Crônicas

  • O seleto grupo dos iluminados

    Há poucos dias finalmente descobri o meu lugar no mundo. Depois de vagar entre planaltos e ribanceiras por anos e anos, depois de me notar perdido, ansioso e angustiado, tive, por fim, a revelação. Foi um instante daqueles em que o coração não acelera porque sente que algo tranquilo abrandará para sempre as aflições. E o futuro de repente abre as portas para um andar sossegado, como se a vida até então fosse um longo pesadelo.

    Depois da epifania as cores ficaram mais nítidas, os problemas mais curtos e o sorriso mais largo. O calor, que incomodava meus sovacos suarentos, agora se aprochega tranquilo como um velho amigo. A vida já me parece mais simples e até o meu humor rançoso tem se esvaído devagar.

    O grupo do qual me desvencilhei é composto pela imensa maioria dos seres humanos: os que não sabem o seu lugar e, pior do que isso, não desconfiam qual a sua missão. No entanto, não quero causar alarde. Caso você pertença a essa multidão, não se desespere. Eu mesmo demorei quase quarenta anos para chegar à iluminação. Quem garante que você não será o próximo?

    Agora sou oficialmente da minoria. Na verdade, sempre fui do contra. Multidões me arrepiam e amedrontam desde criança. Jamais me comportei como um “Maria vai com as outras”, como diria minha avó. Sempre tive opinião forte, às vezes burra, mas sempre forte. Tenho pouquíssimos amigos e parto da premissa de que se todos gostam de algo é porque aquilo não presta, sobretudo culturalmente. Logo, se está na moda é uma porcaria e se é unânime, pior ainda.

    Hoje me sinto diferente. A satisfação do dever cumprido é inenarrável. Nunca fiz parte de grupos seletos. Não participo de sociedades secretas, não estou no coro da igreja, não li nem lerei “Café com Deus pai” e não abro a casa para a capelinha da paróquia. Não posto fotos ajudando os necessitados, não dou pitacos estilo coach na internet e não vendo cursos; porém, também me vejo como um homem realizado e iluminado, talvez não em estágio tão evoluído, mas ainda um tanto luzidio, por assim dizer.

    Se minha mãe estivesse aqui, não me furtaria o prazer de ligar para ela no exato momento em que a epifania aconteceu para contar que seu filho, depois de décadas e décadas, alcançou a iluminação e descobriu o seu lugar no mundo. Não sei como o orgulho agiria sobre ela, mas certamente mediria as palavras para não lhe causar algum infortúnio emotivo.

    Desde que a revelação me ocorreu, confesso não pensar em outra coisa, no afã de ocupar logo o meu posto, dia a dia, sorvendo a vida com a mais sincera alegria e a mais pura certeza de que não quero nem devo estar em qualquer outro lugar.

    O garçom, que entende os pormenores dos meus acessos de ansiedade, como todo bom companheiro, assim que me vê, traz logo uma cervejinha gelada para que eu possa realizar a minha imponente missão. O antigo bar na beira de um lago enorme, em que me sento sob a sombra de uma árvore bicentenária, parece funcionar também melhor naquela paisagem com a minha presença. Sinto que precisam de mim. De alguma forma, o bar, a árvore, a sombra, o lago, o céu, as montanhas ao fundo e eu damos sentido ao lugar e criamos ali uma atmosfera singular. Talvez só nós consigamos entender essa energia.

    Somos uma pintura antiga, esquecida por séculos num porão escuro, que enfim ganha os primeiros toques de restauração. Amanhã, com enorme alegria, lá seguirei. E depois de amanhã também, e depois e depois, e depois e depois. Na certeza de que não há desassossego que perdure muito tempo quando estamos no nosso lugar.

  • Botafumeiro

    Incensos sempre estiveram presentes na minha casa. Desde que, na juventude, comecei a praticar Yoga, sua fumaça perfumada me encantou e daí para frente fez parte do meu ritual de meditação e recolhimento.

    Passei a acender um incenso para estimular minha criatividade na hora de escrever, desenhar, deixar fluir novas ideias, mas também para afastar os maus fluidos de um lugar que me pareça meio carregado. Escolho cuidadosamente a procedência, a fragrância e o efeito a que se destina, e me entrego ao efeito inebriante que o sândalo, o benjoim ou a mira provocam.

    Mas essa prática sempre me fez lembrar do tempo em que ainda se usava o incenso nas missas de domingo, nas igrejas católicas. Os sacerdotes entravam balançando o turíbulo fumegante de olibano, com o intuito de elevar as orações dos fiéis ao divino. Sua fumaça criava uma sensação de mistério e reverência própria do misticismo da fé.

    Apesar de esse ritual não ser mais praticado com frequência nas igrejas brasileiras, o Botafumeiro, termo que deriva do galego e que significa, literalmente, “arremessador de fumaça”, continua sendo um dos símbolos mais emblemáticos da Catedral de Santiago de Compostela.

    Na minha caminhada pela Galícia, não pude deixar de participar da missa dos peregrinos e me deixar envolver pela fumaça perfumada que o turíbulo espalhava pela nave central e pelas laterais.

    O ambiente era de grande religiosidade, pois antes da missa começar os sacerdotes solicitavam a todos os visitantes não católicos que se retirassem, para os fiéis poderem acompanhar a missa em silêncio, sem fotografias, celulares e comentários — somente os cânticos e o rito em latim ecoavam pela magnífica basílica.

    O Botafumeiro era acionado ao iniciar a liturgia, e se repetia em determinados momentos da cerimônia, envolvendo os presentes numa névoa permanente, que propiciava a introspecção necessária à elevação do espírito e inundava o ambiente de um perfume reconfortante e acolhedor.

    Qual não foi minha surpresa ao descobrir, anos depois, que havia uma “segunda intenção” nesse ritual, muito mais prosaica do que a elevação dos espíritos — livrar o ambiente do odor dos peregrinos que, na idade média, faziam a caminhada em péssimas condições de higiene.

    Dei graças a Deus e ao Botafumeiro, pois pude constatar que, de lá para cá, nada mudou — bendito incenso!

  • A moda passa, o sacrifício é eterno

    Há poucas décadas era moda fazer plástica no nariz. Um modelo pequeno e parecido com o adotado pelo Michael Jackson ficou popular. Já não se usa mais.

    Agora sobrancelhas grossas estão na moda. Como assim? Adotar sobrancelhas finas, como na época dos filmes mudos, é fácil, mas conseguir pelos onde não há folículos é impossível. No entanto, já estão oferecendo transplantes de sobrancelhas. Caríssimos. Não importa: sempre existe gente interessada em pagar alto para se ajustar ao estilo da vez, mesmo que os objetivos sejam despropositados e os resultados desastrosos.

    A gordura, execrada atualmente, já foi desejada em outras épocas e está ensaiando uma volta. As pessoas fazem dietas loucas tentando enquadrar-se em padrões inatingíveis para o seu biotipo e acabam arruinando a saúde. Até fumar voltou a ficar na moda!

    No início do século, quando as mulheres descobriram o botox, muitas abusaram a ponto de ficarem todas parecidas. Quase tive que etiquetar algumas das minhas conhecidas.

    Tudo bem, Sílvia?

    Sou a Renata.

    Ah, agora que você falou, estou reconhecendo a voz.

    Antes do botox era o silicone. Ambos se aperfeiçoaram, mas veio a harmonização facial. Não são poucos os casos em que o tiro sai pela culatra e a pessoa fica medonha. De vez em quando procedimentos realizados por gente inescrupulosa e sem qualificação fazem uma vítima fatal.

    Tatuagens eram coisa de marinheiro, hoje é difícil achar quem não as ostente. São doloridas, mas quem se importa? Se me contassem há trinta anos que isso aconteceria eu duvidaria. Pois aconteceu. Incrível como as pessoas se submetem a sacrifícios para seguir a moda.

    Não sei se sempre foi assim, mas uma coisa que está na moda há bastante tempo é ser jovem. Ou, no mínimo, parecer jovem. Conheci homens que pintavam o cabelo e mentiam a idade, e mulheres com testas de quinze centímetros que afirmavam nunca ter feito plástica.

    O mito da fonte da juventude vem sendo perseguido pela humanidade sem sucesso e a indústria cosmética tem explorado o assunto com direito a lances inimagináveis. Ganhei uma amostra grátis de um produto carésimo que prometia mundos e fundos sobre rejuvenescimento. Procurando informações mais detalhadas na internet, encontrei um blog em que a autora afirmava ter usado e aprovado o tal artigo, que teria sido muito eficiente na redução do seu bigode chinês. Perfeito, não fosse o detalhe do vídeo ser protagonizado por uma menina de vinte e um anos e, pior, tratando o assunto a sério!! Com que idade será que ela começou a achar que precisava rejuvenescer?

    A moda do vestuário não faz tanto estrago, mas também apronta. Não adianta avisar que saltos de vinte centímetros são um convite a problemas de coluna e a pés torcidos, nem que todo mundo fica bem com isto ou aquilo. Meninas se vestem como viúvas negras, idosos sem-noção se comportam como adolescentes. Sei de uma pessoa cujo apelido é Avó da Barbie, precisa dizer mais? Colocar a estética acima do bom senso é dar um tiro no pé.

  • Caçadores de eclipses

    Chuvas atrapalham planejamentos. Na realidade, chuvas atrapalham expectativas, e estas, nos frustram.

    [Aqui, chuvas podem se tratar de chuvas. Ou não. Use-a como metáfora, os textos pertencem a quem os lê, no momento da leitura].

    Hoje em dia é simples assistir eventos astronômicos com uma meteorologia ruim; eu, por exemplo, inspirada pela minha irmã, de vez em sempre, me surpreendo a mim mesma com o celular em punho, de noite, da varanda, de uma das janelas, da rua, apontando essa prótese humana para o céu, que pode estar límpido ou encoberto, não importa: lá estou eu girando no meu próprio eixo, tal qual uma lunática. Eis o app Stellarium, e a minha curiosidade pelo posicionamento de estrelas, outros astros e da Lua.

    Na madrugada da quinta para a sexta-feira última, fiz planos para ver a Lua de Sangue. Já com minhas vivências, velas e banhos engatilhados para a sexta-feira à noite, me empolguei com a magnífica poasibilidade de assistir a um momento envergonhado, enraivecido ou enamorado do nosso satélite natural, que teria o ápice de seu fenômeno às 3h26 da madrugada. Eu e muitos conhecidos e desconhecidos, aqui do lado ocidental e acidentalmente noturno da Terra, preparávamos nosso inconsciente para a madrugada em claro — que logo, tornaria-se escura, pela nossa própria sombra sobre a Lua. Mas, em Nova Friburgo, uma chuva torrencial, começou quando nem noite ainda era, minando o planejamento. Planejamento, uma pinoia!, diria minha avó; a tal da expectativa. A Lua vai passar pelo seu processo de eclipse, faça chuva ou passem nuvens. Estamos em março, as águas são certas e fecham o verão. Quem quer, que abrace a chuva e se molhe! Olhe para o céu, tome um banho de Lua. As energias podem até ser potencializadas. Há os que se preparem com telescópios ou cameras semi-profissionais com zoom 42x. Há ainda os que não se animem a sair de seus lençóis e pijamas, e liguem smart TVs, celulares, projetores, computadores ou outros — à exceção do Chrome Cast, que rapidamente instaurou o caos e um burburinho cibernético, com resets da configuracao padrão aqui e acolá, mudança de humores, por sair do ar, assim, sem explicações,dias afora…. em tempos de ansiedade impregnada nas veias, nada pior do que perder uma conexão que se espera onipresente e a nosso bel prazer — de novo, posso não estar me referindo à gadjets ou bandas largas, entenda como bem lhe convir. Por último, há os canais ao vivo no YouTube, com comentários que mais me mortificariam se eu não os acompanhasse no percurso da caça ao eclipse, sobre quatro rodas, suprimentos de café e tapiocas feitos às pressas, um spitz alemão com o focinho voltado para o céu, no meu colo, e um motorista que quase sucumbiu à frustração – e ao sono. Pouco antes das 2h, a chuva parou. Vibra a ligação via WhatsApp no pulso:

    — Alô…
    — Vambora? Anima, se não só em 2039!

    Enquanto todas as opções acima ocorressem por todas as Américas, dois adultos e um cachorro se embasbacavam com a Lua alaranjada que ora estava do lado do motorista, curvas depois do lado do carona. Nuvens e vegetações faziam necessária a presença do Stellarium.

    — Tá ali!

    Sobre a coxa do motorista, a tela do celular mostrava a Lua imensa, suas crateras, e exclamações que faziam a caçada ser mais interessante:

    — Está incrível, pessoal! Noooossa, olhem isso, está incrível! Já já essa nuvem passa, pessoal, por enquanto, façam um PIX de R$5,00 e mandem uma mensagem que respondemos aqui ao vivo.

    Seguimos o rastro da Lua, em busca de um descampado distante das luzes da cidade, quieto e seguro que nos permitisse parar, observar o fenômeno e fazer um lanchinho. Um bairro à esquerda, deixa fluir, lá vamos nós, 5G perdendo força, o 4G o qualquer G. Stellarium no more. Adeus YouTube.

    — Melhor voltar.
    — Vamos perder o ápice se voltarmos.

    De repente, uma pracinha digna de cidade de interior, um campo de futebol desses tomados pelas gramas selvagens, um ponto de ônibus, as casas que dormem. Paramos.

    A Lua.

    Para quem nunca presenciou com os próprios olhos, é difícil descrever; tem sabor de perfume de lavanda, sob o formato de brigadeiro; tem cheiro de um perfume marcante misturado ao odor de um café na madrugada, fumegante para que os olhos se abram. É de um vermelho revigorante. Parece final de copa do mundo, a experiência de se estar a ponto de gritar bem alto “É goooooooool!”. Mas não podemos, todos dormem — só os galos cantaram, cachorros-lobos uivaram e o meu spitz tenta inspirar de uma só tragada o pequeno piso concretado com suas narinas pequeninas. 3h26, o ápice. O mundo pára, por um instante.

    Ainda bem que, apesar de tudo, somos bons em desenvolver tecnologias. E ainda bem que sempre há lunáticos dispostos a vencer o sono, outros que se empenham em manter o planejamento e cachorros que nos fazem superar todas as (im)prováveis frustrações.

  • Admirável mundo novo

    Admirável mundo novo: prédios que desafiam a gravidade, veículos que se movimentam cada vez mais rápidos, produtos e aparelhos eletrônicos que prometem revolucionar a vida de todos nós… E compramos e acreditamos e nos iludimos.

    Admirável mundo novo! Problemas sempre os mesmos. A fome sempre a mesma. A violência sempre afiada. A palavra dos políticos desgastada. O poder e o pudor, desequilibrados e distantes. Caminhos errantes. Mas compramos a ideia. Acreditamos no futuro e nos desiludimos.

    Entre fios e chips e terminais de alta tecnologia, chineses, japoneses e norte-americanos desenvolvem robôs almejando uma cópia fiel do homem. E os cientistas buscam os movimentos precisos, a emoção perfeita, o sorriso certo, o calor medido, o humano. Compramos, acreditamos e nos iludimos.

    Carros andam sozinhos, casas reconhecem seus donos, câmeras espalhadas por todo o lugar. Tudo feito de forma rápida e precisa e direta. Não há tempo a perder porque, afinal, tempo é sempre dinheiro. Não importa o sonho, pela metade ou inteiro…

    Admirável mundo novo: praticidade, estética e velocidade. Precisamos resolver as coisas. As coisas precisam ser belas para nós, assim como nós precisamos ser belos para os outros. Nós e as coisas precisamos ser rápidos. Tudo prático, bonito e rápido.

    Admirável mundo novo! Mendigos e barracos e fuzis e diversos Brasis. O ser ainda humano, cibernético e plastificado, olha, dentro de uma redoma, o novo mundo que inventou. Um mundo cheio de prazeres a preços promocionais, remédios de todas as cores e para todas as dores. O mundo que contempla é de plástico e não há mais água nem cheiro e muito menos verde.

    Mas ainda existem viadutos e criaturas humanas que estão fora da redoma. E ainda há os que choram e que lamentam e que morrem… Ainda há fome e miséria!

    Inexplicável mundo novo!

  • Prazo de validade

    Desde criança me intrigavam as relações que sobrevivem ao lodo do tempo. Talvez por ter avós e pais separados, a união indissolúvel de duas histórias me comovia profundamente. 

    Na infância, gostava de assistir aos avós de uma amiguinha caminharem pela rua. O andar lento, inseguro de cada um, se amparando na união das mãos enrugadas, nos braços pintados de manchas vermelhas, que depois descobri se chamarem fragilidade capilar, causavam, simultaneamente, uma paz e uma apreensão só ofertadas pela noção de eternidade.  

    Lembro de ressoar no pensamento, em momentos aleatórios, sem nenhuma explicação plausível, o termo “fragilidade capilar”. Por causa disso, toda pessoa que chegava em minha casa, jovem ou não, despertava o meu olhar investigativo na busca daquelas manchas que ficavam por baixo da pele fina. Lá pelas tantas do crescer, minhas pesquisas infantis revelaram a correlação entre aquelas marcas e o envelhecimento. Agora, sim, havia entendido tudo. O corpo dava os sinais do seu desgaste. A corrosão era de dentro pra fora. Mas, ainda assim, eu continuava a achar lindo que o caminho para a finitude fosse em parceria com o ser amado de uma vida inteira.

    Durante anos cultivei esse ideal romântico, mas a recepção dos consultórios médicos e até, mais efetivamente, do Pilates, ultimamente, têm destruído a marretadas minha ilusão. 

    Existem casais, que estão juntos há trinta, cinquenta anos, que não se suportam mais nem por um segundo. É curioso perceber a falta de paciência, as intolerâncias de todo tipo, os safanões, gritos e até xingamentos de canto de boca. As implicâncias, críticas ferozes edesvalorização do parceiro(a) também aparecem de forma acintosa.

    Hoje mesmo presenciei uma cena dessas e me indaguei: há quanto tempo passou a hora deles se separarem? Por que escolheram seguir juntos quando só a desavença os une? Quando foi que deixaram de acreditar na existência de outros caminhos? Como se estabelece o prazo limite para ser feliz? 

    Primeiro, senti uma tristeza rascante. Deve ser horrível viver com alguém pelo medo de morrer só. Em seguida, senti um alívio: quem sabe as brigas e as alfinetadas funcionem como a diversão possível ou, pelo menos, o espaço lícito para depuração das amarguras? É provável que, no exercício da convivência, eles tenham aprendido a se ignorar ou se odiar com amor. Quem sabe se sentem completos, felizes e realizados?

    Agradeci aos meus avós e a meus pais a coragem de lutar por novos rumos. Me orgulhei de mim por não ter me conformado com dias mornos.

    Suspirei fundo e lembrei daquele casal da minha infância. Eles são a prova de que é possível não deixar o amor azedar como feijão fora da geladeira.

    É isso que quero pra mim. Menos que isso não aceito nem com oitenta anos.

  • O real motivo

    A função da publicidade não é apenas vender. É despertar em nós recônditos impulsos, criando necessidades até então inexistentes ou, pelo menos, ignoradas. O comercial age um pouco como a droga, que o indivíduo propenso ao vício despreza enquanto não conhece. Depois de tê-la experimentado, não consegue mais viver sem ela.

    A publicidade também faz registros curiosos e sintomáticos da vida moderna, funcionando como documento antropológico ou retrato psicológico da sociedade atual. Nesses casos, tem muito pouco de invenção. Em vez de se antecipar à realidade, como obra de ficção que é, capta o que está nela disperso.

    Me lembro, a propósito, de um comercial sobre uma marca de carro exibido há algum tempo na TV. Um pai, depois outro e mais outro levam seus filhos ao colégio. Os meninos vão ansiosos, preocupados. Pedem aos velhos que não parem o automóvel na entrada da escola, onde como é natural se agrupa muita gente. Os pais não entendem, desconfiam de que alguma coisa está errada. Supõem então que os filhos temem o julgamento dos colegas por estarem naqueles carros feios, ultrapassados.  

    Não havia nessa mensagem publicitária nada de novo. O comportamento dos garotos ainda é muito comum nos dias que correm. E não só quanto ao carro. Já ouvi de alguns pais que seus filhos se envergonham da casa, da roupa, do computador superado que têm em casa.

    O problema é que, ao documentar esse tipo de reação, o comercial praticamente o endossava. Apresentava como legítimo o ressentimento dos meninos. Mas quem era o verdadeiro culpado por tal ressentimento?     

    Subliminarmente, a peça publicitária dava a entender que o motivo da vergonha dos filhos não eram os automóveis. O motivo eram os pais, que não tinham dinheiro ou discernimento para comprar coisa melhor. Os pais é que os garotos, encolhidos naquelas “carroças” fora de moda, gostariam de esconder dos colegas.

  • Padre no avião

    Tem mais de 20 anos eu estava em um vôo para os Estados Unidos. Ao meu lado estava um padre brasileiro que foi deslocado para a diocese de Chicago.

    Sujeito de conversa agradável e bom de copo. Cada vez que o carrinho de bebidas passava não menos que quatro pequenas garrafas ficavam ali com a gente, duas para cada um, é claro. Nesse ritmo nós dois nos igualamos ao avião e estávamos bem altos.

    Foi nessa hora que o papo ficou mais animado. Lá pelas tantas o padre me disse que na paróquia de onde ele vinha, lá na pontinha do mapa da zona Leste de São Paulo, ele tinha uma abordagem diferente quanto ao casamento.

    O padre disse que quando os moços, nas palavras dele, o procuravam querendo casar ele aconselhava que fossem morar juntos primeiro. Diante dessa revelação questionei-o.

    Perguntei se ele não percebia que estava estimulando a fornicação, o sexo antes do sagrado matrimônio.

    Ao que o padre replicou: meu filho, casamento é um contrato com Deus. Isso não se rompe.

    Fornicação é um mal menor. Se resolve com qualquer penitenciazinha, uma meia dúzia de ave-marias e fica tudo bem.

    Foi difícil não gargalhar naquele vôo.

  • Mulheres são de Vênus

    Mayra abre a porta de casa afobada. Sabia do compromisso importante que teriam para o jantar, mas acabou se atrasando.

    Ao entrar, escuta um barulho no quarto e relaxa — Solano ainda deve estar se arrumando. Subiu as escadas já avisando:
    — Só demoro cinco minutos, amor!
    — Cinco minutos mesmo? Grita, lá de cima, o marido. — Já estou de saída.

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    “Demoro 5 minutos” — A maioria das mulheres demora, em média, 40 minutos para se arrumar antes de sair de casa. Esta frase significa que, provavelmente, ainda nem escolheu que roupa vai vestir.
    “Já estou de saída” — A maioria dos homens reage com essa frase. Significa que, provavelmente, eles ainda nem entraram no banho.

    Mayra entra no banheiro e logo pede espaço, para colocar o que vai usar: 2 tipos diferentes de Xampu, secador de cabelo, escova circular, mousse modeladora, spray, base, blush, rímel… e assim vai espalhando seus mil e um pertences por cima da bandada reservada a Solano que, timidamente, havia colocado seus cinco objetos de uso pessoal: escova de dentes e creme dental, barbeador, loção, desodorante e uma escova de cabelo.
    — Amor, dá pra encostar suas coisinhas mais pra lá? Não está vendo que preciso de mais espaço?
    — Minha linda, precisa mesmo de tudo isso?
    Mayra se limita a dar um bufo silencioso. Ele ignora e continua fazendo a barba.

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Duas regrinhas:
    A quantidade de objetos no banheiro é proporcional às necessidades de cada um e é inquestionável.
    As mulheres são mestres da linguagem não verbal — um bufo vale mais que mil palavras.
    Os homens nem sempre entendem esses sinais.

    Banho tomado, ela inicia o processo complexo de secagem do cabelo, enquanto aproveita para conversar com o marido sobre o grau de formalidade do jantar a que foram convidados e o que ele acha que ficaria melhor ela vestir. Não escuta nenhuma resposta, então insiste:
    — Solano, tá me escutando? Te fiz uma pergunta… (Aproveita para cuspir a pasta de dentes e mandar um oi pelo WhatsApp para a faxineira usando a mão livre.)
    — Oi? Amor, não vê que estou tentando dar o nó na gravata? Agora não dá!

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Os homens só fazem uma coisa de cada vez. Sei que é difícil entender isso, mas é verdade.
    As mulheres fazem várias coisas ao mesmo tempo.

    Mayra volta ao tema do traje para o jantar. Três opções em cima da cama, Solano já sentado numa cadeira, com a perna tremelicando de impaciência. Ela havia selecionado versões parecidas, mas em tons que iam do branco ao creme.
    — Que sê acha? Entre essas cores, o que combina mais com o evento de hoje? Qual delas dá um ar mais sofisticado?
    — Solano: Cores? Mas os vestidos não são todos brancos? Talvez seja melhor usar um vermelho, já que quer ir mais chamativa.
    — Desistoooo! Você nem olhou direito, nem entendeu a pergunta, não está vendo que as cores são diferentes?

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Há coisas que só as mulheres percebem.
    A diferença entre as cores branco, creme, bege e branco-pérola; ou entre tons rosa de batom.

    Finalmente prontos, Solano faz a pergunta fatal:
    — Vamos de carro ou chamamos um Uber?
    — Mayra: Você que sabe…
    — Então vamos de carro, é mais confortável.
    — DE UBER, criatura!

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Além de erro de interpretação do “você que sabe”, faltou lembrar que a última palavra é sempre da mulher. Qualquer coisa que um homem disser ao final de uma discussão já é o início de outra.

    SALVE O DIA INTERNACIONAL DA MULHER!!!

  • Dentro de uma bolsa de pano, tesouras, café e o bom e velho analógico

    Encontrei dona Selma despretensiosamente no refúgio barulhentomde um salão de beleza. Ela tingia os cabelos, eu aguardava a salvação para a franja que cortei – no melhor estilo DIY, “faça você mesmo”, ignorando minha autocrítica, que me advertira, pontuando experiências prévias, o desastre iminente. Há forças invisíveis que nos impulsionam a mudanças, aquela necessidade feminina de algo maior que nós mesmas – talvez sejamos vítimas de hormônios, mártires mensais da TPM.

    Outra cliente irrompeu no salão, óculos escuros e lenço na cabeça – não era só moda, mas uma tentativa elegante de encobrir o mesmíssimo erro que o meu. Franjas… Instantaneamente, um silencioso elo de solidariedade se estabeleceu entre nós.

    Enquanto aguardávamos, Dona Selma inclinava-se no lavatório, reclamando da temperatura da água, um pouco séria demais. Eu preocupada com a franja, a garota do lenço, na certa, também – recusava-se a retirar o acessório até que fosse chegada a sua vez. Dona Selma, indiferente aos dramas capilares, introduziu o assunto do aumento do preço das coisas. Todas nós, com exceção momentânea dela, por estar no lavatório, tomávamos café em xícaras fumegantes, o suprassumo do luxo – ostentávamos, mais do que podíamos perceber.

    — a carne de boi está um absurdo de cara…

    — mas você viu o preço das hortaliças?

    — é esse calor, garota! Imagina, daqui a pouco a água também vai estar impossível de se comprar..

    — leite, açúcar…

    — e o café?

    — nem me falem, sou movida a café…

    [Todas, em uma espécie de ritual inconsciente, levamos as xícaras aos lábios, ao mesmo tempo].

    Para dissipar o clima, Simone, amiga e cabeleireira, chamou a próxima cliente para a escova: uma mulher com os cabelos molhados envolvidos em uma toalha branca.

    — Mas, e a Dona Selma?

    — Selminha traz seu próprio secador de casa! O dela não tem igual!

    — eu mesma seco os meus cabelos, pode se sentar aí, por favor – e dizendo isso, levantou-se do lavatório, abriu a bolsa e, após alguns instantes de mãos inquietas, tirou um modelo compacto, preto e bastante antigo. Uma relíquia, na certa, ainda em ótimo funcionamento. Fiquei fascinada. Ela me entregou o aparelho, com orgulho:

    — Este secador foi apenas uma vez para o conserto. No Catarcione, que consertava tudo para durar. Na época, eu viajei e me esqueci de trocar a voltagem… fez um barulho diferente, um cheiro de queimado e
    desliguei na hora. Não virara a chavinha! Não era comum os hotéis terem secadores, hoje é normal. Eu carregava até um ferro de passar roupas. Elétrico.

    — E ainda funciona perfeitamente, uau! É incrivel. Hoje nada mais é feito para durar… – eu completei, admirada. Artefatos antigos, tecnologia analógica -aquela a qual as gerações mais recentes se referem com a ideia de mundo –, me atraem, verdadeiramente. Sinto-os como queridos desbravadores no campo da criatividade.

    — Hoje tudo é descartável. Mas tem que ser, filha. A população está crescendo, os velhos continuam aí.. tem que ter emprego para todo mundo. E dizem que as empresas estão preferindo os idosos aos jovens, olhe bem, porque nós não temos problema em trabalhar fim de semana… também porque não ficamos no celular o tempo todo. É, filha. Está tudo invertido. Igual a essa história de pix, cartão… ninguém nem tem mais troco nas lojas, em dinheiro. Mas, está certo. Eu continuo com meu secador que só foi para
    o conserto uma vez. Olha aqui a etiqueta do número – e eu até coloquei o meu nome, olha só.

    Havia algo de paradoxalmente cativante naquela mulher: de uma geração diferente da minha – a minha que já sofre para se encaixar e entender essa loucura de mundo atual – em prol do descartável. Um discurso empático, humano, aceitando a realidade mutável, embora não abrindo mão das suas raízes e convicções, a visão de um mundo em que as pessoas consertavam o que tinham. E isso não é [somente] sobre secadores ou eletroeletrônicos. Conversamos um pouco mais antes de ela ir secar seus próprios
    cabelos no banheiro.

    Minha vez de me deitar ao lavatório. Vejo Dona Selma ajeitar os últimos fios pelo seu reflexo no espelho, através da porta entreaberta. Me sorri. Em seguida, ergue sua bolsa simples, de pano, e diz, a alta voz:

    — Para carregar coisas boas. Principalmente dinheiro, mas deste, tem pouco – e sorrindo para todas nós, pegando a sua xícara de café. Um gole, um sorriso. Olha ao redor, todas entretidas com seus celulares,
    principalmente minha companheira de más decisões. Pousa os olhos sobre mim, um olhar que atravessava os anos.

    — Estou conversando com a Ana… você é igual a esposa do meu neto. Ela é uma gracinha.

    — Que honra, Dona Selma! Obrigada, ela deve ser uma pessoa especial…

    — Especialíssima! Um doce de criatura! E , obviamente, ela também é ruiva… – o olhar torna-se maroto com uma piscadela.

    [Rimos todas].

    No fim, nada como ajeitar os cabelos, tomar um café e compartilhar palavras soltas que, de tão reais, grudam na memória e permanecem em nós. O mundo pode se tornar cada vez mais efêmero, cada vez mais mediado por interfaces… mas há instantes — singelos, fugazes e imortais — em que secadores analógicos resistem à obsolescência.

  • Dia Internacional das Mulheres

    Caras amigas, manas, iguais…

    Temos um dia.

    Sim, um dia dedicado a nós. Num mundo dominado pelos homens, isso não é pouco!

    Pouco é o quão precária ainda é nossa rede de apoio. Pouco são os que nos valorizam para ocupar lugares de liderança, chefia, comando. Pouco são os que reconhecem que homens e mulheres merecem o mesmo espaço de fala, de presença, de decisão na vida.

    No entanto, eu me aproprio da homenagem e da data: 8 de março.

    Não faço fila com quem acha que nada temos a festejar. Celebro com as mulheres da minha família, da minha vida acadêmica, do meu trabalho e com todas aquelas com quem divido esta grandiosidade que é a vida.

    Acredito que aprendemos a viver, sobreviver e sobressair neste mundo ainda tão machista.

    Nós, mulheres, temos a sabedoria de aquietar a mente, cultivar o silêncio, exercer o amor próprio.

    Uma pequena pausa — minutos, dias, anos, não importa… Logo renascemos,

    prontas para acreditar, nos reinventar, empreender.

    E para comemorar nosso dia, nada como esta frase de Clarice Lispector:

    “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

  • DIGNÍSSIMO CANALHA

    Pelo presente instrumento, venho dirigir-me a vossa excelência. Com minúsculas e na segunda pessoa, pessoa de segunda que és, mauricinho de nariz empertigado. Tu, que te ocultas, sorrateiro, por trás dessa impecável e pretíssima toga escrota. Tu que recebes aprumado a reverência do povo de joelhos à espera de tuas soberanas e irretocáveis decisões peremptórias. Tu que estás imbuído da divina prerrogativa, intransferível e vitalícia, de deliberar sobre o destino dos homens que habitam o mun­do dos vivos, já que o dos mortos foge à tua jurisprudência, instância suprema à do teu Supre­mo. Tu que reclamas indignamente indignado por direitos inalienáveis e vives na intimidade inescrutável da tua vida pri­vada de práticas inconfessáveis. Tu mesmo, nobre calhorda, que de tanto exercer o ofício de julgar os outros, julgas-te acima dos outros.

    Venho oficiar-te, honorável patife, que há mais retidão e honra na palavra espontânea e honesta que brota do coração de um humilde iletrado do que no alfarrábio que sustém tuas áridas, infindáveis, mirabolantes e ordinárias sentenças. As mesmas que apões em papel pergaminho com letras douradas, fazendo-as constar dos anais onde exibes tua soberba grandiloquência farisaica e tua rocambo­lesca sapiência estéril.

    Amealhas com vileza recursos subtraídos do povo injustiçado para manter intacto esse intrincado e indecifrável sistema, tão inócuo quanto iníquo, que qualificas cinicamente de Justiça, a fim de cobrir com aura de magnificência e infalibilidade essa espeta­culosa e suntuosa pantomima patética e embusteira que estarrece as legiões dos sem-justiça desse país, mantendo­-os sob o jugo do teu julgar.

    Cultivaste esse interminável cipoal de leis, decretos, normas, códigos, tratados, regimentos, resoluções, regula­mentações, pareceres, dispositivos e medidas provisórias para reservares a ti próprio o monopólio do conhecimento e das práticas a ti outorgadas tautologicamente “por lei”, afastando o povaréu inculto de teu demarcado territó­rio. Para que, na mesma medida em que amplias a doutrina do direito, reduzas o primado da justiça.

    A chave de tua inoperância chama-se prazo. Conside­raste, eminente pulha, que, após décadas de espera, a sentença já foi proferida, independente do transitado em julgado? Abstrais, emérito canalha, a variável tempo sob pre­sunção de que o tempo é uma mera ‘questão de tempo’. Adias, protelas, procrastinas, prorrogas, retardas, demoras, protrais, diferes, pospões, alongas, espichas, espacejas, alastras, esticas, dilatas, intervalas, encompridas, acresces, amplias, expandes, empurras com a barriga. Pois, então, devo informar-te, distinto safardana, que quem aguarda por anos, seja nutrindo a raiva da privação de benesses não fruídas, seja gozando do deleite de penas não cumpridas, já é repositório da sentença, seja esta qual for. Em meio a tantos réus, jurados e testemunhas, apenas um deve ser declarado culpado em todas as instâncias: tu, criatura ignóbil.

    Sai da tocaia, egrégio velhaco. Desce desse palácio de letras, capítulos, parágrafos, alíneas, incisos, caputs e cláusulas em que te enclausuras. Cumpre salientar, excelentíssimo pústula, que as cruas ruas, inobserváveis das janelas do palácio que ergueste, sem decurso de prazo, para te isolares da re­alidade de fato e de direito, estão repletas de malfeitores que levianamente livrastes das masmorras. Não por um senti­mento benevolente de perdão ou por uma crença abnegada no poder de recuperação humana, mas por uma ardilosa interpretação das normas vigentes. Delinquentes de toda a es­pécie a quem remistes da pena, hoje libertos de punição, zombam, sob tua retumbante indiferença, dos tolos que se pautam em princípios e honradez.

    Vivem os justos à margem das formalidades legais que queres agrilhoar os cidadãos, a fim de emparelhares todos pelo mesmo nível de calhordice de que imaginas serem, por na­tureza, dotados. Por certo, espelhando tua maneira de te com­portar e de enxergares os homens para necessitarem de tua mediadora e interesseira presença,

    Sob o manto do teu venerável ‘estado de direito’, corruptos, patifes, ladrões de todas as espécies ascendem aos postos de direção com a tua máxima leniência, amparando-os com a força irrefutável das brechas da lei, aplicando-lhes impiedosamente draconiana indulgência e intolerância zero. Cobrindo a impunidade com o manto legalista da imu­nidade.

    De quem é a culpa? “Dos legisladores, do governo, da polícia, da falta de juízes, da falta de vagas no sistema prisional, da falta de investimento, da má distribuição da renda, do desemprego, da falta de políticas públicas, dos baixos salários, da alta dos juros, do neoliberalismo, da crise do euro, da colonização portuguesa, da gripe suína, do derretimento das calotas polares”, bradas indignado. Tu, homo vermis, és o único triplamente qualificado como “not guilty” nessa história. Justo tu! “Por falta de provas”, provas.

    Todo teu empenho é de não punir. Inocentes ou culpa­dos, pouco importa. ‘In dubio pro reo’, desde que teus honorá­rios sejam quitados ‘in specie’ com correção, exatidão, integri­dade e… justiça.

    E assim, pelos mais variados pretextos, vais libertan­do das grades todos os poderosos tubarões, reservando os horrores dos calabouços aos despossuídos que não participam do pecúlio que sustenta a devassidão moral que apadrinhas, consagrando esse país como o paraíso da impunidade.

    Deixa de hipocrisia. A quem pretendes enganar dizen­do que és a fonte da Justiça? Teu ofício é apenas advogar em prol de vermes, devolvendo­-lhes em serviços pérfidos o vil metal que banca o suntuoso padrão de vida que ostentas. A verdadeira justiça é o oposto de ti. É tornar o mundo digno, decente, com as pessoas podendo se olhar de frente, sem dissimulações, confian­do umas nas outras. Prescindindo de teus sórdidos préstimos.

    Justiça seja feita: quem te sustenta, respeitável biltre, são apenas os safados. Crápulas que, dispensando nobres considerações éticas, estudam teus intrincados preceitos e se formam doutores para assimilar os meios legais, penais, constitucionais e amorais de permanecer impunes e qualificarem-se a ingressar em tuas ro­dinhas infames. Partilharem do papo do cafezinho do fórum. Onde, restritas às indevassáveis paredes que os protegem, ro­lam torpezas inimagináveis. Tornam-se teus amigos e cupinchas. Uma corporação fechada de rábulas parasitas. Justamente!

    Os princípios de retidão e civilidade trazemo-los dentro de nós. Num mundo de justos, tua justiça não se ajusta. Gente honrada entende-se entre si, sem necessitar da tua protocolar intermediação. Bastam os princípios. Quem carece de lei são os que dela vivem à margem. Se para os honrados, é des­necessária e para os bandidos, ineficaz, para os da escória que integras, é verba no bolso.

    Data vênia, vai pra p* que te pariu.

  • Considerações heterodoxas sobre a mulher ideal

    O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decidia nada (a não ser, por exemplo, com que plantas aromáticas iria lavar os pés do marido), era necessário compensar essa inferioridade dando a ela contornos ideais. Nas cantigas, a mulher não é a escrava do cotidiano — é a senhora, ou a “mia senhor”. Esse tipo de culto se limitava ao plano da arte, claro; no dia a dia, a discriminação continuava a mesma.

    Do trovadorismo a imagem da mulher ideal passou ao Romantismo, que lhe acrescentou traços de santidade e morbidez. Em vez de “senhora”, ela virou santa, diva, anjo. Além de adquirir esse aspecto espiritualizado, apresentava-se pálida, clorótica, enfermiça. Freud a considerou uma representação da morte.

    Imagem da morte ou não, o fato é que os homens a perseguem. Como não a encontram, pensam que ela não existe. Engano. A mulher ideal existe, sim. Só não a encontramos porque, no momento em que a achamos, ela se torna real. Daí…

    É possível conhecer a mulher ideal mesmo que ela, acercando-se de você, não fale nada. Ou melhor: sobretudo se não falar nada, pois falando ela pode quebrar o encanto. Dirá coisas prosaicas como “nasceu uma espinha no meu rosto”, “ontem vomitei aquela buchada” ou “sou fã de Michel Teló”.

    Existe a teoria de que não achamos a mulher ideal porque, sendo o mundo muito grande, ela pode estar a milhares de quilômetros de onde vivemos. É possível que alguém more no Brasil e sua mulher ideal esteja, por exemplo, no Kuwait, namorando um sheik ou coisa parecida. A maioria dos homens tem que se contentar com a mulher viável, possível, ao alcance da mão (e de outras partes do corpo, é claro). Felizes são aqueles que nascem onde sua mulher ideal se encontra. Mas dizem que, quando isso acontece, alguma circunstância a faz mudar de lugar.

    Que características procuramos na mulher ideal? Compreensão infinita, tolerância absoluta, beleza perene. Ela deve ser irrepreensível, não repreensiva, e estar sempre pronta para o amor mesmo que tenha passado o dia à beira do fogão ou limpando o cocô das crianças.  

    Existe um teste simples para você saber se a mulher com quem se pretende casar é mesmo a ideal (embora haja algum paradoxo nisso; ninguém se casa com a mulher ideal. Ela existe para ser objeto de uma grande paixão). O teste é: não compareça a um compromisso combinado, saia com amigos em vez de sair com ela, esqueça quando ela aniversaria, diga que a sua mãe (e não ela) é a pessoa mais importante para você. Se ela quiser matá-lo depois de ouvir coisas como essas, é porque não se trata da mulher ideal. Se apenas botar uma cara feia, aproveite, pois você não vai encontrar outra que reaja de forma tão branda.

    A mulher ideal, como todos os mitos, foi criada para se constituir em referência. Lembra outro mito, o da “mulher fatal”, devoradora de corações, com quem a maioria das outras mulheres gostaria de se confundir. Não a rejeitemos, pois a função dos mitos é tornar suportável a realidade. Como, afinal de contas, se contentar com a mulher possível sem imaginar que em algum lugar do mundo se encarna aquela miragem? E que ela só não chegou até nós por um capricho da sorte?

  • O maquinista

    Na quarta-feira de cinzas, levantou às cinco da manhã e encontrou um braço de sua mãe estendido no sofá. Ubiratã Odorico Araújo Souza e Silva, ou Bira do Trem, como era chamado, tinha horário para cumprir. Era maquinista de um dos poucos trens que ainda funcionavam na região. Sua primeira viagem iniciava às seis. Não teve muito tempo para conjecturar o que fazer, então puxou o braço para o canto do sofá e o deixou por ali mesmo.

    Naquele dia não conseguiu desviar o pensamento dos acontecimentos matutinos. Em plena quarta-feira de cinzas. Não fosse ele um maquinista exemplar, sem ter uma única vez faltado ao trabalho em quarenta anos, talvez tomasse alguma atitude. Quando chegou em casa, por volta das oito horas da noite, antes de preparar o seu sanduíche, se sentou ao lado daquele braço, mirando-o por um longo tempo, sem tocá-lo. Naquela noite não leu as colunas esportivas do jornal que trazia da estação, nem ouviu o seu velho disco do Amado Batista. Dormiu sem sonhos até o despertador tocar.

    Na quinta-feira, levantou às cinco da manhã e encontrou a perna do seu pai estendida no sofá. De novo ficou a conjecturar o que faria com aquilo. Desta vez, inclusive, quase se atrasou, mas o trem partiu exatamente no horário previsto, conduzido por um maquinista esbaforido e preocupado com esses deslizes. Nunca foi disso, não seria agora, com quarenta anos de Companhia, que sujaria sua ficha. Era devoto do trabalho. Jamais ficara aborrecido ali, mesmo quando pedia a contratação de um maquinista auxiliar ao chefe, que invertia a situação com vários elogios, batia em suas costas e o levava à porta. Um camarada gentil, apesar de tudo.

    Naquela noite forrou um canto da casa com papelão velho e colocou ali o braço da mãe e a perna do pai. Gostava de ler as colunas esportivas no sofá, aqueles membros tiravam-lhe a atenção. Na sexta-feira, levantou às cinco da manhã e encontrou os olhos de sua mãe estendidos no sofá. Não perdeu tempo com eles, deixou-os com os outros pedaços no papelão velho e partiu no horário para a estação. O dia correu normalmente.

    No sábado, levantou às cinco da manhã e encontrou a caixa torácica do seu pai estendida no sofá. No domingo, foi a outra perna, depois a mão, o pé, as orelhas, e assim os dias seguiram trazendo pedaços grandes e pequenos que pareciam se completar. Na manhã em que nenhuma peça apareceu sobre o sofá, Bira comprou linhas reforçadas numa loja de artigos para pesca. A páscoa estava logo ali, ele mesmo costuraria o seu presente.

    Achou o espectro parecido consigo. Tamanho e peso semelhantes, não precisaria comprar roupas porque as suas serviriam. As roupas ocultariam inclusive as genitálias do pai, que se negou a cerzir, deixando ali um espaço vazio encoberto pelas calças, presas por um cinto bem apertado. Pensou em chamá-lo de Frank, mas desistiu e deu-lhe o nome do irmão, Álvaro. Passou o feriado contando ao irmão sua história de vida e o orgulho que sentia por ser o mais velho maquinista da Companhia. A vida, no fim das contas, tinha lhe sido generosa. O irmão era um bom ouvinte.

    Resolveu, por fim, levá-lo para conhecer os trilhos. A cadeira ao seu lado nunca fora ocupada nos quarenta anos de empresa. Álvaro, certamente, gostaria de ver as belas paisagens, os túneis e as pontes pelas quais o trem passava todos os dias. Enquanto viajavam, Bira relatava as histórias de cada trecho, contando inclusive sobre quando acabava por esmagar cachorros amarrados por ali. Não omitiu sequer as quatro vezes em que pessoas se jogaram nos trilhos, bem na sua frente, nada podendo fazer, a não ser deixá-los em pedaços. São coisas do ofício, o chefe dizia, às vezes passamos por situações complicadas no trabalho.

    Com o irmão por perto, Bira optou por requerer a aposentadoria, algo que nunca antes lhe passara pela cabeça. Gostava do trabalho. Sentia orgulho de si mesmo. Ensaiou em casa, mesmo na presença de Álvaro, o discurso que faria na Companhia. O chefe não gostou da ideia, mas acabou aceitando e pedindo apenas para que Bira gentilmente permanecesse por mais uma semana e ensinasse o ofício ao novo maquinista. Bira concordou de pronto, afinal, tinha muita experiência e gostaria de passá-la adiante, embora estivesse ansioso pelo tempo livre com o irmão. Foi no terceiro dia, ao acompanhar o novo maquinista, que o trem descarrilhou. O irmão o aguardou sentado no sofá e nem sequer estranhou a demora. Ficou por ali, dias e dias, esperando, sempre esperando.

  • Nesse Carnaval vou me fantasiar de Eunice Paiva

    O Carnaval tem raízes em festividades pagãs, como as Saturnálias romanas, nas quais os papéis sociais eram temporariamente invertidos e as pessoas se entregavam a banquetes, bebidas e celebrações sem restrições.

    Celebrado em inúmeros países até os dias de hoje, cada local tem uma maneira própria de celebração, misturando influências históricas, folclóricas e contemporâneas. O Carnaval de Oruro, na Bolívia, por exemplo, tem forte influência indígena e religiosa e a “Diablada” é a dança mais emblemática, representando a luta entre o bem e o mal. Em Cádiz, na Espanha, a festividade se destaca pela sátira das “comparsas” e “chirigotas”, que apresentam canções e paródias sobre política e cultura.

    Já no Brasil, a “folia” (palavra que significa loucura, diversão frenética) de Carnaval é essencialmente um evento que une pessoas de diferentes classes sociais, promovendo um senso de comunidade e pertencimento. Ao som do samba, do frevo e maracatu, é um espaço de manifestação artística e política, onde a alegria também pode servir para questionar e criticar livremente a sociedade.

    O tradicional uso de máscaras e fantasias simboliza essa liberdade, ajudando as pessoas a se sentirem mais à vontade portanto uma identidade diferente por alguns dias.

    Por isso mesmo, escolhi para esse ano me fantasiar (mesmo que só espiritualmente) de Eunice Paiva.

    Caracterizações de Fernanda Torres no figurino vermelho de bolinhas que ficou emblemático em Tapas e Beijos, fantasias da estatueta do Globo de Ouro, e outras criações humorísticas em torna das frases que ela pronunciou nas recentes entrevistas viraram febre de brasilidade nesse Carnaval de 2025.

    Compartilho da alegria, torcida e expectativa a respeito da premiação do Oscar nesse domingo e da força que uma manifestação de rua tão genuína pode trazer para recuperar o orgulho do cinema brasileiro, com o humor e criatividade típicos de nosso povo. Mas… escolhi me fantasiar de Eunice Paiva. Acho que a euforia do prêmio não pode ofuscar a importância da tragédia vivida pela família Paiva, reportada com tanta maestria e delicadeza por Walter Salles em Ainda Estou Aqui. Não pode deixar de homenagear a resiliência, coragem e dignidade com que essa mulher tratou o esfacelamento de tudo aquilo que lhe trazia segurança, alegria e conforto.

    Por isso mesmo, nesse Carnaval, ao ler os noticiários nada promissores em relação ao extremismo que está se configurando ao redor do mundo, vou posar de Eunice Paiva e dizer… Sorriam!

  • Romantismo anárquico

    Cerâmicas bejes, com um rejunte que nem se faz perceber, emolduram 1/4 de circunferência de uma toalha de Natal, assim disposta junto ao chão, em plena manhã nublada de sábado de Carnaval. Uma xícara moldada pretenciosamente orgânica, um falso orgânico, um orgânico em linha de produção, repousa sem o seu pires sobre o tecido dobrado, com viéis vermelho. Um café o está preenchendo, e a
    fumaça abraça um ramo de Alecrim, há o registro do envolvimento de ambos nas ondulações do líquido, escuro, quase confundindo-se com a própria xícara. O Alecrim faz as vezes de uma colher, mexendo um café sem açúcar.

    Café com aroma de alecrim, picnic solitário e instantâneo no chão da cozinha. Magia que preenche uma rotina, para que esta não exista, padrão de si. Rituais únicos. Anarquia poética.

    “Não vamos morrer por falta de coisas admiráveis, mas por falta de admirá-las”.
    Chesterton

    Memórias como pedaços do que somos, partículas palpáveis, feitas do mesmo material que as estrelas. Somos a explosão de partículas, nossas memórias, as memórias de nossos pais, avós, cidade, imenso planeta. Somos colagens belíssimas de micropartículas interestrelares, por vezes de galáxias antes impossíveis de se misturar, anos luz distantes. Somos arte. Somos instantes eternos, milagres pulsantes. Somos, além: despedidas. A todo tempo. Em todos os lugares. Somos instantes. Um breve momento em que se saboreia, com o congelar do tempo e o fechar dos olhos, o cheiro inesquecível do perfume da Dama da Noite, flor roxeada no meio de uma rua de pedestres, silenciosa no tarde das horas, que testemunham um pai ensinar ao seu filho como saborear as miúdezas de algo singelo e poderoso, beleza como promessa de se passar adiante, geração a geração. A Dama da Noite, branca, repousa e cresce as folhagens em um vaso plástico reciclado na minha varanda, sem brotar, como da primeira vez, anos antes, no aguardo, não se sabe do quê.

    Olfato. Visão. Tato.
    Paladar. Audição.

    Memória deveria pertencer ao rol dos sentidos, sexto membro. Ela não é um, tampouco outro. Por vezes os cinco, simultaneamente. Sem sombras de dúvida é um sentido, sentido da vida, do existir.

    “Estou me tornando um passageiro. E eu não sou um passageiro”.

    Filmes, pessoas e situações aparecem como resultado dos ouvidos atentos de uma tecnologia para melhorar nossas experiência de vida; ela é anterior às inteligências artificiais, e responde pelo nome de acaso. ‘Memórias de um Amor’ é uma película incrivelmente transbordante, que nos traz personagens passageiros de um veículo do qual não queriam ter embarcado.

    Memória é, na concepção que vou lhes apresentar agora, sinônimo de apego.

    Sou apegada às coisas, aos momentos, às pessoas. Herdei tal característica do meu pai, que, sem se dar conta em vida, transformou nossa morada em um verdadeiro “sebo” – definição da querida salvadora, que aparece de quando em quando para domar a bagunça e espantar o pó e os pelos do Zeca. Vassoura e
    microfibras em punho, pôs álcool, água sanitária e sacolas de lixo à obra, resgatando a dignidade arquitetônica daquele apartamento de mais de 100m², onde habitam memórias de cinco vidas, móveis para cinco casas e minha mãe. Pequeno demais para a vontade imensa de se viver que era o meu pai.

    Coisas, registros, pessoas; tenho uma queda por tudo o que é analógico, principalmente a relação que o tempo imprime às mesmas coisas, registros, pessoas. E aqui entendo a relação entre amar e a intensidade das reminiscências; não tem jeito: amo a risada dos meus amigos e, se me chegam por áudio em um smartphone, sinto-me compelida a escutá-los como se rebobinasse uma fita cassete insistentemente, a ponto de romper a fita magnética, ou arranhar um disco de vinil, fossem esses os meios. O som, as palavras, as vozes que atravessam o tempo me transportam ao passado-refúgio. Amo verdadeiramente os meus amigos. Ao voltar de Perugia, um mês que já se completou em 15 anos, colei os rostos de cada um dos que lá fiz, unidos pelo aprendizado da língua italiana, cujos endereços estão espalhados por todo o mundo, no pilar semi enterrado na parede do meu apartamento em Botafogo, acima da mesa de refeições. Assim, arrastava o prazer de tomar café todas as manhãs em suas presenças.

    Sou apaixonada por refeições sem pressa e arrumadas para o ato de se comer, saboreando tudo ao redor. Só os que me conhecem sabem de sua importância e simbolismo – e como transformei uma
    inauguração da árvore de Natal da Lagoa Rodrigo de Freitas em um aniversário mais do que emblemático, um entra e sai de amigos, dedilhar de violões, toalha xadrez, frutas e muitos quitutes, fogos de artifícios… dificilmente um picnic se tornou memória em tantas pessoas, como aquele – talvez o que teve de ser recolhido às pressas, no ano seguinte, com tenda e tudo, da Praia Vermelha, por conta de uma (baita) tempestade. Meu diminuto apartamento em Botafogo se transformou em uma releitura da confraternização ao ar livre.

    Açaís, cervejas, vinhos e limãos sicilianos. Pizzas. Karaokes/ palcos/ microfones; amo MUITO cafés. Amo mais ainda reencontros. Sou techfriendly por necessidade. Amo a vida. Amo gente (ok, ok, talvez menos do que o que sinto por cachorros – e percebo que me tornei o discurso da minha avó paterna, o que me fazia torcer o nariz).

    Amo, ainda, e talvez mais que todos os outros: cartas. Meu maior tesouro repousa em uma caixa de papelão em formato de mala – que já quase cospe papéis mais velhos que meus afilhados -, verdadeira guardiã das memórias mais preciosas. Insubstituíveis. Primeiro amor. Primeiros registros da escrita. Primeiro namoradinho. Primeiro namorado. Quase todos os outros à exceção do primeiro casamento, que evoluiu de memória ao posto de uma importante lição, apenas. Verdade seja dita, lhe sou imensamente grata pelo amadurecimento forçado e finalmente aprender que existem pessoas passageiras. Compreendi a necessidade de respeitar meus próprios limites, a limitar o acesso, consciente, de quem tira os sapatos e transpõe a porta da minha casa.

    Dentro da caixa, não estão apenas vestígios dos romances que se foram; se encontram meus melhores amigos, a “sogra” que certamente foi minha mãe em outras vidas, todos os muitos e imprescindíveis bilhetes e cartinhas dos meus pais – e do papai Noel, e do coelhinho da Páscoa. Os primeiros registros da minha irmã, nossos primeiros bilhetes. Cartões de aniversário e Natal da vovó, sempre acompanhados de um “tico-tico”. O último bilhetinho da minha avó austríaca, a melhor vizinha, que me deixou primos e tias de alma como legado. Papéis dobrados com desculpas entre primas dinda/afilhada (como brigávamos e nos ameaçávamos com “não sou mais sua dinda”, e vice-versa!). Bilhetes de “deixei o café preparado, bom dia”, da tia- mãe que me abrigou no início da faculdade. Bilhetes de amigo contendo bombom durante a aula da Pós, para amenizar minha TPM… tantas recordações… medalhas, páginas de jornais, entrevistas, prêmios… Há ainda papéis que são lembranças do que já não existe, como o embrulho de balas cujo sabor é inesquecível, passagens de ônibus com valores que beiram o surrealismo na cotação atual, de tão baratos. Cartões fidelidade de supermercados. Minha primeira viagem de avião. O recibo do primeiro aluguel da vida. A primeira compra na Italia. Camisas assinadas por todos das turmas, sempre ao final de cada série. Declarações de amizade de coleguinhas que não sei nem por onde andam. Cartas que se desenrolam em mais de um metro de papel, simbólicas entre as meninas da minha época. Elos atemporais. Bilhetes de museus. Fotografias 3×4. Polaroids, negativos, fotos 10×15, autógrafos de celebridades. Ingressos de cinema cuja tinta já impossibilita dizer de qual filme se trata – e quando. Provas de que o tempo passa deixando marcas, e que, elas mesmas se modificam. Aqui, nas cartinhas, a felicidade me espera, e me arranca lágrimas e risadas, sempre.

    Eu amo a vida que eu construi e as memórias que me construíram. Minhas lágrimas, percalços, dores, conquistas, fundos do poço, reconquistas. Meus erros, que eram primeiros passos em outras direções. Meu passado, amo-te, como amo meus livros! Biblioteca eternamente ao alcance do coração, que me empodera de mim mesma, me lembra que os meus dons são importantes – e não permite que se percam. Lanterna mágica a iluminar os momentos obscuros da estrada que percorro sozinha, de buracos e belezas necessárias.

    Um barulho irrompe pelos vidros, vibrantes e fechados das portas-janelas; sombras de serpentinas e confetes imaginários. Minha folia de 2025 não tem espaço para alegorias e adereços; fantasiei-me das minhas profundidades. Embriaguei-me dos meus sentimentos mais verdadeiros. Fiz picnic com novos amigos, abracei os de sempre, tomei vinho com cartas fresquinhas e chorei com amigos inesperados. Não preciso das fuligens, assim como carnavais não precisam de fins. Como trunfo, posso pedir reforço a querida salvadora, ocasionalmente a postos com os materiais de limpeza. Meus planos são outros, percorrem calendários e sites de viagens. Há sempre o amanhã. Há sempre recursos. E há de existir sempre uma Bia por aqui, como um você, para você, com você, por você. Eu me permito ser meu eterno e original carnaval sem quartas-feiras de cinzas.

  • Somos coisa

    De cabeça baixa andamos. Com as mãos nas teclas, dirigimos. Com um dispositivo móvel, atravessamos a rua.

    E não vemos, não sentimos, não percebemos a própria vida… tão imersos estamos no mundo digital!

    E consumimos imagens e vídeos e textos os mais variados.

    E rimos e choramos com tudo o que nos é mostrado na telinha. Com o movimento dos dedos, vamos assistindo, assistindo, pulando e assistindo até que mais um dia chegue ao final sem que vivêssemos o dia de fato!

    Sem percebermos, vamos deixando nossa humanidade a cada dia. Não interagimos! Não nos arriscamos genuinamente. Tudo é a tela!

    E estamos mais impacientes porque tudo deve ser feito em uma velocidade absurda! Não há mais paciência para os processos da vida. Todo processo é lento e requer paciência! Paciência!???

    Não argumentamos, brigamos, discutimos e acusamos sem ao menos entender do assunto. Viramos especialistas em tudo e, sobretudo, em política!

    Ah! Que saudade dos pés molhados ao andar pela praia. Que perfume gostoso das árvores e das folhas e flores no caminho à noite! E o cheiro de terra molhada então?

    Ah! Que saudade de conversas longas com os amigos e sem preocupação de tempo.

    Que saudade de fazer as coisas sem ter a obrigação, obsessão, compulsão pela tela!

    Que saudade da vida humana!

    Esta vida de agora, robótica e frenética, não é vida não! Somos mais objetos que seres! Somos coisa! E cada vez mais, insignificantes!

    Brutalizados pelas ditas polarizações, vamos colocando camadas e mais camadas de superficialidades, de verdades fragmentadas e muita afetação!

    O indivíduo pós-moderno é ele todo um objeto pulsante, eletrificado e plasmado ao mundo atual.

    Como diria o poeta mineiro, Somos a coisa coisamente!

  • IMAGINE

    (“Imagine there’s no countries” – John Lennon)

    Desde crianças, a visão que temos desse mundão que nos abriga, é a de uma colcha de retalhos multicolorida em que cada corzinha representa um país. Tendo como referência o Atlas Geográfico, foi-nos ensinado na escola que cada centímetro quadrado do território do globo pertence a um desses países.

    Não sei como nem por quem foi firmado o acordo que determinou que sou obrigado a obedecer aos governantes da nação em que o pedacinho do solo que habito está encravado. Só sei que não fui consultado.

    Pelo que me lembro das aulas de História, não foi sempre assim. O tal ‘Estado Nação’ é uma figura que surgiu após o fim da Idade Média. Deixo a incumbência de explicar as origens para os historiadores de plantão. Sou um mero cronista rebelde, inconformado em aceitar que as coisas sejam dessa maneira.

    Para dizer a verdade, tenho bastante antipatia por essa concepção. Ao contrário do senso comum, não me entusiasmo em celebrar ideais como ‘patriotismo’ e ‘nacionalismo’. Tampouco me ufano com os olhos cheios de lágrimas, ao ver glorificados os símbolos pátrios. Acho que essas manifestações arcaicas só se prestam a separar as pessoas umas das outras. No máximo, torço pela seleção brasileira na Copa. Mas, passado o evento, volto a me considerar, acima de tudo, cidadão dessa aldeia global chamada Terra. Esse lindo planeta azul que, a despeito das agressões praticadas pelos humanos, segue formoso, cumprindo diligentemente sua jornada no espaço sideral e cuja deslumbrante beleza inspirou Caetano a criar-lhe versos como “por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria”.

    Acho que sentimentos exacerbados de vangloriar a pátria só se prestam a estimular valores nocivos como a competição, a hegemonia e a exclusão que levam a guerras e fazem os governos gastar bilhões na aquisição de equipamentos bélicos letais e armas de extermínio em massa, sugando verbas que poderiam ser destinados à saúde, à educação e a tornar as pessoas mais felizes. Desviando recursos da vida para a morte. Considero muito mais nobres valores como a cooperação, a solidariedade e a humanidade.

    Não consigo entender por que um ‘compatriota’ que teve a ventura de ser parido no território situado entre o Oiapoque e o Chuí deva ser considerado mais meu irmão do que um aborígene australiano que vive no outro extremo dos mares. São ambos indivíduos pertencentes à mesma espécie, diferenciados apenas pelas peculiaridades que fazem da raça humana esse rico painel de diversidade, onde criaturas semelhantes permitem-se ser tão maravilhosamente diferentes. Quero amar a todos igualmente, com suas abençoadas dessemelhanças, afinal somos todos filhos únicos do mesmo Deus (ou seja qual for a entidade divina de sua preferência) que, ao nos dar a bênção da vida, não estava preocupado em checar nosso pedigree ou a qualidade do nosso DNA.

    Vou além. Acho que mesmo as outras categorias de vida, animais, plantas e até as formas inanimadas como pedras, montanhas, nuvens, rios e o ar que respiramos, devem também ser objetos de devoção e reverência pois fazem parte da nossa vida na Terra, o astro mãe que generosamente acolheu nossa existência, sem que a ninguém tivesse sido solicitado  passaporte ou documento de identidade.

    A natureza não impôs segregação entre as pessoas. Foram os humanos que a si próprios criaram barreiras artificiais, demarcando territórios e impondo tratamentos diferenciados. A apartação que surgiu, foi reforçada pela necessidade inata dos homens se agruparem em bandos que rivalizam entre si. Essa divisão parece atender a esse desejo gregário do indivíduo de se afirmar como membro de um grupo que se sobressaia sobre outros grupos: tribos, gangues, torcidas organizadas, religiões, partidos políticos, nações.

    Não nego que as chamadas ‘nações’ possam ter em algum momento cumprido o louvável propósito de oferecer suporte para que a comunidade fizesse prevalecer os interesses coletivos sobre a ganância individual. Penso, todavia, que, num estágio mais elevado da civilização, esse papel deveria ser exercido por uma entidade supranacional, uma administração “planetária” que se sobreponha aos governos de cada país. Sem dúvida, me parece eticamente superior uma sociedade onde todos os indivíduos, independente de que região procedam, sejam tratados em condições igualitárias e com os mesmos direitos e oportunidades.

    A miséria que impera nos recantos esquecidos da África, onde ocorrem massacres, proliferam vírus e o crescimento populacional está descontrolado, acabará mais dia menos dia voltando seus efeitos maléficos para todo o planeta. Legiões de imigrantes arriscam tudo para fugir do inferno em que suas vidas sem perspectivas estão inseridas para conseguir uma “boquinha” em países onde a condições não sejam tão degradantes. E não são muros ou manifestações xenófobas que estancarão tais fluxos. Afinal, queiramos ou não, somos todos passageiros dessa mesma nave do sistema solar e temos de fazer um esforço conjunto para preservá-la.

    Um mundo sem fronteiras, onde os interesses planetários se sobreponham aos interesses de cada nação não vai surgir nessa década nem nas próximas. Há muitos obstáculos para viabilizar essa utopia. Mas como disse John Lennon (“you may say I’m a dreamer, but I’m not the only one, I hope someday you’ll join us”), se juntarmos os sonhos e lutarmos por eles, quem sabe nossos netos possam viver num planeta onde a fraternidade universal esteja acima do orgulho nacional.

  • Carnavais

    Admiro o carnaval.

    A espera, o frenesi, os preparos do corpo — regimes, bronzeamentos, fortalecimentos. A rotina dos exercícios e treinos; a dedicação da passista em horas e horas de ensaios; o tratamento e implante de cabelos, cílios e o que mais puderem. A entrega do ritmista, a criatividade dos sambistas, as costureiras e suas fábricas de fantasias e adereços. Tudo isso compõe esse evento grandioso.

    Vou falar… admiro mesmo! Mais do que isso: fico perplexa.

    O carnaval me causa espanto… ou será que sou eu a própria estranheza?

    Como assim, não ser apaixonada por essa festa impressionante?

    Ignorar essa extraordinária celebração?

    Não, isso não deve ser normal!

    Volto no tempo, na minha meninice. Quem sabe lá eu tenha me encantado com uma serpentina ou com um brilho de purpurina no rosto… talvez uma sapatilha dourada, um saquinho de confete.

    Vasculho minhas lembranças, tento encontrar um sinal, uma pista… talvez o barulho de um tambor, o gemido de uma cuíca, a luz e o brilho daquele que é considerado “o maior espetáculo da terra.”

    Que besteira! Fui criança de cidade do interior, onde os bailes de carnaval eram exclusividade dos associados. Ainda assim, talvez tenha me assustado com a irreverência de um palhaço ou com algum moleque de máscara horripilante, saída dos gibis de terror.

    Por acaso, alguma mãe de coleguinha me terá convidado para um matinê ou bailinho vespertino?

    Carnaval. Essa festa tão linda, tão sonora, tão colorida, um evento grandioso, hipnotizante e inesquecível!

    Desisto. Procuro e não encontro — nem no passado longínquo, nem em lembranças esparsas e menos ainda nesta fase da vida — nada, nenhum sinal que justifique minha total incapacidade de ser tocada pela grandiosidade dessa festa.

    Ainda assim, desejo àqueles que aguardam o ano todo pelo “Grito de carnaval” que aproveitem a época, mas lembrem-se: ano que vem tem mais!

  • Dia do fico

    Toda segunda e quarta é dia de lutar por melhores condições de vida no futuro: dia de pilates. A motivação que me leva até lá, semanalmente, é equivalente ao ânimo de comprar um produto que não sei se chegará ao destino ou se terei tempo de desfrutar, mas compro por desencargo de consciência (vai que preciso…).

    Sigo o fluxo, sempre em frente, na busca de um envelhecimento ativo e saudável ainda que, naquela sala cheia de molas, pesos e caneleiras, eu encare a face sádica do tempo.

    Dona G chega acompanhada do marido. Passos miúdos, andar cambaleante de um corpo que teima em não aceitar comandos, nem os dela.

    Olhos de um verde aceso bailam sem rumo pelo espaço. O sorriso ingênuo grudado nos lábios delata a persistência de uma alegria que não se justifica mais. Tudo ali é passado.

    Presente só o silêncio do amanhã.

    A professora, pacientemente, explica os exercícios para Dona G. Suas palavras caem na cabeça da querida senhora feito chuva que não se espera.

    Fico ali a me perguntar: qual o sentido de tudo isso? No lugar dela, eu escolheria continuar cuidando de um corpo que me traiu de forma tão falsa ou gastaria meus dias sentada numa varanda, admirando, sem culpa, a natureza?

    A questão retorna com a dor de um haltere caindo no dedão do pé: qual o sentido de tudo isso?

    Não sei. Talvez a vida careça de um sentido inventado. Ou só seja possível vivê-la em estado de pura abstração. 

  • Jogo contra jogo

    Era para ser xadrez. Um jogo elegante e íntimo. Como se as mentes por instantes se vaporizassem se entrelaçando no espaço entre os dois.

    Peças brancas e pretas, com dois reis impávidos e duas rainhas poderosas. Ao redor seus respectivos exércitos prontos para matar e morrer. Sem contudo faltar a admiração mútua, parte integrante da relação dos dois. Elegante.

    Mas de uma hora para outra vira pôquer. As rainhas e os reis permanecem mas as cores foram alteradas.

    Onde antes havia um par de monarcas agora existem quatro pares. As peças se transmutaram quase em sua totalidade em números, a exceção de mais uma figura humana.

    As três dimensões do xadrez foram trocadas pela bidimensionalidade do carteado.

    A tensão e o raciocínio do jogo aumentaram nos dois motivados pela competição. Antes havia observação e tentativa de entender as jogadas do outro. Agora instalou-se outra forma de raciocínio ditado pela sorte.

    Cada ação do passado, as cartas que se vão, ganha mais intensidade no presente como forma de prever o futuro. A capacidade de memorizar os descartes é fundamental para tentar prever o que ainda está por vir. Incontrolável. A sorte tomou lugar da ação consciente.

    Quase que instantaneamente vem a necessidade de camuflar suas intenções. É preciso mascarar quem é você. E o que antes era para ser um ballet suave a dois se torna a meticulosa arte de dissimular. Sai o passo sincronizado e entra o blefe.

    A verdade passou a ser rara. Duvidar tornou-se regra.

    As palavras se tornaram cartas que são posicionadas cuidadosamente de forma a manipular as reações da outra pessoa.

    Cada descarte, uma reação. Cada reação, um blefe, um engano.

    A intensidade da troca de cartas do jogo afasta da lembrança os movimentos suaves das peças deslizando no tabuleiro. Sem perceber, os dois se distanciam.

    O tempo apagou os rastros do caminho que eles percorreram entre o tabuleiro de xadrez e a mesa de pôquer. O caminho de volta, se perdeu. Onde um dia foram duas pessoas próximas e íntimas agora são somente mais duas pessoas. Sem nada de especial, nem nada que os identifique. Mais dois na multidão.

  • Em torno de “Conclave”

    Recentemente assisti a “Conclave”, um dos candidatos ao Oscar 2025. O filme trata da escolha de um novo papa por cardeais de várias partes do mundo, como é próprio desse tipo de pleito, e chama a atenção pelas disputas que existem entre eles. Nesses embates transparece a diversidade de posições dentro da Igreja (basicamente, entre os progressistas e os retrógrados), mas sobretudo ressalta-se um traço que é peculiar aos seres humanos – a busca pelo poder.

    O filme me fez pensar em Antonio Carlos Villaça. Para quem não sabe, Villaça era um dos maiores conhecedores do pensamento católico no Brasil e no mundo. Conhecia a fundo a obra de pensadores como Bernanos, Léon Bloy, Tomás de Aquino, Jacques Maritain. Em seus escritos pulsa o dilema vivenciado pela intelectualidade católica brasileira ao longo do século passado, a qual se dividia entre a participação política e o recolhimento à vida espiritual. Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção eram os maiores representantes de cada uma dessas posições.

    Villaça foi um ser fronteiriço, viveu na zona do quase – quase padre secular, quase frade dominicano, quase monge beneditino e, no fim, escritor convicto. Se jamais foi tocado pela Graça, foi no entanto bafejado pelo Estilo, que também é um dom conferido a poucos. A literatura permitiu-lhe ver sem preconceito ou sectarismo o que estava para além das ideias em confronto – os frágeis seres humanos, divididos entre a aspiração pelo transcendente e as tentações da carne.

    O mais importante livro de memórias de Villaça, “O nariz do morto”, é o relato do seu desencanto com a vida monástica. Ele entrara no mosteiro cheio de ideais, estimulado por uma visão piedosa e sobretudo estética do catolicismo, e lá se deparou com uma realidade tão prosaica, e por vezes mesquinha, quanto a do mundo leigo. Arengas, intrigas, ambições vorazes faziam da instituição monástica uma reedição do que existia no espaço mundano.

    Villaça revela isso com um desespero e uma pungência que angustiam, sobretudo porque transparece de suas palavras um ressentimento doloroso. Na página 131 de “O nariz do morto”, por exemplo, ele apresenta o saldo da sua frustrada incursão na vida religiosa: “Aprendera a ler, razoavelmente, nesse dicionário de absurdos que é a clausura monástica – morada do nada. Aprendi. Fiz o que no prostíbulo faz a desprevenida prostituta: aprendi o alfabeto da humana desgraça /…/ Sei com os ladrões e as prostitutas, os presos e os bêbados, qual é o itinerário do homem.”

    O livro me impressionou tanto, que o escolhi para tema da minha dissertação de Mestrado – “Travessia do mosteiro; considerações sobre a autobiografia em Antonio Carlos Villaça”. O trabalho teve como orientador o professor Anazildo Vasconcelos da Silva e foi defendido no início de 1983, na UFRJ. Da banca examinadora participaram, além do orientador, os professores Gilberto Mendonça Teles e Manuel Antônio de Castro. De Gilberto, recentemente falecido, tive o prazer de ouvir a indicação de que a monografia fosse publicada – o que ocorreu ainda quando eu estava no Rio, pela “Edições Tagore”.  

    Várias vezes conversei sobre o “O nariz do morto” com o seu autor, em fraternais encontros no hotel de Santa Teresa onde ele residia. As conversas tinham a franqueza de amigos e esclareciam determinados aspectos da narrativa. Por exemplo: o nariz era o pênis; e o morto era ele, Villaça, que perdeu trinta quilos durante o tempo em que ficou no mosteiro. Nessa fase de crise urinava continuamente, devido à ansiedade, e tanta água perdida afinou-lhe o perfil. Depois voltaria a ser o gordo cheio de bonomia que aprendemos a amar. O gordo generoso, de riso cavo, que fez do conhecimento dos homens um meio de se tornar bom.

    O aspecto de “Conclave” que mais me fez pensar no autor de “O nariz do morto” foi o da disputa pelo poder. Mais de uma vez ouvi dele como era intenso, nos ambientes que frequentou, o desejo de prevalecer sobre os outros e galgar posições de liderança. Muitos chegavam a usar para isso a humildade. Aparentando-se dotados dessa virtude essencialmente cristã, poderiam ser alvo de admiração e prestígio.

    A observação de tais pessoas leva o narrador a reflexões desalentadas, como a que segue: “O líder ama o poder, quer apenas o poder. O poder para nada, para se olhar nele, como num espelho monstruoso. O poder é o nada. O líder quer o nada – e, para isso, é capaz de tudo, de vender seus filhos vender o céu, o teto de estrelas e de nuvem, a própria vida.?” (p. 251)

    No filme, um exemplo extremo da ambição pelo poder é o Cardeal Tremblay; para tirar do páreo um dos concorrentes mais votados, ele não hesita em revelar um antigo caso amoroso do rival, de que resultara um filho. Com isso, vão por água abaixo as pretensões do Cardeal Adeyemi ao papado. Se assistisse à película, Villaça dirigiria a figuras como Tremblay a sua crítica e o seu ressentimento, pois de algum modo seriam responsáveis pelo ceticismo que faz o narrador hesitantemente duvidar: “Porque Deus parece… talvez… pressinto, desconfio, é esquisito, talvez, possivelmente, será que existe mesmo?” (p. 99)

    Tal ceticismo parece se reproduzir na crise vocacional do Cardeal Lawrence, magnificamente interpretado por Ralph Fiennes. Sendo o mais antigo na função cardinalícia, cabe-lhe conduzir o Conclave e tentar harmonizar as pretensões e as ideologias em conflito. Tal como Lawrence, o narrador de “O nariz do morto” considera que não há certezas. E endossaria de bom grado estas palavras do decano, que resumem de forma brilhante o desafio presente na crença religiosa: “Se há certeza, não há mistério. E, se não há mistério, não pode haver fé.”

  • Persistir na presença solitária!

    Não há necessidade de esperar tanto tempo para cair na real, ou no chão, como ocorreu com o meteorito contrito ordinário, santa filomena, que se alojou em nosso planeta após vagar solitariamente por 4,5 bilhões de anos no deep space.

    Ao esculpir sua vida dura como pedra, não sonhe com o além túmulo por causa de uma saudade imensa de alguém que se foi, porque o indivíduo “morde e assopra” e deixa os que ficaram por aqui “pisando em ovos” com uma incômoda impressão de impotência.

    Por isso, viver com a expectativa que somente após a morte exista amor e felicidade, pode ser arriscado para seus projetos nesse plano de agora.

    Erros fazem parte da escrita inclusive dos gênios, muitas experiências boas nasceram após uma lista de modificações durante o percurso de uma jornada.

    Leonardo da Vinci, por exemplo, esculpiu Moisés com chifres, após ler na Bíblia os detalhes de como ele desceu da montanha. Leonardo foi vítima de uma tradução mal feita da Bíblia, escrita por São Jeronimo, que ao invés de escrever Karan sobre a descida de Moisés, que significa adornado por feixes de luz, escreveu Keren, cabeça adornada por chifres. 

    E assim, nós, comuns mortais, apreciamos a escultura de Moisés com dois pequenos chifres na cabeça, tentando imaginar o porquê dessa alegoria acompanhando o profeta e líder mais importante da tradição judaico-cristã. 

    Dessa mesma forma o erro de qualquer outro pode ser a origem de uma atitude mal interpretada por toda uma vida.

    Mas não é por isso que você deva se amargurar e isolar de todos após alguns eventos de magnitude duvidosa. 

    No Japão os eremitas do século XXI que vivem numa caverna tecnológica, são chamados hikikomori que seria algo como “puxando para dentro”, de si. 

    Eles acabam por construir uma cova em suas almas de tanto persistir na presença solitária com seu umbigo. 

    A vida desses indivíduos é marcada pela exigência de um padrão que dificulta a ação de quem está ao redor. 

    Por isso que esse extremo não é bem-vindo para nossa saúde mental e social. 

    Bons e maus exemplos não nos tornam donos das coisas, as coisas é que são donas de nós, e a vida acaba por girar em torno delas, que sequestram as emoções por instantes longos e amargos.

    Como o leitor é um autor duplicado, seja o centro de suas metas e sonhos virais, bem antes que o todo-poderoso lhe tome em seus braços, mesmo que você já tenha pago um preço caro em suas escolhas.

  • Ficar de repouso

    Desconheço três palavras do nosso idioma que, juntas, formam uma pequena sentença de morte. Em vida. Ela me assombra como uma prisão para maus comportamentos que parecem surgir até de vidas passadas. Um castigo para as travessuras, repouso para mim é inferno na terra e ainda me deixa de mau humor.

    Essa pequena frase que para muitos pode soar com um alívio no caos consegue me tirar totalmente do sério, apesar de serem necessárias, principalmente depois de uma cirurgia delicada que não foi exatamente como esperávamos. Ok. Mas para uma sagitariana com elemento “fogo no rabo” e ascendente em comichão, ficar de repouso é puro castigo. Com a mente inquieta e o corpo curioso, nada me deixa mais mal-humorada quanto não poder fazer qualquer coisa a toda e qualquer hora. Toda bobagem vira uma luta e as pequenas coisas se tornam um desafio de paciência que chegam a me dar nervoso.

    Inocentes vão dizer: aproveite esse tempo para ler e relaxar! Claro! Mas, e aquelas roupas no armário que teimam em se misturarem seguindo uma lógica que não é a minha? E as surpresas pela casa – em obra – que surgem apenas quando estamos por perto e incapacitadas de resolver? Mas, claro, temos uma lista de belos e cultuados filmes que sempre almejamos assistir e precisávamos exatamente desse momento tão reconfortante de repouso absoluto para realizar esse velho sonho. Mais inocência! No primeiro dia até vá, mas nos outros simplesmente perco o bom senso e me inebrio com vídeos de gatinhos e comédias bobas que parecem me acalmar os sentidos e me fazer esquecer o inesquecível: PRECISO FICAR DE REPOUSO.

    Resolvo então colocar o papo em dia. Ligo primeiro para os filhos. 10 minutos com um e quase 3 com o outro. Com o mais velho o papo até engrena, ele conta novidades, destila sua fina ironia e termina com um – Adeus! marcando claramente o seu tempo comigo e mostrando que ele tem – graças a Deus – mais o que fazer. O mais novo já atende com aquela voz entediada mostrando que não estava nem um pouco a fim de falar com a mãe. Tudo bem, tudo bem, tempo, planos, o que vai fazer hoje, te amo e tchau. Me contento com pouco. Pelo menos ainda me amam. Resolvo ligar para uma grande amiga que me pergunta sobre um bazar na nossa cidade. Estico a prosa o máximo que posso e ainda tenho uma outra chance: preciso ligar para minha mãe para mais informações sobre o tal bazar. Meia hora falando com a amiga e uma hora falando com a mãe – nunca pensei que fosse gostar tanto das suas redundâncias – já deu para passar o tempo e acalmar o coração.

    A noite vem e me inebrio com filmes até dormir no sofá. Na cama, lado certo para dormir, tampão protegendo o olho e a inquietude volta. Porque não conseguimos engatar o mesmo sono gostoso que já nos acalentava no sofá? O corpo deveria ter algum dispositivo que nos fizesse apenas mudar de lugar sem nos acordar. O sono continuava intacto e a mente calma não se abriria para novas possibilidades, como guloseimas escondidas espalhadas pela casa – esconderijos estratégico de chocolate para momentos de fúria ou tristeza – que são explorados a revelia apenas pelo fato deu estar em casa achando que tudo me convém. Disparates de gula na madrugada que cobram seu preço quando o repouso acaba.

    Tudo começou com um arsenal secreto para momentos de TPM, iniciativa que julguei ser da mais absoluta utilidade pública, principalmente para a saúde mental do meu marido. Fazia pequenas matulas de bombons e M&M´s e colocava naquele local no fundo do armário da cozinha que a maioria dos homens nem sabe que existe. Mas como toda prática leva a perfeição, comecei a elaborar novos esconderijos, cada vez mais ousados, mas que se mostraram ainda mais eficientes. O óbvio normalmente não é descoberto exatamente por ser óbvio. E me lembrei que havia comprado um pacote daquelas bolinhas mágicas de chocolate ao leite e branco antes da cirurgia. Com muita cautela, fui até o seu esconderijo e me deliciei com algumas tantas delícias vendo o último capítulo de Tieta. Prazeres mundanos que ainda valem à pena.

    No outro dia, mais jornais acumulados, revistas separadas, palavras cruzadas empilhadas ao lado da cama, todos à espera desse momento de paz e repouso. Menos eu. Me decido pelo livro do mês do meu clube de leitura e me deixo levar pela história de uma dona de casa italiana que começa a escrever um diário com os acontecimentos do seu dia a dia no pós segunda guerra mundial. Trivialidades da vida de toda mulher, mas com aquela profundidade que só boas escritoras conseguem imprimir. Enquanto isso, no Instagram, a vida acontece, os eventos transbordam, o sol é para todos e o céu azul me convida para mais. Tudo me aflige e me chama para fora. Leio mensagens de encontro entre amigas, cafés no meio da tarde, calçadas novas para explorar.

    Mas nego, sem dó nem piedade, me privando de tudo e todos para ficar no tal repouso.

    — Não posso fazer nada, doutora?

    — Não, apenas ler e ver televisão. Fica como se fosse uma velha.

    Já me sinto uma. Quase retruco: posso jogar bingo então? Mas prefiro não piorar a minha situação. Apesar de que, conheço algumas velinhas que são mais ativas que muitos jovens que vemos por aí. Idade é mesmo coisa da nossa cabeça. Mas os 50 ainda estão sendo digeridos por mim.

    Aproveita para descansar! Os amigos insistem. Não me sinto com mais tempo para descansar. Apesar de estar adorando algumas regalias que esses dias promovem, como café na cama e a falta de compromisso de dar conta de tudo, conto os minutos para poder fazer tudo que gosto de novo. Esse meio século – bem – vivido parece ter me atropelado, como se ligasse os motores para uma nova era. Os 50 chegaram com tudo e com ele uma sede imensa de mais. Vou descansar dormindo ou na sala de espera do dentista. Quero arte e movimento, expansão e criatividade; quero vida correndo, amor, amigos, filhos, sonhos… Tudo por perto, junto e misturado. Quero sair sem ter hora para voltar – sendo que às 10 já estou dormindo, claro – e emendar um compromisso no outro com sorriso no rosto e vento nos pés. Como o menino maluquinho. Ou uma menina que ainda posso ser.

    E, claro, com muito fogo no rabo!

    Que seja breve o meu repouso.

  • Dilema

    Uma decisão da maior importância para uma mulher é qual o formato vai dar para o seu penteado. Primeiro porque ele é um cartão de visitas, a primeira coisa que as outras mulheres vão reparar e comentar. Ele diz muito a respeito do estilo da pessoa, demonstra o quanto ela está antenada com as tendências da moda, e, muitas vezes, dependendo do grau de maldade das amigas “intimas”, é uma pista sobre o tipo de salão que a pessoa frequenta, ou seja, um salão de primeira ou de segunda linha.

    Até aí, nada de novo. Outro dia, porém, me vi em frente ao espelho, cabelos molhados e uma decisão a tomar: “devo pentear o meu cabelo com as pontas viradas para fora ou para dentro?” falta esclarecer que se trata de um cabelo bastante liso, portanto esse detalhe das pontas é que dá o toque ao visual.

    Comecei a pensar que essa escolha não é somente estética; existe aí algo mais subjetivo que norteia o ímpeto de virar as pontas para dentro ou para fora. Passei a lembrar em que momentos decidi pelo estilo mais Channel, e aqueles em que a decisão pendeu para o mais esvoaçante, ajudada por algumas fotos.

    A relação da direção das madeixas com o estado de espírito ficou claríssima! A escolha dos cabelos voltados para dentro estava relacionada a momentos de maior introspecção, maior formalidade, sugerindo até um certo romantismo.

    Os cabelos com as pontas jogadas ao vento estavam presentes em situações de alegria, diversão, informalidade, passavam uma impressão mais jovial.

    Essa descoberta me trouxe um sério problema — comecei a aplicar a regra para analisar os cortes de cabelos masculinos e fui buscar algumas relações.

    — Cabelo comprido? Pessoas criativas, mais sonhadoras. Entre os mais velhos, denota uma tentativa de manter a eterna juventude, resquícios da vivência nos anos 70.

    — Cabelos raspados? Mais comum entre homens inteligentes e decididos, que gostam de marcar presença, serem notados e criar um estilo marcante.

    — Topete? O preferido dos sonhadores, nostálgicos, românticos.

    Virou um vício, uma coisa terrível da qual não consigo me livrar. Fico observando as pessoas na fila do caixa do supermercado, no ponto de ônibus, no trabalho, e acabo fazendo outras relações entre a personalidade e estilo de cabelo, tanto dos homens como das mulheres.

    Solução? Pelo menos em relação ao meu cabelo, decidi usar reto, nem para fora nem para dentro. Interpretem como quiserem.

  • UMA CRÔNICA PARA ANNE FRANK

    Olá Anne!

    Bem, eu imaginei diversas formas para começar esta crônica e, na verdade, creio que o melhor começo seja agradecer a sua resistência!  

    E eu começo com uma pergunta que você mesma faz: “…por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por que toda essa destruição?”

    O seu diário fez toda a diferença pra mim! O seu diário fez diferença para milhares de pessoas! É um sucesso em todos os lugares do mundo! Acredito que não há um lugar que não conheça a sua história!

    E, voltando às perguntas feitas, o ser humano, nas suas complexidades, frustrações e influências, age de maneira irracional, por vezes, busca a guerra…

    Como você observou muito bem, “há uma necessidade destrutiva nas pessoas, a necessidade de demonstrar fúria, de assassinar e matar. E até que toda a humanidade, sem exceção, passe por uma metamorfose, as guerras continuarão a ser declaradas…”

    Estou escrevendo esta crônica porque, infelizmente, mesmo passado tanto tempo da guerra que você viveu e conheceu, o mundo parece não aprender nunca. No tempo em que estou, bem distante da Europa de Hitler, ainda vivemos com guerras. Pior, os homens maus nunca desistem do poder. Os homens maus não deixam de existir

    Muitos homens maus já passaram desde então, no entanto, neste meu tempo de absurdos, há um homem sem sorriso que definitivamente assusta boa parte de nós. E, não, ele não é da Europa! Ele é o presidente dos Estados Unidos! O nome dele é Donald Trump.

    O mais estranho, trágico, triste, enfim, são tantas as palavras que não consigo escolher apenas uma… O mais estranho é que esse homem parece ter aberto uma espécie de caixa de Pandora. Uma caixa do passado, com todos os fantasmas da Grande Guerra: autoritarismo, intolerância, perseguições, soberba e um olhar de superioridade que você enfrentou e conheceu muito bem!

    Anne! Falo de você para as pessoas! Falo do seu diário e da importância de tudo o que você viveu! E eu fico com esperança quando vejo o brilho nos olhos de todos os que ouvem e se emocionam com a sua história.

    Anne! Esta crônica não é um relato pessimista, mas uma forma de te dizer que é necessário resistir e acreditar nas pessoas, apesar do contrário! Olha que este mundo em que vivo parece virado de cabeça para baixo!

    Temos muitas tecnologias neste tempo, contudo, elas não nos aproximaram, ao contrário, deixaram maiores as distâncias, modificaram as relações e estão roubando de cada um de nós, a cada dia, um pouco do que insistimos em chamar de humanidade!

    Em muitos momentos, quando vejo que os erros do passado se repetem, me sinto anestesiado, confuso, desanimado, mas sei que não posso desanimar! Isso não seria justo com o seu diário, com a sua história ou com a história de tantas pessoas que passaram pelo que você passou.

    Aprendi a resistir escrevendo. Alinhando as palavras, juntando sons, criando sentidos e costurando, em prosa ou em verso, o que importa dizer: a vida e as suas cores! A vida e as suas dores!

    Anne, seu diário atravessou o tempo e chegou ao meu tempo e continua reverberando, atual e tocante, sincero e certeiro, simples, mas verdadeiro…

    Obrigado por ter resistido!

    Este cronista segue resistindo neste tempo de corações duros e verdades descartáveis…

  • Viagem no Tempo

    13 de fevereiro é o Dia do Rádio. Aquele que já foi essencial nas casas das famílias, por mais simples que fossem.

    O pai ouvia as notícias através da Voz do Brasil.

    A mãe encantava-se com as vozes dos heróis e heroínas das novelas de rádio.

    Ah, Albertinho Limonta, como você pôde renegar seu filho em O Direito de Nascer?

    E as mocinhas sonhadoras?

    Encantavam-se com as músicas apaixonadas dos cantores que se tornavam ídolos da juventude:

    “Quero beijar-te as mãos, minha querida
    És o maior enlevo da minha vida.”

    O rádio era um passaporte para outros mundos e, ao mesmo tempo, reunia a família ao redor de suas ondas sonoras. Juntos, apreciavam a música, vibravam com partidas esportivas e acompanhavam programas de entretenimento. Ah, e não se perdia o horóscopo! Na sala de casa, ocupava um lugar de destaque, e os locutores de rádio tornavam-se quase membros da família, de tão conhecidos que eram.

    O próprio aparelho era um símbolo de status. Famílias mais abastadas das décadas de 70 e 80 passaram a ter o rádio vitrola em suas salas e, posteriormente, o famoso três em um, o auge da ostentação.

    Com o tempo, o rádio perdeu seu trono na sala de estar. Pequeno e portátil, deixou de ser um evento coletivo para se tornar uma companhia individual. Depois, a televisão assumiu o protagonismo, e aquele brilho dourado das ondas sonoras foi se apagando no cotidiano das famílias.

    O Dia do Rádio. Não sei exatamente o significado dessa data, mas sei o que ela me traz: uma enxurrada de lembranças.

    Lembrei-me da caixa com brilho de verniz, com os alto-falantes escondidos pela tela entremeada de linhas douradas e, em cujas ondas, eu sonhava com o futuro.

    Lembrei-me do meu pai, no final da tarde, com seu rádio portátil preto, onde talvez ele rememorasse o passado.

    Hoje é o Dia do Rádio. E, entre tantas transformações, ele permanece. Talvez não mais no centro da casa, mas sempre no coração e na memória.

  • O agora é o antídoto da frustração

    Telma acordou cedo para cumprir tudo que havia programado: passear com seu cachorro, ir ao pilates, mercado, banco. À tarde pegar a roupa na costureira e depois tomar um café com Silvia, sua amiga de infância. 

    À medida que realizava o seu cronograma, experimentava aquela alegria fagueira dos que honram as promessas feitas para si mesmo. 

    Telma se encaminhou para o ponto de ônibus embalada pela leveza de não cair nos cambalachos da procrastinação. Tudo resolvido. Tudo pronto. Tudo perfeito. Mal podia acreditar que em trinta minutos estaria com sua amiga de uma vida inteira. Quanto tempo… quanta saudade. 

    Acostumada a dar vazão às emoções, embora sua mãe chamasse isso de ansiedade, enviou um áudio para Silvia declarando sua felicidade com o reencontro que estava para acontecer. 

    — Silvinha, já estou chegando. Tô doida pra te ver. Te amo, amiga!

    Silvia ouviu a mensagem aliviada por não ter desmarcado o encontro com Telma, embora ainda estivesse um pouco indisposta. Pensou em responder, mas estava atrasada, deixou para falar pessoalmente. Queria chegar logo e abraçá-la como nos velhos tempos. 

    Na saída de casa, a dor aumentou. Foram três passos e mais nada. 

    Telma jamais saberá o quanto sua amiga desejou revê-la. 

    Silvia tinha planos para um futuro que a vida decidiu não aguardar.

    Uns vão dizer que Telma não deveria ter criado expectativas para não se decepcionar com o desfecho.

    Outros vão achar que Telma não deveria se entregar tanto às relações para não se frustrar.

    Eu digo que Telma, pelo menos, vivenciou a alegria de esperar pela festa. Ainda que a festa não vá acontecer.

    A vida sem expectativa é um jardim sem flor. 

    Um corpo sem movimento. Um olhar sem brilho. Uma alma sem voz.

    Um texto sem leitor.

    Um salve para todos os corajosos do agora.

  • O CACHORRO ENCADERNADO

    Tenho uma relação antiga com o livro. E feliz. Eu acredito que ninguém é obrigado a ler tudo. O básico de cada um é o resultado de suas predileções e inclinações. Momentâneas ou não, ditadas por tantas coisas que reúnem um pouco de tudo que se chama você. Mutante por natureza, esponja que absorve e que despeja os excessos pelo caminho.

    O olhar muda com o tempo porque é forjado por nossa maturidade. Não ter idade para ler alguém é uma verdade, mesmo que incomode nossa vaidade intelectual. Acontece. As vezes você retorna ao livro mais adiante na sua vida. As vezes ele desaparece pelo caminho.

    Nossa estante de livros, a metafórica quero dizer, não é melhor nem pior do que a dos outros. São nossas escolhas, sem competir com ninguém.

    Na adolescência uns amigos se tornaram fãs do J.R.R. Tolkien e sua saga “O Senhor dos Anéis”.

    Eu descobrira Garcia Marques a partir de “Cem anos de solidão”. Nossos caminhos literários não se cruzavam.

    Eles insistiam em me dizer que eu não sabia o que estava perdendo por não conhecer a Terra Média. Lá em Macondo eu balançava minha rede e suspirava.

    Influências externas podem te empurrar na direção de uma estante. Ou te afastar dela. Mas o que dizer dos estalos que nos chegam de repente? Sabe quando nosso olhar examina a obra e uma voz baixinha nos diz “acho que vou experimentar esse ai”…

    Ser leitor é muito bom.

    Houve uma época da minha vida em que levava, por baixo, uma hora e meia de casa ao trabalho. E para voltar também, não tinha refresco.

    Pegava duas conduções e na primeira, a de uma hora, eu conseguia viajar sentado. Como sempre pegava o ônibus no ponto final, tanto na ida quanto na volta, era tranquilo. E para ocupar o tempo, eu lia.

    Foram mais de seis meses nesse trajeto até mudar de casa. Nesse tempo, Guimarães Rosa me fez companhia. Li “Grande Sertão: Veredas” nessas duas horas diárias de viagem. Lembro até o que eu fiz no dia em que Riobaldo uivou de tristeza. Interrompi a leitura, completamente afogado pelas emoções do jagunço e lancei um olhar perdido na cidade à minha volta. Sertão bruto me cercava. E Riobaldo uivava.

  • Errata celeste

    Os que acreditam na influência dos astros em suas vidas devem ter ficado chateados com Parke Kunkle, professor de uma instituição americana. Segundo ele, “está errada a interpretação dos movimentos celestes usada pela astrologia para determinar os signos de acordo com a data do nascimento das pessoas”. Isso porque os mapas astrológicos, produzidos 3.000 anos atrás, estariam há muito defasados. Com a mudança no posicionamento do eixo da Terra, uma pessoa que se imaginava capricorniana, por exemplo, é na verdade de Sagitário. Um suposto taurino, como eu, pertence ao signo de Áries.  

    Sem querer ser presunçoso, confesso que no íntimo eu desconfiava disso. Sentia certo descompasso entre o meu modo de ser e o desenho do meu signo, que me colocava sob a égide de um touro (bicho grosso e intratável), quando em minha alma pasta um cordato carneirinho. Não exagero se disser que essa foi uma das razões para eu nunca ter dado muita importância aos astrólogos. Sempre confiei mais nos genes e na força das circunstâncias. 

    Imagino a confusão que esse quiproquó planetário está causando na cabeça daqueles que programam suas vidas conforme o alinhamento da Terra em relação às estrelas. Eles têm na cartografia celeste um roteiro que, revelando-se ou não acertado, lhes serve de guia. Alguns a primeira coisa que fazem, antes de sair da cama, é consultar o horóscopo para ver se devem ou não fechar um negócio, fazer uma viagem, iniciar um caso amoroso. De repente vem esse professor e os deixa sem chão, ou melhor, sem céu em que possam ver delineado seu mapa existencial.    

    Não deixa de ser estranho que pensemos que Marte, Vênus ou alguma daquelas constelações distantes tenham a ver com o emprego que devemos assumir, a roupa que devemos vestir ou a mulher com quem devemos nos casar. Crer nisso não tem fundamento, mas para muitas pessoas faz todo o sentido. O mecanismo pelo qual tais crenças lhes parecem coerentes é o mesmo que fundamenta as religiões; explica-se pelo desejo de fugir ao desamparo, à incerteza quanto ao futuro e, sobretudo, ao medo da morte.   

    Ninguém pense que a descoberta de Kunkle vai mudar a crença de quem depende dos astros para conseguir a paz interior. Desde quando se crê em alguém, ou em alguma coisa, com base em evidências racionais? A  razão serve de esteio para o que se conhece, e não para aquilo em que se acredita. O fermento da ciência é o saber; o da crença é a ilusão.

    No máximo os adeptos da astrologia farão um pequeno ajustamento em seus signos – há os que vão continuar lendo as previsões segundo o mapa antigo. Se mudou o lugar das constelações, endireite-se o eixo da Terra, corrija-se o Cosmo. O importante é que, ao acordar, eles possam iniciar o dia com a certeza de que farão as escolhas certas. E, sobretudo, de que alguma força transcendente os protege contra as armadilhas do Acaso.

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