Crônicas Cariocas

  • IMAGINE

    (“Imagine there’s no countries” – John Lennon)

    Desde crianças, a visão que temos desse mundão que nos abriga, é a de uma colcha de retalhos multicolorida em que cada corzinha representa um país. Tendo como referência o Atlas Geográfico, foi-nos ensinado na escola que cada centímetro quadrado do território do globo pertence a um desses países.

    Não sei como nem por quem foi firmado o acordo que determinou que sou obrigado a obedecer aos governantes da nação em que o pedacinho do solo que habito está encravado. Só sei que não fui consultado.

    Pelo que me lembro das aulas de História, não foi sempre assim. O tal ‘Estado Nação’ é uma figura que surgiu após o fim da Idade Média. Deixo a incumbência de explicar as origens para os historiadores de plantão. Sou um mero cronista rebelde, inconformado em aceitar que as coisas sejam dessa maneira.

    Para dizer a verdade, tenho bastante antipatia por essa concepção. Ao contrário do senso comum, não me entusiasmo em celebrar ideais como ‘patriotismo’ e ‘nacionalismo’. Tampouco me ufano com os olhos cheios de lágrimas, ao ver glorificados os símbolos pátrios. Acho que essas manifestações arcaicas só se prestam a separar as pessoas umas das outras. No máximo, torço pela seleção brasileira na Copa. Mas, passado o evento, volto a me considerar, acima de tudo, cidadão dessa aldeia global chamada Terra. Esse lindo planeta azul que, a despeito das agressões praticadas pelos humanos, segue formoso, cumprindo diligentemente sua jornada no espaço sideral e cuja deslumbrante beleza inspirou Caetano a criar-lhe versos como “por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria”.

    Acho que sentimentos exacerbados de vangloriar a pátria só se prestam a estimular valores nocivos como a competição, a hegemonia e a exclusão que levam a guerras e fazem os governos gastar bilhões na aquisição de equipamentos bélicos letais e armas de extermínio em massa, sugando verbas que poderiam ser destinados à saúde, à educação e a tornar as pessoas mais felizes. Desviando recursos da vida para a morte. Considero muito mais nobres valores como a cooperação, a solidariedade e a humanidade.

    Não consigo entender por que um ‘compatriota’ que teve a ventura de ser parido no território situado entre o Oiapoque e o Chuí deva ser considerado mais meu irmão do que um aborígene australiano que vive no outro extremo dos mares. São ambos indivíduos pertencentes à mesma espécie, diferenciados apenas pelas peculiaridades que fazem da raça humana esse rico painel de diversidade, onde criaturas semelhantes permitem-se ser tão maravilhosamente diferentes. Quero amar a todos igualmente, com suas abençoadas dessemelhanças, afinal somos todos filhos únicos do mesmo Deus (ou seja qual for a entidade divina de sua preferência) que, ao nos dar a bênção da vida, não estava preocupado em checar nosso pedigree ou a qualidade do nosso DNA.

    Vou além. Acho que mesmo as outras categorias de vida, animais, plantas e até as formas inanimadas como pedras, montanhas, nuvens, rios e o ar que respiramos, devem também ser objetos de devoção e reverência pois fazem parte da nossa vida na Terra, o astro mãe que generosamente acolheu nossa existência, sem que a ninguém tivesse sido solicitado  passaporte ou documento de identidade.

    A natureza não impôs segregação entre as pessoas. Foram os humanos que a si próprios criaram barreiras artificiais, demarcando territórios e impondo tratamentos diferenciados. A apartação que surgiu, foi reforçada pela necessidade inata dos homens se agruparem em bandos que rivalizam entre si. Essa divisão parece atender a esse desejo gregário do indivíduo de se afirmar como membro de um grupo que se sobressaia sobre outros grupos: tribos, gangues, torcidas organizadas, religiões, partidos políticos, nações.

    Não nego que as chamadas ‘nações’ possam ter em algum momento cumprido o louvável propósito de oferecer suporte para que a comunidade fizesse prevalecer os interesses coletivos sobre a ganância individual. Penso, todavia, que, num estágio mais elevado da civilização, esse papel deveria ser exercido por uma entidade supranacional, uma administração “planetária” que se sobreponha aos governos de cada país. Sem dúvida, me parece eticamente superior uma sociedade onde todos os indivíduos, independente de que região procedam, sejam tratados em condições igualitárias e com os mesmos direitos e oportunidades.

    A miséria que impera nos recantos esquecidos da África, onde ocorrem massacres, proliferam vírus e o crescimento populacional está descontrolado, acabará mais dia menos dia voltando seus efeitos maléficos para todo o planeta. Legiões de imigrantes arriscam tudo para fugir do inferno em que suas vidas sem perspectivas estão inseridas para conseguir uma “boquinha” em países onde a condições não sejam tão degradantes. E não são muros ou manifestações xenófobas que estancarão tais fluxos. Afinal, queiramos ou não, somos todos passageiros dessa mesma nave do sistema solar e temos de fazer um esforço conjunto para preservá-la.

    Um mundo sem fronteiras, onde os interesses planetários se sobreponham aos interesses de cada nação não vai surgir nessa década nem nas próximas. Há muitos obstáculos para viabilizar essa utopia. Mas como disse John Lennon (“you may say I’m a dreamer, but I’m not the only one, I hope someday you’ll join us”), se juntarmos os sonhos e lutarmos por eles, quem sabe nossos netos possam viver num planeta onde a fraternidade universal esteja acima do orgulho nacional.

  • Carnavais

    Admiro o carnaval.

    A espera, o frenesi, os preparos do corpo — regimes, bronzeamentos, fortalecimentos. A rotina dos exercícios e treinos; a dedicação da passista em horas e horas de ensaios; o tratamento e implante de cabelos, cílios e o que mais puderem. A entrega do ritmista, a criatividade dos sambistas, as costureiras e suas fábricas de fantasias e adereços. Tudo isso compõe esse evento grandioso.

    Vou falar… admiro mesmo! Mais do que isso: fico perplexa.

    O carnaval me causa espanto… ou será que sou eu a própria estranheza?

    Como assim, não ser apaixonada por essa festa impressionante?

    Ignorar essa extraordinária celebração?

    Não, isso não deve ser normal!

    Volto no tempo, na minha meninice. Quem sabe lá eu tenha me encantado com uma serpentina ou com um brilho de purpurina no rosto… talvez uma sapatilha dourada, um saquinho de confete.

    Vasculho minhas lembranças, tento encontrar um sinal, uma pista… talvez o barulho de um tambor, o gemido de uma cuíca, a luz e o brilho daquele que é considerado “o maior espetáculo da terra.”

    Que besteira! Fui criança de cidade do interior, onde os bailes de carnaval eram exclusividade dos associados. Ainda assim, talvez tenha me assustado com a irreverência de um palhaço ou com algum moleque de máscara horripilante, saída dos gibis de terror.

    Por acaso, alguma mãe de coleguinha me terá convidado para um matinê ou bailinho vespertino?

    Carnaval. Essa festa tão linda, tão sonora, tão colorida, um evento grandioso, hipnotizante e inesquecível!

    Desisto. Procuro e não encontro — nem no passado longínquo, nem em lembranças esparsas e menos ainda nesta fase da vida — nada, nenhum sinal que justifique minha total incapacidade de ser tocada pela grandiosidade dessa festa.

    Ainda assim, desejo àqueles que aguardam o ano todo pelo “Grito de carnaval” que aproveitem a época, mas lembrem-se: ano que vem tem mais!

  • Dia do fico

    Toda segunda e quarta é dia de lutar por melhores condições de vida no futuro: dia de pilates. A motivação que me leva até lá, semanalmente, é equivalente ao ânimo de comprar um produto que não sei se chegará ao destino ou se terei tempo de desfrutar, mas compro por desencargo de consciência (vai que preciso…).

    Sigo o fluxo, sempre em frente, na busca de um envelhecimento ativo e saudável ainda que, naquela sala cheia de molas, pesos e caneleiras, eu encare a face sádica do tempo.

    Dona G chega acompanhada do marido. Passos miúdos, andar cambaleante de um corpo que teima em não aceitar comandos, nem os dela.

    Olhos de um verde aceso bailam sem rumo pelo espaço. O sorriso ingênuo grudado nos lábios delata a persistência de uma alegria que não se justifica mais. Tudo ali é passado.

    Presente só o silêncio do amanhã.

    A professora, pacientemente, explica os exercícios para Dona G. Suas palavras caem na cabeça da querida senhora feito chuva que não se espera.

    Fico ali a me perguntar: qual o sentido de tudo isso? No lugar dela, eu escolheria continuar cuidando de um corpo que me traiu de forma tão falsa ou gastaria meus dias sentada numa varanda, admirando, sem culpa, a natureza?

    A questão retorna com a dor de um haltere caindo no dedão do pé: qual o sentido de tudo isso?

    Não sei. Talvez a vida careça de um sentido inventado. Ou só seja possível vivê-la em estado de pura abstração. 

  • Jogo contra jogo

    Era para ser xadrez. Um jogo elegante e íntimo. Como se as mentes por instantes se vaporizassem se entrelaçando no espaço entre os dois.

    Peças brancas e pretas, com dois reis impávidos e duas rainhas poderosas. Ao redor seus respectivos exércitos prontos para matar e morrer. Sem contudo faltar a admiração mútua, parte integrante da relação dos dois. Elegante.

    Mas de uma hora para outra vira pôquer. As rainhas e os reis permanecem mas as cores foram alteradas.

    Onde antes havia um par de monarcas agora existem quatro pares. As peças se transmutaram quase em sua totalidade em números, a exceção de mais uma figura humana.

    As três dimensões do xadrez foram trocadas pela bidimensionalidade do carteado.

    A tensão e o raciocínio do jogo aumentaram nos dois motivados pela competição. Antes havia observação e tentativa de entender as jogadas do outro. Agora instalou-se outra forma de raciocínio ditado pela sorte.

    Cada ação do passado, as cartas que se vão, ganha mais intensidade no presente como forma de prever o futuro. A capacidade de memorizar os descartes é fundamental para tentar prever o que ainda está por vir. Incontrolável. A sorte tomou lugar da ação consciente.

    Quase que instantaneamente vem a necessidade de camuflar suas intenções. É preciso mascarar quem é você. E o que antes era para ser um ballet suave a dois se torna a meticulosa arte de dissimular. Sai o passo sincronizado e entra o blefe.

    A verdade passou a ser rara. Duvidar tornou-se regra.

    As palavras se tornaram cartas que são posicionadas cuidadosamente de forma a manipular as reações da outra pessoa.

    Cada descarte, uma reação. Cada reação, um blefe, um engano.

    A intensidade da troca de cartas do jogo afasta da lembrança os movimentos suaves das peças deslizando no tabuleiro. Sem perceber, os dois se distanciam.

    O tempo apagou os rastros do caminho que eles percorreram entre o tabuleiro de xadrez e a mesa de pôquer. O caminho de volta, se perdeu. Onde um dia foram duas pessoas próximas e íntimas agora são somente mais duas pessoas. Sem nada de especial, nem nada que os identifique. Mais dois na multidão.

  • Em torno de “Conclave”

    Recentemente assisti a “Conclave”, um dos candidatos ao Oscar 2025. O filme trata da escolha de um novo papa por cardeais de várias partes do mundo, como é próprio desse tipo de pleito, e chama a atenção pelas disputas que existem entre eles. Nesses embates transparece a diversidade de posições dentro da Igreja (basicamente, entre os progressistas e os retrógrados), mas sobretudo ressalta-se um traço que é peculiar aos seres humanos – a busca pelo poder.

    O filme me fez pensar em Antonio Carlos Villaça. Para quem não sabe, Villaça era um dos maiores conhecedores do pensamento católico no Brasil e no mundo. Conhecia a fundo a obra de pensadores como Bernanos, Léon Bloy, Tomás de Aquino, Jacques Maritain. Em seus escritos pulsa o dilema vivenciado pela intelectualidade católica brasileira ao longo do século passado, a qual se dividia entre a participação política e o recolhimento à vida espiritual. Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção eram os maiores representantes de cada uma dessas posições.

    Villaça foi um ser fronteiriço, viveu na zona do quase – quase padre secular, quase frade dominicano, quase monge beneditino e, no fim, escritor convicto. Se jamais foi tocado pela Graça, foi no entanto bafejado pelo Estilo, que também é um dom conferido a poucos. A literatura permitiu-lhe ver sem preconceito ou sectarismo o que estava para além das ideias em confronto – os frágeis seres humanos, divididos entre a aspiração pelo transcendente e as tentações da carne.

    O mais importante livro de memórias de Villaça, “O nariz do morto”, é o relato do seu desencanto com a vida monástica. Ele entrara no mosteiro cheio de ideais, estimulado por uma visão piedosa e sobretudo estética do catolicismo, e lá se deparou com uma realidade tão prosaica, e por vezes mesquinha, quanto a do mundo leigo. Arengas, intrigas, ambições vorazes faziam da instituição monástica uma reedição do que existia no espaço mundano.

    Villaça revela isso com um desespero e uma pungência que angustiam, sobretudo porque transparece de suas palavras um ressentimento doloroso. Na página 131 de “O nariz do morto”, por exemplo, ele apresenta o saldo da sua frustrada incursão na vida religiosa: “Aprendera a ler, razoavelmente, nesse dicionário de absurdos que é a clausura monástica – morada do nada. Aprendi. Fiz o que no prostíbulo faz a desprevenida prostituta: aprendi o alfabeto da humana desgraça /…/ Sei com os ladrões e as prostitutas, os presos e os bêbados, qual é o itinerário do homem.”

    O livro me impressionou tanto, que o escolhi para tema da minha dissertação de Mestrado – “Travessia do mosteiro; considerações sobre a autobiografia em Antonio Carlos Villaça”. O trabalho teve como orientador o professor Anazildo Vasconcelos da Silva e foi defendido no início de 1983, na UFRJ. Da banca examinadora participaram, além do orientador, os professores Gilberto Mendonça Teles e Manuel Antônio de Castro. De Gilberto, recentemente falecido, tive o prazer de ouvir a indicação de que a monografia fosse publicada – o que ocorreu ainda quando eu estava no Rio, pela “Edições Tagore”.  

    Várias vezes conversei sobre o “O nariz do morto” com o seu autor, em fraternais encontros no hotel de Santa Teresa onde ele residia. As conversas tinham a franqueza de amigos e esclareciam determinados aspectos da narrativa. Por exemplo: o nariz era o pênis; e o morto era ele, Villaça, que perdeu trinta quilos durante o tempo em que ficou no mosteiro. Nessa fase de crise urinava continuamente, devido à ansiedade, e tanta água perdida afinou-lhe o perfil. Depois voltaria a ser o gordo cheio de bonomia que aprendemos a amar. O gordo generoso, de riso cavo, que fez do conhecimento dos homens um meio de se tornar bom.

    O aspecto de “Conclave” que mais me fez pensar no autor de “O nariz do morto” foi o da disputa pelo poder. Mais de uma vez ouvi dele como era intenso, nos ambientes que frequentou, o desejo de prevalecer sobre os outros e galgar posições de liderança. Muitos chegavam a usar para isso a humildade. Aparentando-se dotados dessa virtude essencialmente cristã, poderiam ser alvo de admiração e prestígio.

    A observação de tais pessoas leva o narrador a reflexões desalentadas, como a que segue: “O líder ama o poder, quer apenas o poder. O poder para nada, para se olhar nele, como num espelho monstruoso. O poder é o nada. O líder quer o nada – e, para isso, é capaz de tudo, de vender seus filhos vender o céu, o teto de estrelas e de nuvem, a própria vida.?” (p. 251)

    No filme, um exemplo extremo da ambição pelo poder é o Cardeal Tremblay; para tirar do páreo um dos concorrentes mais votados, ele não hesita em revelar um antigo caso amoroso do rival, de que resultara um filho. Com isso, vão por água abaixo as pretensões do Cardeal Adeyemi ao papado. Se assistisse à película, Villaça dirigiria a figuras como Tremblay a sua crítica e o seu ressentimento, pois de algum modo seriam responsáveis pelo ceticismo que faz o narrador hesitantemente duvidar: “Porque Deus parece… talvez… pressinto, desconfio, é esquisito, talvez, possivelmente, será que existe mesmo?” (p. 99)

    Tal ceticismo parece se reproduzir na crise vocacional do Cardeal Lawrence, magnificamente interpretado por Ralph Fiennes. Sendo o mais antigo na função cardinalícia, cabe-lhe conduzir o Conclave e tentar harmonizar as pretensões e as ideologias em conflito. Tal como Lawrence, o narrador de “O nariz do morto” considera que não há certezas. E endossaria de bom grado estas palavras do decano, que resumem de forma brilhante o desafio presente na crença religiosa: “Se há certeza, não há mistério. E, se não há mistério, não pode haver fé.”

  • Persistir na presença solitária!

    Não há necessidade de esperar tanto tempo para cair na real, ou no chão, como ocorreu com o meteorito contrito ordinário, santa filomena, que se alojou em nosso planeta após vagar solitariamente por 4,5 bilhões de anos no deep space.

    Ao esculpir sua vida dura como pedra, não sonhe com o além túmulo por causa de uma saudade imensa de alguém que se foi, porque o indivíduo “morde e assopra” e deixa os que ficaram por aqui “pisando em ovos” com uma incômoda impressão de impotência.

    Por isso, viver com a expectativa que somente após a morte exista amor e felicidade, pode ser arriscado para seus projetos nesse plano de agora.

    Erros fazem parte da escrita inclusive dos gênios, muitas experiências boas nasceram após uma lista de modificações durante o percurso de uma jornada.

    Leonardo da Vinci, por exemplo, esculpiu Moisés com chifres, após ler na Bíblia os detalhes de como ele desceu da montanha. Leonardo foi vítima de uma tradução mal feita da Bíblia, escrita por São Jeronimo, que ao invés de escrever Karan sobre a descida de Moisés, que significa adornado por feixes de luz, escreveu Keren, cabeça adornada por chifres. 

    E assim, nós, comuns mortais, apreciamos a escultura de Moisés com dois pequenos chifres na cabeça, tentando imaginar o porquê dessa alegoria acompanhando o profeta e líder mais importante da tradição judaico-cristã. 

    Dessa mesma forma o erro de qualquer outro pode ser a origem de uma atitude mal interpretada por toda uma vida.

    Mas não é por isso que você deva se amargurar e isolar de todos após alguns eventos de magnitude duvidosa. 

    No Japão os eremitas do século XXI que vivem numa caverna tecnológica, são chamados hikikomori que seria algo como “puxando para dentro”, de si. 

    Eles acabam por construir uma cova em suas almas de tanto persistir na presença solitária com seu umbigo. 

    A vida desses indivíduos é marcada pela exigência de um padrão que dificulta a ação de quem está ao redor. 

    Por isso que esse extremo não é bem-vindo para nossa saúde mental e social. 

    Bons e maus exemplos não nos tornam donos das coisas, as coisas é que são donas de nós, e a vida acaba por girar em torno delas, que sequestram as emoções por instantes longos e amargos.

    Como o leitor é um autor duplicado, seja o centro de suas metas e sonhos virais, bem antes que o todo-poderoso lhe tome em seus braços, mesmo que você já tenha pago um preço caro em suas escolhas.

  • UM SUJEITO PECULIAR

    Silas Arruda é um sujeito peculiar, do tipo que, vagando pela cidade dentro do ônibus, observa pela janela as pessoas que andam apressadas pela calçada e tenta encontrar seus olhos, adivinhar sua história, criar-lhes uma vida. Registra tudo com o olhar silencioso. Não conversa com ninguém, fechado nos próprios pensamentos.

    Na padaria, enquanto aguarda sua vez, fixa os olhos na vitrine cheia de pães e escolhe dois do fundo, aqueles que — ele acredita — ainda não foram tocados pelo atendente. Vai se sentir mais seguro quando, ao preparar seu lanche habitual, colocar na boca um produto sobre o qual ninguém pôs as mãos. No miolo estenderá três fatias de queijo e duas de presunto, sobras da noite anterior. Se ainda houver tomate na geladeira, cortará duas fatias pequenas e as colocará nas extremidades do pão, nunca no meio. O copo de leite com chocolate amargo em pó será o complemento líquido de sua refeição noturna e solitária, degustada na frente da televisão.

    Costuma passear pelo bairro à noite, depois que assiste ao jornal de notícias. Não se olha no espelho antes de sair. Também não leva guarda-chuva, mesmo que esteja chovendo. Prefere se esgueirar pelas marquises das lojas e supermercados e até se molhar um pouco, se não houver outro jeito. Anda com as mãos nos bolsos, os passos ritmados, uma sombra com olhos de carcará que tudo vê e pouco é visto. Respeita os faróis e nunca atravessa fora da faixa de pedestres. Se decidir parar para tomar um café, ficará em pé na extremidade do balcão, de onde poderá observar, em silêncio, o movimento das pessoas; verá, por exemplo, quem passa por ele para ir ao banheiro sem se importar com sua presença.

    Trabalha vendendo seguro de vida de porta em porta, e não se incomoda nem um pouco quando lhe respondem secamente “Não me interessa” ou se apenas o espiam por trás da cortina e nem se dão ao trabalho de abrir a porta. Silas Arruda, o corretor, está acostumado com isso e não leva essas grosserias em consideração.

    Andando pelas ruas para fazer o seu trabalho, escolhe aleatoriamente a casa do próximo cliente. O instinto o guia e raramente o engana. Na maleta de mão, além de formulários e outros documentos, carrega sempre uma garrafa de vinho, porque lhe apraz comemorar com uma taça o fechamento de um negócio. Toca a campainha e espera. Hoje quem abre a porta e o atende com surpreendente gentileza é a Dona Jurema, viúva que mora sozinha. Silas põe os pés na sala e olha em volta. Enquanto a dona da casa lhe serve um café, avalia em pensamento, e por antecipação, o quão fácil será tudo.

    Antes de sair tem o cuidado de verificar se a sala continua do mesmo jeito, com tudo em seu lugar, e se o corpo está bem acomodado no sofá. Fecha a porta da frente e caminha devagar até o ponto de ônibus. Sobe no coletivo, senta-se no banco dos fundos e solta o nó da gravata. Pela janela, observa em silêncio as pessoas que andam apressadas pela calçada.

  • Ficar de repouso

    Desconheço três palavras do nosso idioma que, juntas, formam uma pequena sentença de morte. Em vida. Ela me assombra como uma prisão para maus comportamentos que parecem surgir até de vidas passadas. Um castigo para as travessuras, repouso para mim é inferno na terra e ainda me deixa de mau humor.

    Essa pequena frase que para muitos pode soar com um alívio no caos consegue me tirar totalmente do sério, apesar de serem necessárias, principalmente depois de uma cirurgia delicada que não foi exatamente como esperávamos. Ok. Mas para uma sagitariana com elemento “fogo no rabo” e ascendente em comichão, ficar de repouso é puro castigo. Com a mente inquieta e o corpo curioso, nada me deixa mais mal-humorada quanto não poder fazer qualquer coisa a toda e qualquer hora. Toda bobagem vira uma luta e as pequenas coisas se tornam um desafio de paciência que chegam a me dar nervoso.

    Inocentes vão dizer: aproveite esse tempo para ler e relaxar! Claro! Mas, e aquelas roupas no armário que teimam em se misturarem seguindo uma lógica que não é a minha? E as surpresas pela casa – em obra – que surgem apenas quando estamos por perto e incapacitadas de resolver? Mas, claro, temos uma lista de belos e cultuados filmes que sempre almejamos assistir e precisávamos exatamente desse momento tão reconfortante de repouso absoluto para realizar esse velho sonho. Mais inocência! No primeiro dia até vá, mas nos outros simplesmente perco o bom senso e me inebrio com vídeos de gatinhos e comédias bobas que parecem me acalmar os sentidos e me fazer esquecer o inesquecível: PRECISO FICAR DE REPOUSO.

    Resolvo então colocar o papo em dia. Ligo primeiro para os filhos. 10 minutos com um e quase 3 com o outro. Com o mais velho o papo até engrena, ele conta novidades, destila sua fina ironia e termina com um – Adeus! marcando claramente o seu tempo comigo e mostrando que ele tem – graças a Deus – mais o que fazer. O mais novo já atende com aquela voz entediada mostrando que não estava nem um pouco a fim de falar com a mãe. Tudo bem, tudo bem, tempo, planos, o que vai fazer hoje, te amo e tchau. Me contento com pouco. Pelo menos ainda me amam. Resolvo ligar para uma grande amiga que me pergunta sobre um bazar na nossa cidade. Estico a prosa o máximo que posso e ainda tenho uma outra chance: preciso ligar para minha mãe para mais informações sobre o tal bazar. Meia hora falando com a amiga e uma hora falando com a mãe – nunca pensei que fosse gostar tanto das suas redundâncias – já deu para passar o tempo e acalmar o coração.

    A noite vem e me inebrio com filmes até dormir no sofá. Na cama, lado certo para dormir, tampão protegendo o olho e a inquietude volta. Porque não conseguimos engatar o mesmo sono gostoso que já nos acalentava no sofá? O corpo deveria ter algum dispositivo que nos fizesse apenas mudar de lugar sem nos acordar. O sono continuava intacto e a mente calma não se abriria para novas possibilidades, como guloseimas escondidas espalhadas pela casa – esconderijos estratégico de chocolate para momentos de fúria ou tristeza – que são explorados a revelia apenas pelo fato deu estar em casa achando que tudo me convém. Disparates de gula na madrugada que cobram seu preço quando o repouso acaba.

    Tudo começou com um arsenal secreto para momentos de TPM, iniciativa que julguei ser da mais absoluta utilidade pública, principalmente para a saúde mental do meu marido. Fazia pequenas matulas de bombons e M&M´s e colocava naquele local no fundo do armário da cozinha que a maioria dos homens nem sabe que existe. Mas como toda prática leva a perfeição, comecei a elaborar novos esconderijos, cada vez mais ousados, mas que se mostraram ainda mais eficientes. O óbvio normalmente não é descoberto exatamente por ser óbvio. E me lembrei que havia comprado um pacote daquelas bolinhas mágicas de chocolate ao leite e branco antes da cirurgia. Com muita cautela, fui até o seu esconderijo e me deliciei com algumas tantas delícias vendo o último capítulo de Tieta. Prazeres mundanos que ainda valem à pena.

    No outro dia, mais jornais acumulados, revistas separadas, palavras cruzadas empilhadas ao lado da cama, todos à espera desse momento de paz e repouso. Menos eu. Me decido pelo livro do mês do meu clube de leitura e me deixo levar pela história de uma dona de casa italiana que começa a escrever um diário com os acontecimentos do seu dia a dia no pós segunda guerra mundial. Trivialidades da vida de toda mulher, mas com aquela profundidade que só boas escritoras conseguem imprimir. Enquanto isso, no Instagram, a vida acontece, os eventos transbordam, o sol é para todos e o céu azul me convida para mais. Tudo me aflige e me chama para fora. Leio mensagens de encontro entre amigas, cafés no meio da tarde, calçadas novas para explorar.

    Mas nego, sem dó nem piedade, me privando de tudo e todos para ficar no tal repouso.

    — Não posso fazer nada, doutora?

    — Não, apenas ler e ver televisão. Fica como se fosse uma velha.

    Já me sinto uma. Quase retruco: posso jogar bingo então? Mas prefiro não piorar a minha situação. Apesar de que, conheço algumas velinhas que são mais ativas que muitos jovens que vemos por aí. Idade é mesmo coisa da nossa cabeça. Mas os 50 ainda estão sendo digeridos por mim.

    Aproveita para descansar! Os amigos insistem. Não me sinto com mais tempo para descansar. Apesar de estar adorando algumas regalias que esses dias promovem, como café na cama e a falta de compromisso de dar conta de tudo, conto os minutos para poder fazer tudo que gosto de novo. Esse meio século – bem – vivido parece ter me atropelado, como se ligasse os motores para uma nova era. Os 50 chegaram com tudo e com ele uma sede imensa de mais. Vou descansar dormindo ou na sala de espera do dentista. Quero arte e movimento, expansão e criatividade; quero vida correndo, amor, amigos, filhos, sonhos… Tudo por perto, junto e misturado. Quero sair sem ter hora para voltar – sendo que às 10 já estou dormindo, claro – e emendar um compromisso no outro com sorriso no rosto e vento nos pés. Como o menino maluquinho. Ou uma menina que ainda posso ser.

    E, claro, com muito fogo no rabo!

    Que seja breve o meu repouso.

  • #012 – ATÔMICO

    .

    Nossos filhos nascem cegos
    pela poeira do nosso tempo.
    Nós ainda enxergamos
    porque já entendemos o mundo
    a partir da poeira que há nele,
    e que não nos incomoda muito.

    Areia (À Fragmentação da Pedra)

  • Dilema

    Uma decisão da maior importância para uma mulher é qual o formato vai dar para o seu penteado. Primeiro porque ele é um cartão de visitas, a primeira coisa que as outras mulheres vão reparar e comentar. Ele diz muito a respeito do estilo da pessoa, demonstra o quanto ela está antenada com as tendências da moda, e, muitas vezes, dependendo do grau de maldade das amigas “intimas”, é uma pista sobre o tipo de salão que a pessoa frequenta, ou seja, um salão de primeira ou de segunda linha.

    Até aí, nada de novo. Outro dia, porém, me vi em frente ao espelho, cabelos molhados e uma decisão a tomar: “devo pentear o meu cabelo com as pontas viradas para fora ou para dentro?” falta esclarecer que se trata de um cabelo bastante liso, portanto esse detalhe das pontas é que dá o toque ao visual.

    Comecei a pensar que essa escolha não é somente estética; existe aí algo mais subjetivo que norteia o ímpeto de virar as pontas para dentro ou para fora. Passei a lembrar em que momentos decidi pelo estilo mais Channel, e aqueles em que a decisão pendeu para o mais esvoaçante, ajudada por algumas fotos.

    A relação da direção das madeixas com o estado de espírito ficou claríssima! A escolha dos cabelos voltados para dentro estava relacionada a momentos de maior introspecção, maior formalidade, sugerindo até um certo romantismo.

    Os cabelos com as pontas jogadas ao vento estavam presentes em situações de alegria, diversão, informalidade, passavam uma impressão mais jovial.

    Essa descoberta me trouxe um sério problema — comecei a aplicar a regra para analisar os cortes de cabelos masculinos e fui buscar algumas relações.

    — Cabelo comprido? Pessoas criativas, mais sonhadoras. Entre os mais velhos, denota uma tentativa de manter a eterna juventude, resquícios da vivência nos anos 70.

    — Cabelos raspados? Mais comum entre homens inteligentes e decididos, que gostam de marcar presença, serem notados e criar um estilo marcante.

    — Topete? O preferido dos sonhadores, nostálgicos, românticos.

    Virou um vício, uma coisa terrível da qual não consigo me livrar. Fico observando as pessoas na fila do caixa do supermercado, no ponto de ônibus, no trabalho, e acabo fazendo outras relações entre a personalidade e estilo de cabelo, tanto dos homens como das mulheres.

    Solução? Pelo menos em relação ao meu cabelo, decidi usar reto, nem para fora nem para dentro. Interpretem como quiserem.

Botão Voltar ao topo

Adblock detectado

Desative para continuar