na quietude da noite, em meio ao escuro do quarto, eles iniciam uma conversa.
    Uns indignados, outros seguros de si, e alguns, incrédulos.
    Como todos a conhecem, não poderia ser diferente.
    —  Naturalmente, diz o preto, eu me
    garanto; vou com ela aos mais diversos lugares, do escritório às noitadas, restaurantes e bailes. Comigo ela fica tranquila, sabe que não sou inconveniente.  Dou segurança e conforto. Portanto, serei o último a ser trocado ou nem isso, podem apostar!
    — Querido, presta atenção!
    Sabemos o quanto você a atende  e, por isso, acaba sendo o preferido. Mas não  pense que é pela sua cor.
    Eu por exemplo!
    Também vou a todos os lugares, sou seguro, discreto e tudo mais.
    — Alguém me nota?  Só se for para perguntar onde ela me encontrou. E suas amigas ainda dizem: com esse não tem erro! A cor não é o ponto da questão, já que sou considerado pardo.
    — Verdade! eles dizem, ao mesmo tempo.
    — Eu não sei de nada, pois sou a companhia certa dela para irmos em casamentos, batizados e ocasiões especiais. Estranho seria se não fosse assim. Só os brancos me entenderão!
    Eles estavam ali, no quarto dela, discutindo, buscando entender o que havia.

    Tudo aconteceu muito rápido.
    Há pouco tempo, ela ficava dois ou tres dias em casa, resfriada talvez; aos finais de semana ia à praia, ou então apenas descansava em sua rede com os pés descalços, lendo um livro. E eles permaneciam tranquilos a aguardando.
    Depois, ela passou a quase não sair mais de casa. Separou peças do guarda roupa, colocou em sacolas, etiquetou, limpou gavetas, caixas de quinquilharias e foi arejando o seu quarto.
    Na manhã que a amiga foi buscar as sacolas de doações, eles entenderam tudo.
    Seriam descartados!
    E essa foi a razão da surpresa e da conversa noturna.
    — Ela não nos traiu, disse o preto.
    Mesmo quando trouxe para casa os baixinhos disfarçados, marrentos e cheios de si, ela nos revezou entre eles.
    — Embora cada vez menos nos procurasse, um deles resmunga com um muxoxo.

    Nada mais havia a ser dito.
    A discussão terminou, a Reflexão se impôs e disse:
    — Imaginem como não deve ser fácil para ela nos deixar ir embora.
    Somos amados, bons, fortes e de qualidade. Ainda podemos ser úteis e
    parceiros de outras mulheres.
    E ela?
    O Amor responde:
    — Fizemos parte da sua vida e amar significa deixar espaço para o novo.
    Nada é descartado ou trocado. Nem coisas e nem pessoas.
    Ela está bem.
    E vocês também ficarão. 
    Portanto, entrem em suas caixas, vamos!
    — De fato, disse o mais antigo…
    E aos pares, foram se acomodando.
    É o ciclo da vida, resumiu o amarelo.


  • A sucinta e individual força dos Verbos e Substantivos:


    (…)

    “vence, leva, ‘sai-vitorioso’, fede, terminam, caminham, garantir, levou, votarem, vence,
    consolida, vence, conquista, foi-eleito, abandonaram, levar, conversam, ‘não-fará’,

    pede, nega, inclui, deixar”

    (…)

    Arizona, estados-chave, eleição; disputa, estado; estados-chave, eleição; vitória,
    eleições; contagem, delegados, ‘X’; maioria, câmara; mulheres, EUA, republicano;
    Arizona, vitória, estados-pêndulos; 7-Estados; presidente, pobres, ‘faxina’, pentágono, sombra, COP29, Azerbaijão, eleição, parte, governo, alívio, acusações, complô,
    posição,
    Ucrânia, sinais, Kremlin, EUA

    (…)

    passado futuro Biden Lula Trump Bolsonaro posse vitória Trump pai chances Moraes vitória Trump sinal alerta Lula dois-mil-e-vinte-e-seis senador foto vitória Bolsonaro utilidade Lula candidatos Bolsonaro vitória Trump dois-mil-e-vinte-e-seis apoio
    Bolsonaro Trump Lula ex-presidente Trump

    (continua).


  • Treinamento para habilitados

    Dois dias atrás, o carro da frente do meu exibia uma placa: Em Treinamento para Habilitados. Achei fantástico esse serviço – dar um treinamento para os já habilitados. Isso pressupõe que, mesmo tendo sido considerada apta para a função a que se propõe, a criatura não tem domínio do assunto.

    Incrível, não? Como será, então, que foi considerada apta a exercer essa atividade? Quando se trata de carteira de habilitação de condutor, a nossa tão conhecida CNH, é fácil de entender – o candidato a condutor passa por um curso rápido em que decora algumas regras de trânsito, e faz, se não me engano, umas 40 horas de treino sobre como se portar ao entrar no veículo: regular os espelhos, o banco, a partida, freio de mão, as setas, etc. Aí vem o percurso, a baliza, sair na ladeira (que é o mais temido) e, salvo alguma barbeiragem muito grande, a esperada aprovação.

    Orgulhosamente com seu atestado na mão, o novo condutor começa a enfrenta a vida real – trânsito, cruzamentos, se aventurar a mudar de faixa visto que tem que entrar à direita logo mais, estar preparado para os sinais que mudam de repente, enfrenar alguém que corta a frente subitamente, ficar calmo diante da pressão de outro que buzina para que ande mais depressa, enfim – o estresse de qualquer iniciante ao volante.

    Alguns tem pendor nato, logo dirigem super bem, com tranquilidade e segurança. Outros vivem um verdadeiro martírio ao enfrentar esse desafio. Para esses, foi criado o curso de treinamento para habilitados – super louvável, apesar de que não acredito muito que o resultado seja transformar patinho feio em príncipe.

    Esse assunto ficou, de alguma forma, na minha cabeça. À noite tive um sonho delirante – esse serviço poderia ser aplicado a um outro certificado de habilitação – a certidão de casamento. No meu devaneio noturno, as coisas aconteciam assim:

    Os candidatos a sacramentar uma união passavam por uma prévia para aprender algumas regras de como se comportar ao volante de sua nova vida: regular os espelhos para não enxergar o outro de forma distorcida, escolher um banco que seja confortável e suficiente para os dois; não fazer questão de dar a partida, deixar espaço para o parceiro iniciar o contato; puxar o freio de mão quando vem aquela raiva; dar setas para que o outro perceba quando é para mudar o rumo da conversa etc. Aí vão para o percurso, tentando acertar a baliza, sair na ladeira quando o clima esquenta (que é o mais temido) e, salvo alguma barbeiragem muito grande, chegam para pegar a esperada certidão.

    Certos de que já estavam habilitados, começavam a enfrentar a vida real a dois – trânsito com congestionamentos desgastantes; cruzamentos que provocam colisões; insegurança para pegar a direita e retornar quando a conversa foi na direção errada; dificuldade para captar os sinais de alerta se o humor muda de repente; sabedoria para driblar um triângulo amoroso que corta o caminho subitamente; paciência para manter a calma quando a sogra buzina no ouvido pedindo que apareça um filho mais depressa … Resultado – uma crise de estresse do casal iniciante, que ainda não tinha competência para lidar com a situação.

    Diante disso, será que um treinamento pós habilitação ao casamento funcionaria? Acordei rindo, com essa pergunta no ar.


  • Botas, cavalos e moscas

    Embora eu adore cavalos, nunca aprendi a montar. Como bom-senso e juventude nem sempre andam juntos, quase comprei um pangaré em Águas de Lindóia que fica a mais de quinhentos quilômetros do Rio. O preço não arruinaria completamente as minhas finanças, mas obviamente a distância entre mim e o cavalo não nos tornaria próximos. Foi mais um sonho do que um projeto viável.

    Tempos depois uma amiga que também gostava de cavalos conseguiu comprar um e o colocou em um estábulo razoavelmente barato na Barra da Tijuca. Generosa, ofereceu o cavalo para que eu aprendesse a montar. Impôs uma única condição: que eu providenciasse botas adequadas.

    Indicaram-me um sapateiro especializado dentro do Jockey Clube. Fui lá, ele tirou medidas dos meus pés e marcou data para a primeira prova. Voltei no dia combinado, nada estava pronto. O sapateiro era um senhor de muita idade, puxou conversa e, sabe-se lá porquê, o assunto foi parar no jogo do bicho, cujas regras mais avançadas sempre despertaram minha curiosidade.

    O sapateiro era um pouco enrolado no seu ofício, nas explicações do jogo do bicho também, e marcou nova data para a prova das botas. Não estavam sequer cortadas quando voltei pela segunda vez. Mais conversa, mais jogo do bicho, mais enrolação, outra data. Depois de duas ou três vezes em que isso se repetiu, liguei para a minha amiga para justificar a demora em começar as tão sonhadas aulas de equitação. Ela tinha decidido vender o cavalo porque o preço das cenouras que o animal consumia era estratosférico! Nunca mais voltei ao sapateiro, creio que ele também nunca chegou a fazer as botas. E continuo sabendo apenas o básico sobre o jogo do bicho.

    Em um dos muitos congressos dos quais participei conheci um professor argentino que afirmou ter um cavalo ali perto. Eu e outro professor nos entusiasmamos quando o cara perguntou se teríamos interesse em montar o animal durante um intervalo entre as conferências. Nosso entusiasmo desvaneceu-se quando chegamos ao local: esqueça qualquer fazenda ou clube equestre, era literalmente um terreno baldio com uma cerca de arame e um pangaré pastando. O argentino laçou o cavalo, colocou uma corda à guisa bridão e disse que estava pronto.

    Nunca tínhamos imaginado montar um animal em pelo, contudo não quisemos dar o braço a torcer. Sem sela e sem estribo, subir no cavalo foi uma manobra difícil que precisou da ajuda do argentino. Cada um deu uma voltinha ao terreno e declarou-se satisfeito. Na minha vez morri de medo de cair, abracei o cavalo com as pernas, segurei-me o melhor que pude e deu certo. Mas era um intervalo entre duas conferências, lembram-se? De volta ao congresso, ao meu redor e do meu amigo começaram a acumular-se moscas atraídas pelo cheiro de cavalo que ficou em nossas roupas. Naquele ambiente sério fizemos nossa melhor cara acadêmica, mas vontade de rir não nos faltava. Ninguém ousou falar sobre as moscas; os humanos provavelmente sentiram o mesmo perfume, porém foram mais discretos.

    Hoje já não tenho coragem de montar, nem mesmo em pangarés e muito menos sem sela. Vocês sabem: a idade, a coluna, os joelhos, a osteoporose… Vale a máxima antiga: certas coisas têm que ser feitas no tempo certo.


  • Não existem mais heróis

    Não Existem mais heróis…

    Estes, ficaram em fotos, figuras coloridas ou desbotadas, ficaram nas páginas de um livro velho, ou então, são relembrados de maneira torpe e fragmentada por aqueles que contam histórias antigas, mas têm já uma memória vaga das coisas.

    Hoje, o tempo é de homens perversos. Tempos de perversidade!

    Hoje, o tempo é de guerra e divisão, de discurso copiado na rede e de arma na mão!

    Hoje é o tempo de imbecis! É o tempo do fim da nação!

    Nas fronteiras do mundo, homens rasgados, mulheres cortadas, crianças interrompidas tentam fugir do caos.

    No entanto, apenas prolongam a agonia do desterro…

    Não existem mais heróis.

    Estes, enganaram a troco de pouco, por trinta moedas ou menos…

    Hoje, o tempo é de muros mais altos, dedos em riste, cercas e arame farpado.

    É o tempo do discurso do ódio, da banalização da morte e da miséria, da mediocridade como solução!

    Não existem mais heróis nem cavalos pra montar.

    Não existe mais o final feliz, não há mais aprendiz. O que há é a marca. O que fica é a cicatriz!

    Hoje, o tempo é de revolver cascalhos, olhar os escombros, contar os mortos…

    É o tempo de filósofos desbocados, de agressivos comentários, de loucos pra todos os lados!

    É o tempo dos flagelados, dos desnudados, dos milhões de desempregados…

    Não existem mais heróis…

    E já já não existirão mais poetas.

    Haverá a necessidade de expulsá-los porque teimam frequentemente em pensar, porque teimam absurdamente em enxergar…

    Mas isso tudo não importa, pois as pessoas já não pensam e não enxergam…

    Nas fronteiras do mundo, a despeito da dor, bandeiras continuam delimitando espaços, marcando territórios, desumanizando vidas…

    Nas fronteiras do mundo, a despeito da dor, bombas são jogadas e preparadas e alimentadas sem qualquer pudor.

    As ideologias, rotas e desfiguradas, ainda teimam em dizer o que é bom é o que não é.

    Ainda fazem pessoas saírem de suas casas sem destino e sem a certeza do pão.

    Nas fronteiras do mundo, duas bandeiras se misturam, se interpenetram, mas não se fundem, ao contrário, criam um vazio, uma incógnita… um entrelugar…

  • É preciso sagrar-se cavalheiro

    Para viver um grande amor… talvez esse seja o desejo de todos os românticos, como Vinícius de Moraes. Para uma grande parte dos casais longevos, porém, ele é como aquele café coado de manhã: tem sabor quente e intenso no início, adquire um tom meio desbotado e morno com o passar do tempo e, ao final do dia, sobra só aquele fundinho da xícara com restos de pó, frio e amargo.

    Talvez por esse motivo, mas não somente por esse, um filme que assisti recentemente me encantou – A grande Fuga, um drama dirigido por Oliver Parker e estrelado por Michael Caine. A trama se passa durante o verão de 2014 e acompanha a história real de Bernard Jordan (Caine), um veterano da Segunda Guerra Mundial que decide escapar da casa de repouso em que vive com sua esposa Irene, interpretada por Glenda Jackson, e viajar até a França para participar da celebração do 70º aniversário do Dia D nas terras da Normandia.

    A história do veterano Bernard toca em um ponto sensível e super atual, ou seja, a insanidade de uma guerra, o crime escancarado da perda de milhares de vidas de todos os lados em conflito por e para absolutamente nada.

    Nos faz também pensar no quanto um sonho é capaz de mobilizar nosso corpo e mente a ponto de nos aventurarmos muito além do bom senso e dos limites que a idade nos impõe.

    Talvez para uma grande parte da audiência desse filme, especialmente os mais jovens, esses sejam os maiores atrativos do filme, além da atuação brilhante de dois atores super consagrados como Michael Caine e Glenda Jackson, na época com 90 e 84 anos respectivamente. Glenda, inclusive, faleceu logo após o filme.

    A mim, além desses dois valores, que tornam o filme lindíssimo, a poesia existe na convivência amorosa de dois idosos que, ao final da vida, ainda conseguem manter a cumplicidade, o carinho e a delicadeza da convivência, mesmo estando em um lugar que, a princípio, evitamos até em pensamento – uma casa de repouso.

    Tudo no filme pode ter sido romanceado, obviamente, a partir da realidade de Jordan e Irene; mas a mensagem, de qualquer forma, enternece e faz pensar que é possível manter aquele café como se tivesse sido coado na hora. Mas, como cantou nosso poeta…

    Para viver um grande amor
    Primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro
    E ser de sua dama por inteiro
    Seja lá como for”
    Vinicius e Toquinho


  • ENEM – cada inscrição uma história

    Martina, quando pequena, adorava pegar a seringa de brinquedo e dar injeção nas
    bonecas. Aprendeu com seu pai que, quando crescesse, seria médica.

    Sua família incentivava, com gosto, a brincadeira da menina. Sabiam que, se a fantasia
    ganhasse espaço na realidade, o futuro estaria garantido. 

    Estudiosa, a filha não era. Tinha dificuldade em matemática e português, e preguiça
    para os deveres. Mas desde quando os sonhos respeitam os limites da verdade? Seu pai
    já havia determinado: se espelharia no seu tio-avô. Renomado e rico.

    Ano a ano, na cabeça dele, a história ganhava enredo: Martina estudaria medicina na
    federal, seria assistente do tio Aldomiro, trabalharia na clínica dele. Embora fosse neta
    de um pintor falido, conquistaria o status que seu avô não foi capaz de alcançar. “Nunca
    mais serei o primo pobre”, repetia o pai em seu secreto pensamento.

    No aniversário de doze anos da filha, de forma solene, a presenteou com um jaleco
    branco e nome bordado em dourado. Nessa época, Martina não via mais graça em dar
    injeção. Seu novo divertimento era desenhar vestidos e acessórios. Também amava
    experimentar suas roupas e desfilar pela casa fazendo pose. Deu esse destino ao jaleco.
    Usou-o com cinto, lenço, salto alto da mãe.

    O pai insistia no sonho. Tinha por hábito, ao chegar do trabalho, perguntar:

    — Onde está a Dra. Martina Albuquerque?

    O silêncio invadia o ambiente como uma advertência do futuro.

    A mãe tentou alertar ao marido que a medicina era uma fralda suja de infância. A
    menina, agora mocinha, demonstrava interesse e talento inato para as artes.

    Pela primeira vez, a mãe da garota sentiu, na maçã do rosto, a ira dos inconformados.
    Martina, horrorizada com a cena, nunca mais desenhou.

    Aceitou, com resiliência, a missão de reparar as frustrações e recalques do passado
    familiar. Ingressou na faculdade de medicina. Prestes a se formar, adoeceu do sangue.
    Pobre Martina!


  • As cartas

    Ela estranhou quando o carro parou em frente à sua casa tão cedo. Não costumava receber clientes naquela hora do dia. O homem que desceu do veículo tinha o semblante assustado e, ao vê-la no alpendre, lhe fez um aceno. Ela foi até o portão; antes de abrir, notou as olheiras de quem parecia não ter dormido. 

    – Entre, moço – falou, sem perguntar de que se tratava. Não era preciso. A fama que acumulara fazia com que a procurassem sobretudo por uma razão: desfazer algum temor ligado ao futuro. 

    Ela o fez atravessar o pequeno alpendre rumo a uma saleta onde havia uma mesa forrada com um pano verde sobre o qual estava um baralho já gasto. Sentou-se e fitou o rapaz com um ar doce e compreensivo. Aprendera, com o tempo, que essa expressão acalmava os que a vinham procurar. 

    – O que o atormenta, meu jovem?

    Ele baixou a vista e, com algum esforço, falou as primeiras palavras: 

    – Daqui a pouco vou encontrar alguém. Quero saber se corro algum risco.

    Disse e ficou mudo. Ela esperou que continuasse. Depois ponderou que, se lhe desse uma ideia de que adivinhava o motivo da sua inquietação, despertaria nele mais confiança. 

    – O que é que no comportamento dele lhe provocou tanto medo?

    “Dele”. Então ela sabia que se tratava de um homem! E, de fato, era o marido da colega de trabalho com quem vinha saindo há alguns meses.

    – Como sabe que é “ele” e não “ela”?

    – “Ela” ocupa sua mente, mas de outro modo – respondeu com um olhar malicioso, dando à expressão um ar conivente que o confortou.  

    A senhora é perspicaz – ele disse, com um suspiro que fez os olhos dela brilharem ainda mais. 

    Explicou-lhe então que vinha se encontrando com uma mulher casada. Os encontros ocorriam com a máxima discrição, claro. Chegara a ponderar que o que fazia não estava certo, mas se sentia incapaz de resistir. Desejava-a, tinha paixão por ela, e sabia que era correspondido.

    Fez uma pausa, levemente emocionado com o que acabara de dizer. Em seguida explicou que mal conhecia o marido, por isso estranhou o telefonema pedindo-lhe um encontro para falar “da situação profissional da esposa”. Ficou com a mosca na orelha. E se ele soubesse de tudo e pretendesse lhe fazer algum mal?

    Depois de ouvi-lo, a mulher pegou o baralho e começou a misturar as cartas. 

    – Vamos ver o que elas dizem. As cartas não mentem jamais.

    Esse lugar-comum lhe soou como uma verdade profunda. As cartas pareceram infalíveis e certamente o orientariam sobre o que deveria fazer. A mulher pediu que tirasse uma delas, depois outra, juntou as duas e olhou por cerca de meio minuto a combinação. Depois levantou a vista e o fitou com um sorriso entre cúmplice e triunfante.

    – Tranquilize-se, meu filho. Ele não sabe de nada.

    – Tem certeza de que ignora o que há entre nós?

    – Absoluta. Siga em paz e viva com intensidade essa paixão, pois a vida é curta. 

    Sorriu, aliviado, e lhe perguntou quanto devia.

    – Dê o que o seu coração mandar.

    Abriu a carteira e lhe passou uma quantia generosa. O alívio que as palavras dela lhe trouxeram não tinha preço. Ao se despedir, apertou a mão da mulher e agradeceu com uma humildade que a surpreendeu. Ela é que devia se mostrar humilde diante daquele homem elegante e de uma classe social bem superior à sua. Mas o que dá a cada um a medida da sua importância é a situação que está vivendo, e ele se sentia frágil em razão da dúvida que o afligia.   

    Depois que saiu, ela contou as notas. Era um montante considerável, que lhe permitiria consertar o ar-condicionado e comprar uns objetos com que vinha sonhando.

    Depois do jantar, sentou-se diante da TV para assistir ao noticiário local. Ficou curiosa ao se deparar com a primeira manchete: um marido que se soubera enganado matou com três tiros o amante da esposa. Em seguida vinham detalhes do crime e a foto da vítima. Tomou um susto ao ver que era o homem que tinha vindo consultá-la pela manhã. A mesma roupa, o mesmo cabelo, e nos olhos vidrados um ar de perplexidade.

    Por um instante sentiu remorso, mas logo tratou de banir do espírito esse sentimento. Qual fora a sua culpa? Não tinha concorrido para o crime. Deixara o rapaz confortado como podia ter feito o oposto. Se confirmasse as suspeitas dele e estivesse errada, poderia pôr fim à vivência de uma grande paixão. 

    Pensando bem, foi melhor que ele ignorasse o que estava por acontecer e marchasse tranquilo para o fatídico encontro. A sentença já fora providenciada pelo destino, e quem era ela para interferir nos seus desígnios? O que fez, no final das contas, foi dar um pouco de ilusão a quem já se condenara pelos seus próprios atos.

    Com esse pensamento recontou o que o morto tinha lhe dado, antecipando os pequenos luxos que iria comprar.


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