Literatura

  • Andarilho urbano

    Já fui um adepto da corrida. Comprei o livro de Kenneth Cooper e o li com aplicação, procurando seguir seus conselhos para melhorar a capacidade cardiorrespiratória e ganhar mais anos de vida. Costumava acordar cedo para trotar cinco ou mais quilômetros na calçadinha da praia. Quando cursava pós-graduação no Rio participei da corrida Leblon-Leme e não fiz feio, embora terminasse o percurso esbofado como um touro de arena antes do golpe fatal.

    A corrida se tornou para mim uma espécie de vício; era impossível abdicar do prazer propiciado pela endorfina, que chamei num texto de “vinho do suor” (nesse tempo eu queria ser um literato e achava que só chegaria a isso se produzisse imagens esdrúxulas). Com o tempo, fui aumentando a frequência das corridas e estendendo o trajeto. Os joelhos se ressentiram do excesso. Certa manhã, depois de um exercício mais puxado, senti uma dor violenta no joelho esquerdo e tive que parar. Voltei para casa mancando e tratei de procurar um médico, que foi curto no diagnóstico: lesão meniscal. Passei por fisioterapia e infiltração, mas o que resolveu mesmo foi a mesa cirúrgica.  

    Após essa traumática experiência, deixei a corrida e passei a caminhar. Com o tempo fui me dando conta dos benefícios dessa prática mais modesta, que exercita o copo e ao memo tempo o poupa dos excessos. O próprio Cooper, num dos seus últimos livros, desencoraja as corridas e aconselha que se caminhe. Tenho confirmado a sabedoria desse conselho. No ato de caminhar é menor a preocupação com o desempenho, o que libera a mente para reflexões ou simples devaneios. Daí ele ser frequente em filósofos e escritores.   

    Rousseau, por exemplo, costumava fazer longas caminhadas. Durante elas amadurecia as ideias que iria incorporar ao seu sistema filosófico – ideias sobre a natureza humana, que ele considerava a priori boa, e a importância da educação para ajustar o homem à sociedade. Montaigne também percorria longos trajetos antes de se enfurnar na sua torre e escrever os Ensaios. Machado de Assis, geralmente acompanhado por Dona Carolina, preferia um passeio pelas calçadas do Cosme Velho após o jantar.

    As caminhadas não precisam ocorrer na praia ou em algum local ermo. Podem acontecer mesmo no burburinho da cidade, entre gente apressada e automóveis pestilentos. Nesse caso pode-se nadar (ou melhor, andar) contra a corrente, sem pressa, flanando. Foi Walter Benjamin quem chamou a atenção para o flâneur; a partir de escritos baudelairianos, ele cunhou esse termo para designar o misto de andarilho e observador que vagava pelas grandes cidades.  

    Flanar é andar a esmo. É poetar com os pés. É ser um peregrino sem promessas, a não ser a de voltar ao ponto de partida depois de distrair o espírito com a gratuidade do percurso. Quem flana se liberta por um tempo de deveres e obrigações. Vai por ir, e não para cumprir um roteiro com uma meta específica. A mente também vagueia, deixando que os pensamentos fluam sem aparente conexão. Uma ideia puxa outra ao sabor do inconsciente, uma imagem desencadeia outra estimulada pelo que é visto ao longo do percurso. 

    Seguir por uma rua que a gente costumava percorrer desperta recordações que alegram ou entristecem. Outro dia, num dos meus passeios, deparei-me com uma casa onde moravam umas garotas que atraíam os meninos do bairro. Eram três, uma mais loura e espevitada do que as outras. A casa tem agora paredes enegrecidas, parte do reboco desfeita e mato crescendo onde antes foi o jardim. Como estariam os que nela moravam? 

    Voltei para casa com essa pergunta martelando-me o espírito, num vagar melancólico que me fez meditar sobre a inclemente passagem do tempo. Coisa de flâneur.

  • Silenciosa

    Toda noite uma mulher atravessa minha casa por dentro. Passa pela sala, alcança o corredor e sai pelo terraço dos fundos. Pede desculpas assim que me vê, diz que este é o seu caminho até o trabalho e que não conhece nenhum outro. Com o tempo me acostumei com sua presença. Ela é linda, e nem em sonho vi mulher igual. Espero-a todas as noites, e todas as noites ela vem. Algumas vezes cheguei a pedir que fizesse uma pausa e gastasse uns minutos comigo. Poderíamos beber algo juntos, rir sem preocupação, esquecer o mundo um pouco. Ela nunca aceitou.

    Hoje resolvi fazer-lhe uma surpresa. Preparei um jantar caprichado. Arrumei a mesa, acendi velas, arranjei flores. Ela não veio. Nem nessa noite nem nas seguintes. Talvez tenha descoberto um caminho diferente ou foi despedida do trabalho. Ou então retornou, tão silenciosa quanto viera, para o sonho do qual saiu.

  • #07 – O Homem dos Muros

    O homem dos muros
    É um ser sombrio,
    Sua imagem causa arrepio
    E gera confusão.

    O homem dos muros
    Grita e divide
    E com força Insiste
    Em mais desunião.

    O homem dos muros
    É uma grande desgraça
    Incita arruaça
    Morte e destruição.

    O homem dos muros
    Nem parece um homem
    A razão e o senso somem
    Na sua louca ambição.

    O homem dos muros
    É um menino mimado
    Birrento e enjoado
    O caos é a sua motivação.

    O homem dos muros
    É o pior presidente
    Não gosta de gente
    Não tem empatia nem coração.

    Coitado do mundo!
    Que dano profundo
    Se um outro discípulo
    Medonho e ridículo
    Pudesse aparecer!

    Coitado do mundo!
    Que dano profundo!
    Se um louco varrido
    De pedra cingido
    Pudesse crescer!

    Ainda bem que no Brasil
    Um país muito gentil
    Isso não há de suceder!

    Aqui o buraco é mais embaixo!
    Tão incerto e tão escuro
    Que não dá nem pra ver!

    Coitado do mundo
    Que dano profundo
    Se outro homem dos muros
    De atos impuros
    Pudesse aparecer!

    Não haveria mais poesia
    Seria tudo monotonia
    Difícil sobreviver!

    Mas enquanto for possível o poema
    Mas enquanto for possível a escrita
    A palavra liberdade estará em cena
    A palavra resistência terá vida!

  • A cinta

    Trinta anos de casamento, Nicanor pensou em fazer uma surpresa à mulher:

    – Que tal a gente voltar ao motel em que dormimos juntos pela primeira vez?

    – Motel?! Que ideia!

    – Por que não? Vai ser gostoso relembrar a sensação daquele encontro.

    Tanto insistiu, que Matilde terminou concordando. Meio a contragosto, é certo, mas não custava satisfazer esse capricho do marido, que ainda veio com outro:

    – Você podia vestir aquela cinta vermelha… Lembra?

    A mulher aparentemente fez que não ouviu.  

    E numa noite de sábado (tal como da primeira vez), inventaram uma mentira para os dois filhos adolescentes e se mandaram para o motel. O letreiro não era mais o mesmo (Nicanor teve a sensação de piscava menos), e uma parte fora reconstruída. Mas dava para reavivar antigas sensações. 

    Pediram um quarto com o mesmo número daquele em que dormiram da primeira vez. O marido achava que isso daria sorte. Depois de passar pela portaria, ele estacionou na garagem que havia ao lado. Era muito escura, certamente para preservar a identidade dos frequentadores.

    Mal entraram no quarto, Matilde fez um ar de quem não gostou:

    – Hum… O cheiro. Isso está com cara de que há tempos não passa por uma boa faxina.  

    Dirigiu-se ao banheiro e voltou de lá com uma expressão escandalizada:

    – Venha ver, Nico!  

    Puxou o marido até o local.

    – Está vendo? Parece até que tem limo.

    – Não é tanto assim, Matilde. Você exagera.

    – E o vaso sanitário? Está precisando de uma boa bucha.  

    Após uma breve pausa, deliberou:  

    – Vamos ligar para a portaria e pedir uma vassoura com detergente.     

    – Esqueça o banheiro – ponderou o marido. – Vamos voltar para o quarto.

    Tentando fazê-la entrar no clima, ele perguntou sobre o que lhe pedira:  

    – Trouxe a cinta?

    – Não. O Dr. Amoedo disse que eu devia evitar qualquer tipo de roupa que prejudicasse a circulação. Por causa das varizes. Acabei jogando no armário da despensa.

    – Tudo bem, dispensamos a cinta. O importante é que você… se sinta bem.

    Esperou que a mulher sorrisse do jogo de palavras, mas ela pareceu nem perceber. Depois de olhar atentamente a cama, Matilde exclamou com um novo ar de protesto:      

    – Me deitar aqui!? Deus me livre. Veja o colchão.  

    – Não é tão ruim. E você, que é calorenta, pode ficar perto do ar-condicionado.

    – Se é que eles costumam limpar o filtro…

    Estavam nesse impasse, quando o celular da mulher tocou. Era o filho mais velho:

    – Onde vocês estão?

    – A gente está num restaurante que seu pai queria muito conhecer.

    – Estou ligando por um motivo grave. Desconfio de que Isolda saiu para se encontrar com alguém. Pode ter ido a um motel.

    – Como?!   

    – Pois é. Ela tentou disfarçar, mas vi que levava aquela cinta, lembra? Aquela que você guarda como uma relíquia erótica dos tempos em que namorava o velho.

     Matilde mal esperou o filho terminar. Desligou e contou a conversa ao marido. Depois, preocupada, comentou:  

    – E se ela foi mesmo a um motel?

    – Tolice. Não se pode fazer nada. Só não gostei de ela ter levado a cinta.

    – Eu devia ter escondido melhor…   

    – Deixe. Ela é jovem.

    Vendo que estavam perdendo tempo ali, Nicanor teve uma ideia:    

    – Vamos embora? Ainda temos tempo de ir àquele restaurante.

  • Obra aberta a ser reeditada!

    A experiência de Nietzsche com seus aforismos em relação à utilização da linguagem como produtora de verdades, esclarece que os benefícios de um banho de banheira com água fria não deve ser evitado, e que devemos entrar e sair rapidamente, porque saímos modificados com o choque da temperatura, sem necessidade de se aprofundar.

    Os inimigos da água fria não recomendam essa experiência, porém, o frio pode tornar veloz seu pensamento. 

    Por vezes o desejo de nos livrar de uma intensa dor emocional ou física, instiga desistir do pouco que temos, encurta o semblante, e promove poucas vistas a esperança. 

    É como o segurar de um copo na mão por alguns minutos, não vai afetar nenhum de nossos músculos. Porém, permanecer com o mesmo copo dias a fio sem esvaziar nenhuma gota, com certeza fará tão mal quanto um pesadelo diário não resolvido.

    Nossas vidas penetram os olhos e vagueiam nos pensamentos após muito passarem por um mastigar de opiniões e ideias no entorno de uma sociedade consumista de informação, vinda de todos os lados. 

    Por isso a dúvida se mantém acesa no cuidar ao tomar banho gelado e no esforço muscular. 

    Estamos constantemente à busca da melhor informação.

    O novo leitor atento é ao mesmo tempo, consumidor e produtor, é um “prosumidor”, expressão de Alvin Toffler, que outros preferem interpretar com uma visão de que o momento é do “produser”, produtor usuário, pois, o que há é um usuário da informação. 

    Esse novo consumidor lê, ouve, assiste o noticiário e compartilha, recomenda e critica conforme seus critérios. A passagem a frente do que foi entendido segue em moto continuo como releitura e reedição com novo crivo, temperado com as experiências desse atual divulgador, seguindo até que se esgote o interesse social no tema. 

    A origem apresentada inicialmente em texto e forma dados pelo indivíduo criador do assunto, não passa de uma obra aberta a ser reeditada, reelaborada em sucessivas redes sociais.

     Mesmo assim o conteúdo não será entendido como aquele da origem, fica entregue às conclusões e escolhas do próximo leitor sob a influência de sua vivência, que passa adiante a visão construída com nova liberdade de interpretação.

    É assim com a salada mista que escolhemos para viver nossa caminhada, por vezes gelada e outras com fibra, segue sempre atenta a saúde do corpo, que se cansa da falta de vibração e da mesmice.

  • Alegoria do pitaco

    Diria o maluco que cada um tem sua loucura. Uma das minhas é ler crítica literária. Mesmo quando espremido num cotidiano atribulado, um artigo de quatro ou cinco páginas sempre encontra uma brechinha entre canecas de café. E desde muito tenho essa mania. Outra louquice é inventar desafios relacionados à leitura. O último é ler os treze (ou quatorze?) volumes do compêndio intitulado Pontos de Vista, contendo cinquenta anos de críticas literárias do Wilson Martins. Provavelmente esse seja o trabalho sistemático mais longevo da área. Por si só, uma baita empreitada.

    O autor me chamou atenção desde a primeira leitura pela profunda fundamentação do seu argumento, sempre escrevendo com estilo singular e sem receio de magoar o escritor em questão. Pela análise do Wilson passaram as obras de todos (ou quase todos) os escritores que estudamos na escola e outros que agonizam em bibliotecas antigas. Há também textos sobre obras cujos escritores nunca ouvimos falar porque foram esquecidos ou subjugados sem jamais terem uma reedição. Inclusive perdi a conta de quantos autores conheci nessa campanha.

    Dizem que Moacyr Scliar andava com um recorte de jornal no bolso, pronto para mostrar às pessoas o elogio do temido crítico a um dos seus primeiros livros. Wilson tinha o respeito de leitores e escritores (por esses, vez ou outra, era evitado, talvez odiado). Imagino como seriam recebidos seus artigos no mundo atual, sobretudo se terminassem dessa forma: “Marcos Rey afirma ter escrito para livrar-se de um pesadelo, ‘apenas porque não sabia compor música ou pintar quadros’. Por que não tenta?”. De fato, não deixava pedra sobre pedra, nosso querido Wilson.

    Não lembro se li algo escrito por Marcos Rey; mas, ao me deparar com esse comentário, ao fim de um artigo detalhado, exemplificando em minúcias as características do texto e destacando as inconsistências, não sei se hoje compraria seus livros. Não digo que a minha opinião dependa da indicação do Wilson, mas também não nego que a anuência dele pese um bocado quando estou vagando nos sebos por aí.

    Quando soube, por outra leitura, que o Wilson havia tecido comentários acerca da obra Cogumelos de Outono, de Gladstone Osório Mársico, busquei rápido essa referência. Não me decepcionei, de todo. Na crítica, disse que Gladstone errava ao perder tanto tempo com obras satíricas, pois tinha talento para apresentar algo de maior envergadura à literatura brasileira. Um tanto dúbia a minha alegria: por um lado, reconhecia Gladstone como um bom escritor; por outro, rechaçava os romances satíricos de que tanto gosto. Enfim, anos e anos depois, Gladstone continua sendo um dos meus autores preferidos e Cogumelos, um dos meus romances preferidos. E também não é reeditado há décadas (alô, amigos editores).

    Nessa empreitada de treze livros (ou quatorze? Jamais encontrei esse último), perdurarei por seis ou sete anos e, para dizer a verdade, não tenho nenhuma pressa em terminá-la. Trata-se de um daqueles prazeres à conta-gotas para os quais não há muita explicação. Se é verdade que encontramos a felicidade (ou qualquer coisa parecida com ela) quando não queremos que algo acabe, talvez eu a tenha achado lendo crítica literária. Pois é, cada doido com sua doidera.

    O fato é que poucas alegrias se comparam à leitura de uma crítica elogiosa a um livro de que tenha gostado. Aconteceu na semana passada com A assunção de Salviano, do Antônio Callado. A exaltação do Wilson a um romance apreciado de antemão me serve como um afago, uma saudação afetuosa de reconhecimento, confirmando que a minha opinião vale alguma coisa e está correta (ainda que envolta a muitos poréns, como toda opinião literária correta). Por fim, mostra ao meu ego um tanto inflado como sou um bom leitor e transforma a leitura num regozijo intelectual, por assim dizer. E, para completar, me sinto como um aprendiz de trombadinha que arruma briga na rua, com o irmão mais velho à espreita, pronto para intervir, garantindo a impossibilidade da surra, do pontapé e da vergonha. Mas, voltando ao assunto das reedições, por que mesmo ninguém reeditou ainda as obras do Wilson Martins?

  • Rosa, verde e rosa

    Rosa. Apenas Rosa. Nascida e criada na Estação Primeira de Mangueira. Primeira estação do trem e do seu coração.

    Rosa ganhou esse nome por duas paixões do seu pai. O samba de Cartola e a Mangueira. Rosa nasceu em 1980, ano em que Cartola morreu e seu pai resolveu lhe prestar essa homenagem. Ele assobiava “As rosas não falam”, quando se lembrava da mulher, que havia lhe abandonado alguns anos após Rosa ter nascido. Dizem que sua mãe era uma mulher linda, sorridente, mas não tinha nascido para ser mãe. Depois de ter parido Rosa, ela estava sempre triste, pelos cantos, como se não gostasse mais de viver.

    Seu Reynaldo tentava de tudo. Fez até um canteiro de rosas para ela, inspirado por Cartola. Dizem que a letra de “As Rosa não falam” foi quase totalmente composta quando Cartola levou à Dona Zica, sua esposa, umas mudas de rosas que plantou no jardim. Dias depois, ao abrir a porta pela manhã, ela percebeu que muitos botões haviam desabrochado e ficou deslumbrada com tanta beleza e quantidade. Chamou seu amado e perguntou:

    – Cartola, venha aqui! Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa?

    E o sábio respondeu:

    – Não sei, Zica. As rosas não falam!

    Mas a mãe de Rosa parecia imune a qualquer beleza. Nada mais lhe interessava, lhe fazia sorrir, lhe animava. Sua última lembrança da mãe foi no desfile que consagrou a Mangueira, em 1984, na inauguração do Sambódromo. Quem puxava o samba era um tal Jamelão – puxava não, porque ele não gostava de ser chamado de puxador – um senhor mal-humorado com a voz de trovão, que assustou Rosa quando ela passou ao lado do carro de som. Ele parecia estar sempre bravo e a menina se agarrou ao pai com cara de choro, enquanto sua mãe se misturava ao mar verde e rosa da ala das passistas. Depois disso, ela nunca mais a viu. Nesse ano, aconteceu um dos feitos mais marcantes da história da escola: Depois de desfilar, a escola retornou pela Sapucaí, sendo aclamada pelo público. A comunidade toda ficou em festa, mas seu Reynaldo não conseguiu comemorar. Procurava sua amada em todos os cantos, parecia um louco a procura do nada. Só encontrava o vazio e se enfurecia gritando por ela.

    Mas será que alguém tinha perguntado para a sua mãe se era isso que ela queria? Mulher negra da favela, casou-se com o seu primeiro homem para sair de casa e da fúria do pai. Queria pôr fim ao ciclo de humilhação e violência que vivia com a mãe, que tinha um filho atrás do outro pelo simples motivo de que não apanhava enquanto estava grávida. Se tornou uma mulher fria, sem brilho. Paria como um bicho e fazia de tudo para engravidar novamente. O marido se gabava, enquanto ela só queria sobreviver.

    Nair era o contrário. Seu sorriso cativava a todos, seu brilho era natural. Mas precisava ser livre, desfilar, cantar seu amor pela vida. O casamento com Reynaldo ia muito bem até a notícia da gravidez. Apaixonados, nunca pensaram em evitar. Muito pelo contrário, Reynaldo sempre dissera que queria ter muitos filhos, um para cada ala da sua escola. Mas sua amada começou a se sentir como a mãe, presa pelo ventre, amarrada pela obrigação. Não falava sobre o bebê, não queria saber de pensar em nomes, não se importava se seria menino ou menina. Tinha pesadelos constantes e, por mais que Reynaldo lhe acalmasse e jamais tivera coragem de lhe erguer a mão, a barriga crescendo era muito mais um fardo do que um acalanto.

    Nesse dia em que ela sumiu na multidão, fazia 3 anos que ela não saia de casa. Depois de muita conversa de amigos e parentes, ela resolveu voltar para a sua escola. Seu Reynaldo imaginava que ela só precisava voltar a sorrir, voltar a brilhar. Como se todos os seus fantasmas fossem desaparecer na magia verde e rosa do Carnaval. Ela se aprontou com esmero especial. Vestiu-se como se fosse a última vez. Se despediu do marido e da filha com lágrimas nos olhos. Acharam que era a emoção. Mas era um adeus.

    Depois que a mãe de Rosa foi embora, Seu Reynaldo a criou do jeito que pode. Pedindo ajuda para a mãe e as irmãs que se revezavam enquanto ele trabalhava, fazendo bicos pela comunidade de pintor, eletricista e o que mais precisassem. Rosa cresceu cercada de amor, mas a falta da mãe parecia uma chaga aberta, um afago que nada conseguia substituir.

    Rosa foi se tornando uma bela moça e fazia vista pelas ladeiras da Mangueira. Mas enquanto todas as suas amigas sonhavam em desfilar na escola do coração, Rosa queria escrever o samba enredo. Queria cantar sua tristeza, colocar para fora a falta da mãe, as aflições do pai, o abraço que não encontrava parceria, o choro que só encontrava eco.

    Fazia versos como quem ama. Como quem padece. Mas não mostrava para ninguém, sabia que não tinha lugar no meio dos adultos, nem dos homens. Se deslumbrava quando seu pai entoava os clássicos da escola, imaginava novas rimas, corria para anotar suas ideias em um bloquinho cor de rosa estrategicamente guardado sob o seu travesseiro. Se escondia no barracão enquanto os homens bebiam e batucavam na mesa imaginando novas canções.

    Nas festas de família, todos gostavam de mostrar os seus talentos. Sua tia Ana cantava enquanto seu primo José tocava violão. A alegria era enredo fácil e as reuniões de família iam até o dia amanhecer. Era aí que o morro ficava mais bonito, com os tons de rosa inundando os becos e iluminando os corações.

    “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Que a natureza criou…”

    Seu primo José era parte importante na vida de Rosa. Como um irmão mais velho, era ele quem a defendia dos outros meninos, fazia às vezes papel de pai quando seu Reynaldo viajava para fazer serviços em outras cidades e lhe dava sempre bons conselhos. Era mesmo um bom primo. Um dia, ao voltar da escola, deu de cara com ele deitado na sua cama com o bloquinho cor de rosa na mão. Ela deu um pulo e o arrancou da mão dele:

    O que você está fazendo aqui?

    Minha mãe mandou dar uma olhada em você, parece que seu pai vai voltar tarde. O que você escreve nesse caderno?

    Não interessa!

    Interessa sim. É lindo!

    Você acha mesmo?

    Acho sim. Para quem você escreve isso?

    Antes que José imaginasse que ela estava apaixonada por alguém, Rosa tratou de inventar algo. Ela não queria dizer da saudade da mãe, da tristeza do pai, mas também não queria fazer papel de boba dizendo que queria ser compositora de samba. Seu primo ia rir da sua cara.

    Fala, Rosa. Já sei, você está apaixonada!

    Claro que não! Só…escrevo.

    Pois eu acho que tem poesia aqui. Posso copiar algumas coisas? Vou hoje no barracão e acho que dá para fazer um samba.

    Os olhos de Rosa se iluminaram.

    Fazer um samba com as minhas letras?

    Claro. Mas, olha só. Melhor eu dizer que é meu. Você sabe, os coroas não iam aceitar uma menina na roda de samba.

    Pode fazer o que quiser. Será que eles vão gostar?

    Só podemos tentar.

    À noite, José foi se encontrar com os outros compositores já com um samba na ponta da língua.

    Vocês precisam escutar isso!

    E José foi, pouco a pouco, emendando frases, batucando aqui e acolá, falando mansinho…E as palavras foram se tornaram música e ganhando som. Seus companheiros de roda, já munidos com seus instrumentos, foram dedilhando acordes e cobrindo o silêncio. Era uma melodia triste, como todo samba deve ser.

    Rapaz, ou você está muito apaixonado ou sofrendo muito. O que, no fim, dá na mesma!

    Todos riram enquanto José não se aguentava:

    Gostaram mesmo?

    Falta um arranjo melhor, mas tem cheiro de sucesso!

    Rosa não tinha conseguido dormir. A todo momento esperava o retorno do primo que havia prometido lhe falar sobre o que acontecera no barracão. O pai, seu Reynaldo, abriu a porta da frente, cansado de mais um dia de labuta e Rosa estava lá de pé, achando que fosse José.

    O que você faz acordada, Rosa? Seu primo não lhe avisou que eu iria demorar?

    Sim, papai, mas não conseguia dormir. Estava preocupada com o senhor.

    Isso não era de todo mentira, mas Rosa queria mesmo era saber notícias do seu samba. Fingiu um bocejo, abraçou o pai e voltou para o quarto. Espiava a lua longe, se escondendo por nuvens finas que pareciam se desfazer com um sopro. De repente, um barulho na janela. Deu um pulo tão rápido que quase caiu da cama.

    Rosa…tá acordada?

    José, pelo amor de Deus! Como poderia dormir com tanta ansiedade no peito?

    Vou falar rápido para não acordar o seu pai. Eles adoraram a letra, vamos fazer os acordes e a música amanhã. Vai ser um sucesso! Agora vai dormir.

    Dormir? Como Rosa poderia dormir depois de uma notícia como aquela? Ela se revirou na cama até os primeiros raios de sol e não conseguia parar de sorrir e pensar e compor até na hora de fazer o café até chegar na escola e ainda depois. Tinha que dar um jeito de ir até o barracão naquela noite para ouvir – imaginem só! – o seu samba ser tocado, apreciado e amado pelos melhores músicos da escola. Tinha a sorte de ser sexta feira e não ter escola no dia seguinte. Seria mais fácil convencer o pai.

    O dia passou devagar, a tarde chegou preguiçosa e quando os últimos raios de sol inundaram o morro e todo o rosa que fazia a tristeza ir embora se dissipou, Rosa já estava pronta e faceira na espera do pai chegar para pedir autorização para ir ao barracão. Sorte das sortes, seu Reynaldo chegou cedo naquele dia e muito bem humorado, o que era novidade.

    Pai, que bom que chegou cedo. Preciso lhe pedir uma coisa.

    Onde você está pensando em ir tão arrumada assim? Não me diga que está namorando!

    Claro que não, pai! Só quero ir no barracão ver o meu primo tocar um samba novo.

    José voltou a compor? Essa eu quero ver. Podemos ir, mas tem certeza que não tem namorado por aí?

    Juro, papai!

    Esse comportamento da filha, ao mesmo tempo que deixava seu Reynaldo aliviado, também o deixava pensativo. Será que a menina tinha medo do amor?

    Os dois chegaram cedo no barracão e os músicos ia aparecendo aos poucos, vindos do trabalho, alguns ainda famintos, pois a vontade de chegar logo no local do samba era maior do que a de jantar em casa. Todos tinham um trabalho formal, pois viver de samba ainda não dava dinheiro. Mas eram tão apaixonados pelo que faziam, que talvez até se arriscassem.

    Uma figura diferente estava na roda naquele dia. Uma mulher sorridente, forte, com lenço colorido amarrado no cabelo. Seu pai correu para cumprimentá-la:

    Zica, quanta honra ter você aqui!

    Reynaldo, meu amigo…Como você está? E a pequena Rosa?

    Rosa não conseguia acreditar no que via. Era dona Zica, viúva de Cartola. E ainda sabia seu nome!

    De pequena ela não tem mais nada, Zica!

    Rosa foi se aproximando devagar como quem chega no fim de uma peregrinação. Como toda a sua vida se resumisse naquele momento.

    Mmmuiito pprazer, dona Zica. Sou muito sua fã!

    Reynaldo, sua filha já é uma mulher! Estamos ficando velhos! E ela sorriu, enquanto puxava Rosa para perto em um abraço com cheiro de peixe e cebola.

    Vieram para o meu vatapá? Ela era famosa pelo prato.

    Nem sabia, mas viemos também pelo samba novo do José.

    Samba novo? Essa eu quero ver.

    E no meio do preparativo para o vatapá, o barulho das latinhas de cerveja abrindo e os instrumentos se afinando, chegou José. Muito bem arrumado, penteado e perfumando, como um mestre sala à espera da sua porta bandeira.

    Caprichou, hein?

    Todos os homens fizeram questão de brincar com a aparência de José, pois era o único que havia tido o cuidado de ir em casa antes de chegar no barracão.

    Só pode estar mesmo apaixonado!

    Mas a farra durou pouco. Eles queriam era escutar o samba. Até Dona Zica saiu da cozinha e pediu para outra pessoa ficar de olho no vatapá. Rosa se sentou perto do primo, que com um aceno carinhoso, a chamou para mais perto.

    A música falava de perda, de amor, mas também de esperança. Rimava a vida com alegria e Rosa a cantava baixinho, com aquela segurança de compositora. Seu Reynaldo tentava segurar as lágrimas, pois não conseguia parar de pensar na sua amada Nair. O “Jorge da Cuíca” fingia tirar um cílio do olho esquerdo que teimava em não cair. Seu Jair, no violão, viu uma lágrima descer pelas cordas e quase desafinou. Na verdade, todos os homens tentavam segurar alguma emoção escondida – homem não chora, afinal – mas Dona Zica estava atenta aos lábios de Rosa. Ela cantou a música toda transbordando de sentimentos. Quando a última nota entoou e todos aplaudiram José, Dona Zica perguntou?

    Quem fez essa letra linda?

    Fui eu, Dona Zica. – Respondeu, cheio de orgulho, José.

    E Rosa?

    A menina, que estava ainda celebrando em silêncio o seu sucesso, foi tirada daquele torpor pelo seu nome dito daquela maneira tão certa.

    O que eu fiz, Dona Zica?

    Eu que te pergunto. O que você fez? Esse samba?

    Todos se entreolharam como se aquilo fosse uma brincadeira. Seu Reynaldo, quase envergonhado, correu para intervir.

    Imagina Dona Zica. Rosa é uma criança, onde ia arrumar imaginação para isso?

    Rosa continuava calada, sem saber onde era o seu lugar naquela situação. Mas José, consciente do talento da prima, disse:

    Foi Rosa que escreveu sim, Dona Zica. Eu só dei uma ajeitada, meus parceiros fizeram a melodia, musicamos… Mas a letra é de Rosa.

    Seu Reynaldo não sabia se abraçava a filha ou a colocava de castigo, Quanta ousadia escrever aquele samba. Mas quanta tristeza também na vida dessa menina, meu Deus!

    Os outros sambistas também não sabiam como lidar com aquela menina que, de repente, se mostrava uma grande compositora. A filha do Reynaldo, quem diria! Mas ainda era uma menina, no fim das contas.

    Parabéns Rosa. Você foi aprovada no mundo do samba! – Disse Dona Zica como para dar um fim àquela confusão de valores – É isso o que você que fazer?

    É sim, Dona Zica.

    Então tem a minha benção e de todos aqui. Concorda Reynaldo?

    Mas é claro que sim. Se é isso o que ela quer!

    Ninguém iria discordar de Dona Zica e nem mesmo José ficou chateado por ter a prima alçada quase ao estrelato do samba em uma noite. Ficou feliz em não precisar mentir mais e prometeu ajudar Rosa nas próximas composições.

    Sempre falta alguma coisa, né?

    Rosa sorriu como estivesse em um sonho. Mal sentia o seu corpo, parecia levitar por entre todos. A música recomeçou e Dona Zica pediu a vez. Queria homenagear Rosa, com o seu segundo intérprete favorito.

    Que Cartola não me ouça, onde ele estiver. Mas eu sempre fui apaixonada pelo Orlando Silva! – Todos riram e ela entoou:

    Tu és divina e graciosa
    Estátua majestosa
    Do amor, por Deus esculturada
    E formada com ardor.


    Da alma da mais linda flor
    De mais ativo olor
    Que na vida é preferida
    Pelo beija-flor.


    Se Deus me fora tão clemente
    Aqui neste ambiente
    De luz, formada numa tela
    Deslumbrante e bela…

  • #09 – EXPURGO

    hoje eu mordi
    um chumaço de
    papel higiênico
    para estancar
    (ou tentar conter)
    o sangramento
    da língua dilacerada:
    como um cadáver
    antecipado que devora
    o seu próprio sudário.

    Um Andarilho Dentro de Casa

  • Anotações sobre rotina e/ou fim do mundo

    Existe um filme premiado em Cannes que conta, de forma incrivelmente poética, o fim do mundo. Sob a perspectiva de choque entre dois corpos celestes, sendo um, a Terra e ‘Melancolia’, o nome do outro, o evento é uma dança de aproximação e afastamento, de medos e alívios, de insanidade e lucidez, tudo acontecendo a uma velocidade intangível, em que nós mesmos nos aproximamos e nos afastamos internamente. Detemo-nos nas consequências, ao passo que o esplendor da bela e enorme visão no horizonte nos reconforta.

    A beleza, às vezes, pode ser devastadoramente melancólica. Perceber o belo pode nos tornar nostálgicos, artistas, ensandecidos. Raciocinar e fazer planos é uma das grandes consequências ruins de ser humano: sofremos ao nos dar conta de que existimos, de que temos um futuro (ou não, pela carga duramente certeira de finitude).

    Entre as problemáticas que fabricamos ao planejar, muitas vezes sem viver o presente, há seres iluminados que se contentam em viver sem postagens em redes sociais, sem tornarem-se rostos produzidos aos passos da moda e do mundo – e que muitas vezes são ‘borrados’ por leis de proteção à privacidade. A mulher que passeia com um carrinho de bebê a sua frente, transportando latinhas e outros recicláveis, traja um vestido rosa bebê com motivo de jogo de cartas.

    Passeia espalhafatosa e desapercebida pela manhã de comércio fechado do centro de uma cidade qualquer, o cenário que melhor se delinear em sua mente, agora. Ninguém sabe de onde vem e para onde vai. Sorri, mas, ao mesmo tempo, não é vista e nem vê ninguém.

    É segunda-feira; em outros tempos, a informação do dia seria dada pela impressão da data no jornal diário. A mulher do vestido de cartas, se quisesse tal informação, teria que:

    1. saber ler, ao menos os números;
    2. aguardar o descarte do periódico, pois certamente não teria moedas a desperdiçar com papéis intocados.

    Aqui, no tempo e na cidade presentes, ela não porta celular, tampouco parece se importar com o passar do tempo. Ela é o próprio tempo, destemido, que não se subemete a julgamentos nem caminha para trás.

    Assim como a melancolia do filme, a mulher passeia como se encenasse a clássica e conhecida ópera de Wagner, Tristão e Isolda. Um guerreiro, uma princesa, um mundo à beira do extermínio, uma mulher que não joga, mas veste-se com as cartas do destino, em cores, a primeira vista, inocentes. As andanças da mulher das cartas segue a frequência da dança cósmica, dedilhada tal qual uma profecia entre 1857 e 1859, tocado pela profundidade de um conto da Idade Média. Um filme recente. Uma mulher contemporânea, e não.

    Entre guerras, guerreiros, princesas, prisioneiros, fadas e pessoas anônimas, a liberdade e a ideia de enganação podem levar ao amor. Ou ao fim do mundo. Ou simplesmente, a um manhã de segunda-feira.

  • O NEVOEIRO

    Metáfora. Figura de Linguagem que consiste em comparar dois ou mais elementos de forma indireta.

    Conforme o dicionário, a metáfora nos presta este favor. Aliás, um grande favor! Sem a metáfora, a imagem do que falamos ou escrevemos não teria a mesma expressividade!

    Aqui, nestes rascunhos e esboços de um tempo, a metáfora nos serve como uma imagem de alerta, de reflexão e, por que não, de perplexidade! Como podemos ignorar o óbvio?

    Outro ponto importante a considerar antes do exemplo, é que fatalmente repetimos os mesmos erros ao longo da história!

    Elementos de comparação: nevoeiro e visão.

    NEVOEIRO: Quando a temperatura do ar cai até o ponto de saturação da umidade do ar, formam-se as chamadas gotículas de água em estado líquido que, de tão pequenas, ficam em suspensão, reduzindo a visibilidade!

    VISÃO: Um dos cinco sentidos. Por meio desse sentido, temos a capacidade de enxergar tudo à nossa volta.

    Remexendo os espaços e as gavetas do tempo, a história que se segue já foi contada por muitas gerações. A propósito, ela se repete indefinidamente… a despeito da inteligência e da sagacidade de algumas criaturas…

    Conta-se que há muitos anos, um grande nevoeiro tomou conta da cidade.

    Entretanto, o nevoeiro não veio abruptamente, mas aos poucos…

    Conta-se que as pessoas nem estranharam.

    Uma neblina pequena se formou em pontos isolados, o que não chamou a atenção de ninguém.

    Depois, outros pontos passaram a apresentar também uma fina e frágil neblina…

    O calor sempre foi uma grande reclamação e, para muitas pessoas, estava bom, o calor havia diminuído. Isso era bom! Afirmavam muitos!

    Depois, pontos e mais pontos da cidade foram sendo tomados pela mesma neblina. Até que a cidade inteira foi envolvida.

    Os carros, desde cedo, já saíam de suas casas com os faróis acesos. As pessoas saíam com casacos e se encolhiam. As luzes das ruas ficavam acesas por muito mais tempo.

    E assim foi que, quando o nevoeiro chegou, denso, forte, espesso, ninguém reclamou, ninguém se surpreendeu… todos estavam já acostumados com seus casacos e gorros e luzes e frio.

    O nevoeiro assumiu o cenário da cidade e, como se a própria cidade fosse, como um prédio, uma ponte ou uma rua, era já algo comum, banal, corriqueiro…

    Um dia, o nevoeiro tornou-se ainda mais denso… Voos cancelados. Viagens adiadas.

    O nevoeiro impedia a visão das pessoas. Elas?

    Elas continuaram seus afazeres, mesmo que se machucassem ou esbarrassem em alguém.

    E elas se batiam e se esbarravam e se cortavam até.

    Elas tropeçavam e caiam e se levantavam muitas e muitas vezes.

    E assim viviam.

    Simplesmente viviam, indiferentes às coisas…

  • Entrevista exclusiva com Trump (II)

    Nosso portal publicou em 27 de novembro de 2020, com exclusividade, uma entrevista com o então presidente Trump que acabara de ser derrotado nas urnas por Joe Biden. Em vista da volta de Trump à presidência (e às manchetes), julgamos oportuno, como documento de valor histórico, republicar a entrevista que segue abaixo:

    Sérgio Sayeg – Pleased to meet you, Mr. Trump.

    Donald Trump Excuse me, I know you?

    Sérgio Sayeg – I´m a blogger from Brazil. Can you say a few words to the brazilian people?

    Trump – Você brasileiro?

    Sérgio Sayeg – O senhor fala minha língua!?

    Trump – Sure. Eu aprender brasileiro quando fazer curso on line de ‘marxismo cultural’ e ‘terraplanismo avançado’ com mestre Olavo de Carvalho. Amazing! Ele dizer eu ser popular in Brazil.

    Sérgio Sayeg – Sim, o senhor tem muitos admiradores entre os seguidores de Bolsonaro?

    Trump – Who?

    Sérgio Sayeg – Bolsonaro, brazilian president.

    Trump – Oh, yes, Bolzonero, um leal servant. Eu brincar ser um ‘TRUMPolim’ para carreira dele. Hahaha. Em 2022, depois ele perder eleiçon to Lula, falar para ele non se preocupar com tribunal de Haia por ele destruir Pantanal, matar yanomamis e não fazer nada para acabar pandemia. Eu arrumar Green Card para ele morar in América, longe Xandão. Dar para ele emprego de capataz em minha fazenda no Oklahoma. Para filho Edward que ter know-how em fry hambúrgueres, eu conseguir trabalho no Trump Tower Grill em New York como ‘chapeiro’. Ele sempre querer ser meu ‘chapa’ hahaha. By the way, Edward me pedir para financiar international rede de brazilian barbecue.

    Sérgio Sayeg – Churrascaria…

    Trump Right! Ele indicar como partner ex-minister Richard Salles que fazer frigorífico em Xingu para produzir baby beef for exportation. Ele expulsar selvagens Amazônia, tirar mato e colocar gado e soja. Eu também pensar em fazer in the jungle the largest campo de golfe of the world, o Tropical Trump Golf Club. Eu adotar prática social e ambiental: dar empregos seringueiros como gandulas e plantar muita grama verde.

    Sérgio Sayeg – E o muro do México, presidente?

    Trump – Presidente Obrador, my left fellow in Latin America, me convencer: ‘no more muros’. Minha vitória on Flórida provar que hispânico agora aliado. Eu resolver consentir chicanos ilegales trabalhar para famílias americanas que non poder pagar previdência para employees. Melhor que fazer muro in México, fazer de México quintal do Texas. Criar novo slogan: ‘MAKE AMERICA EVEN GREATER: ATTACH MÉXICO’.

    Sérgio Sayeg – Anexar o México aos States?

    Trump Why not? ‘ATTACH’ México is better than ‘ATTACK’ México. Hahaha. México, estado 51: ‘una buena idea’, hahaha.

    Sérgio Sayeg – E a eleição de Biden, presidente?

    Trump – É uma question para psychology.

    Sérgio Sayeg – Psicologia?

    Trump – Yes. Vitória de Biden só Fraude explica.

    Sérgio Sayeg – Mas ele teve mais votos?

    Trump – Eu presidente legítimo. Se contar votos de white men, eu ganhar.

    Sérgio Sayeg – E as mulheres não contam?

    Trump – Mulher ficar em casa, non entender nada política e ser contra armas e guerras. Negócio de mulher is FFF.

    Sérgio Sayeg – Força, foco & fé (force, focus & faith)?

    Trump – FILHOS, FOGÃO & FUCK. Hahaha.

    Sérgio Sayeg – E os negros? Eles também são americanos.

    Trump I don´t think so. Quando eu ser presidente again, eu exportar niggers para Canadá e Austrália. Mão-de-obra barata para trocar oil, carvon and fossile fuels para acelerar aquecimento global e enfurecer Greta e Greenpeace. Já ter até slogan: “VIDAS NEGRAS EXPORTAM”.

    Sérgio Sayeg – E a história do vírus chinês?

    Trump Bullshit! ‘Vírus chinês’ ser apenas fake news para engajar anticomunists internetters. Eu assinar tratado my great friend Xi Jinping: governo americano liberar 5G da Huawei e governo chinês abrir capital empresas chinesas na bolsa Nasdaq: Xing-Ling Holding Company. Produto baratinho com três meses garantia, sem nota fiscal. Chinese new comunism impulsionar american capitalism.

    Sérgio Sayeg – E Putin?

    Trump – Putin maior líder europeu desde Goebbels. Ele comandar hackers que invadir celulares com ataques contra that disgusting Hillary em 2016. That man saber resolver problemas. Quando aparecer opositor, ele injetar cianureto no vinho dele e resolver queston quickly, sem vestígios. Ele usar arma química também para liquidar muçulmanos na Chechênia e crianças sírias em Alepo. Terrific! Eu ter muito aprender com ex-agent of KGB.  

    Sérgio Sayeg – Uma palavra final para seus fãs no Brasil, presidente.

    Trump – Eu gostar Brazil, principalmente a capital, Rio de Janero. Eu combinar Bolzonero ajudar construir nova Cancun em Angra com dois big empreendimentos: ‘South America Trump Shore Resort’ e ‘Trump Carnival Casino’. Contratar nativos com sombreros e beautiful mulatas para dançar mambo, samba, bolero e chá-chá-chá. As brasileñas son calientes. Desde que perder Cuba, american tourists non ter lugar para gastar dólares. I’ll be there. Wait for me! Adiós, muchachos.

  • Promessas e Cotidianos

    Ano novo anda de mãos dadas com promessas. Não fugi à regra, quando enumerei minha lista de boas intenções. Passada a euforia refleti sobre esse costume. Eu estou me enganando! Claro que sim, ora se bem me conheço, nenhum rol ou plano de ações vai mudar a minha forma de ver o mundo, de agir, de errar e acertar.

    Que alívio! Vamos então ao meu ponto de equilíbrio: escrever. Essa é a minha terapia, o meu exercício diário de conexão com o mundo, com a vida.

    Na apreciação do cotidiano, no fascínio pelo simples, pelas belezas da natureza, e das pessoas eu encontro o meu refúgio. Vejo, crio ou invento pequenos milagres ou grandes feitos no que ninguém mais viu. Me comovo e me surpreendo com novas e antigos costumes.

    Não é assim de estalo, que família e amigos, em rotinas ou viagens me entendem ou correspondem. E tudo bem!

    O comum, o rotineiro me encantam, mesmo em lugares onde estou só a passeio. O pequeno grupo de alunos que passa em frente ao hotel, os uniformes com emblemas em outro idioma, as frases que não entendo, a alegria, o riso.

    Ao sumirem na próxima esquina levam o meu olhar entre curioso e amoroso; nem por isso evito o sorriso maroto quando penso não ter nada a  ver com tarefas, almoços e problemas do dia seguinte. Sou espectadora apenas. E da minha lista de intenções, sou “grandinha” o suficiente para saber o que me faz bem, o modismo ou necessário. Então eu confesso:  só ao final do ano vou revê-la e se necessário adequar a rota!

  • Cada um é o que fala

    A linguagem nos define. Dize-me como falas e te direi quem és. A identidade entre pessoa e discurso tanto revela a personalidade do indivíduo, quanto reflete a classe ou profissão a que ele pertence. Um médico não usa as mesmas palavras que um economista, nem esse tem o mesmo discurso de um advogado.

    A variedade dos dizeres reflete a multiplicidade dos estilos, ou seja, dos específicos modos de ser; nas várias situações da vida, é impossível a cada um fugir ao seu. Entre duas ou mais palavras sinônimas, a que se escolhe indica a apreciação que fazemos dos seres e das coisas. 

    Os exemplos são inúmeros. Quem usa “ósculo” em vez de “beijo” tem uma determinada visão sobre o que é “pressionar os lábios contra o rosto ou a boca de alguém”. “Ósculo” tem uma dimensão ritualística, é solene e assexual. “Beijo” é explícito, franco, erótico. Por vezes se reveste de romantismo, como se vê em certos filmes de Hollywood.

    Machado tem um famoso personagem, José Dias, cujo traço singular de personalidade é o gosto pelos superlativos: boníssimo, famosíssimo, amaríssimo. José Dias é um ser diminutivo e busca compensar essa condição exagerando em tom sapiente e doutoral as qualidades e os defeitos dos que encontra no mundo. O “íssimo” da linguagem é uma forma de disfarçar o seu “inho” interior.

    Sempre fico intrigado quando escuto alguém usando, por exemplo, “procrastinar” em vez de “adiar”. “Colendo” no lugar de “respeitável”. “Apedeuta” em substituição a “ignorante”. Tão simples escolher a forma simples, que todo mundo entende.

    Por que a preferência pelo termo raro e erudito? Se não for por ingenuidade, é por presunção. Pelo desejo de mostrar que se conhece a palavra pouco usual. O provável mesmo é que seja para disfarçar a insignificância das ideias, que de tão desmilinguidas precisam de uma vestimenta que as inche. Quanto mais raso o pensamento, mais denso o aparato verbal com que buscamos traduzi-lo.

    Outro dia vi num convite de casamento a referência aos “senhores Fulano e Fulana de Tal”, “nubentes que iam convolar de estado civil”. Depois “festejariam as bodas” no salão de festas de um famoso “sodalício” da cidade.

    Espero que se gostem mesmo e que o empolamento do discurso não seja uma imagem da relação entre os dois. Afinal, embora muitos se casem de olho nos sobrenomes, o que conta mesmo na intimidade de um casal são os apelidos.

  • Quando o nosso nome estiver gravado na pedra

    Até os dez anos me chamei Donato, embora meus pais nunca tivessem gostado desse nome. Por que me batizaram assim é um mistério. “Não está com o rosto definido ainda”, diziam. “Quando for adulto e sua cara indicar que nome deve ter, mudaremos.” E assim foi. Aos doze, com a mudança de voz, decidiram que Donato já não combinava comigo, e que o melhor nome para meu rosto recém-estreado na adolescência seria Adalberto — Beto para os amigos. Esse nome durou até a noite de núpcias, quando, no momento crucial, minha mulher me chamou de César. “Céeeesar!”, gritou ela, antes de largar o corpo na cama, suada e satisfeita. “Ela se casou com o Beto e tirou a virgindade do César”, meus amigos faziam sempre a mesma piada.

    Desde então mudei de nome em outras três ocasiões: no escritório em que fui trabalhar eu me sentia Oswaldo, e assim me apresentava a todos; na faculdade, Péricles; na mesa de jogo, antes de bater o punho e gritar “Truco!”, Evanildo.

    Meus amigos se confundiam. Para facilitar a vida deles, aceitei que colocassem no meu pescoço uma tabuleta com o nome que eu usava no momento e, mesmo assim, ficavam pouco à vontade quando tinham de me chamar. Achavam essa mudança de nome uma bobagem. “A gente nasce, ganha um nome e fica com ele até o fim, até morrer, não é esse o normal?”, perguntavam sempre. Eu respondia que eles tiveram sorte, que o rosto deles se moldou ao nome que ganharam no batismo e não havia necessidade de mudar. Não era o meu caso, meu rosto não era sempre o mesmo e, por isso, o meu nome precisava se adequar. Para tranquilizá-los, eu acrescentava que, um dia, seríamos todos iguais, teríamos o mesmo rosto e o mesmo nome gravado na pedra.

  • #08 – A Ilha

    .

    A ilha com seu silêncio
    me comunica a morte
    dos seres espectrais
    que nela vivem ou já viveram.

    A ilha cercada por mangues
    é um poço de lama e óleo.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim
    dos pescadores da ilha.

    Os pescadores da ilha
    me apresentam a pesca de um dia,
    nada.

    A ilha com sua morte
    me comunica o silêncio
    dos seres superiores
    que a mataram e matam.

    A ilha abandonada pelos banhistas
    é um deserto de espuma e água.

    Os frequentadores da ilha
    me comunicam o desastre
    das praias da ilha.

    Os frequentadores da ilha
    me apresentam o bronzeado de um dia,
    petróleo.

    A ilha com sua sorte
    me comunica o crime
    dos seres continentais
    que seguem impunes.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim dos peixes
    e voltam tarde para casa.

    O Acaso das Manhãs

  • Tâmaras, vinho branco e gatos

    Há algumas semanas a bandeja de tâmaras – com caroço, tal qual informava a identidade visual da embalagem – repousava paciente sobre a bancada da cozinha, no aguardo do momento especial que tanto se preparava Theobaldo. Amante de história e das descobertas da gastronomia dos tempos passados, planejava dar à fruta uma espécie de protagonismo em um quitute da Roma Antiga. Mas faltava-lhe o mel e as nozes, e com sua atual situação financeira não conseguia juntar todos os ingredientes ao seu carrinho de compras essenciais. Em um sábado à noite deste janeiro desconcertadamente quente, deu mil desculpas diferentes aos amigos, recusou educadamente um convite de festividade de aniversário e se deu ao luxo de matar a garrafa de vinho branco, um Chardonnay 2018, resfriado dentro de seu frigobar retrô. Theo ficou na ponta dos pés, com algum esforço, e alcançou a prateleiras das taças, no alto.

    Passou uma água rápida no delicado vidro, ajeitou-o sobre a bandeja de madeira e cortiça – herança do enxoval dos pais -, pôs a bandeja de tâmaras e a garrafa de vinho, já consumida além da metade. Apagou a luz, acendeu um abajur e um incenso de odor madeira do oriente, escolheu uma playlist de “músicas tradicionais japonesas” no celular, pareou com sua caixa portátil de som e sentou-se em seu decrépito sofá, pernas esticadas e apoiadas em um escabelo improvisado, de frente ao ventilador – que girava e girava, de um lado para o outro, incessantemente, desconcertado, ele também, com a quentura daquela noite.

    Com as mãos, rasgou a embalagem plástica de fina espessura e sentiu o peso daquele romance japonês, primeira publicação em português de renomada escritora oriental, e sorriu – ao fundo, tambores e flautas embalavam o momento infinitamente poderoso que é o de um leitor abrindo o portal do mundo de um novo livro. Rasgou também a película protetora das tâmaras, e levou tal fragmento de sol concentrado – e enrrugado – à boca.

    Eu sou um gato. Ainda não tenho nome.

    As duas primeiras sentenças impressas em papel de pólen estalaram na mente como onsabor da fruta pousou na língua, um segredo antigo, uma textura que desliza e adere – metáfora também para a movimentação própria dos felinos -, quase um veludo caramelado, mas com a resistência sutil de algo que já foi vivo e pleno.

    Um gole do vinho e a língua brinca com as sensações; a estória não é pura e simplesmente sobre um gato, mas uma narrativa pela perspectiva de um. Outra tâmara: o paladar, de pronto, é invadido por uma doçura profunda, quase envergonhada de si mesma, como se fosse uma afronta ser tão doce e, assim, guardasse um toque de terra no final, um sussurro de suas origens áridas.

    [Pausa para esticar pernas e braços, já que o vinho chegou ao fim; uma rápida caminhada até a bancada da cozinha e a garrafa é preenchida com água gelada, sem que o resíduo da bebida anterior fosse descartado – uma espécie de água saporizada].

    Tóquio é a paisagem trazida pelas palavras que ganham vida através da conexão mente e olhos; os dentes recebem a tâmara com um pequeno estranhamento inicial – há maciez, sim, mas também uma firmeza discreta, um lembrete de que algo precisa ser rompido antes do banquete. E então gato e seu mestre entram em uma van prata, simbólico objeto de seu encontro, e iniciam uma viagem por vias expressas, mar, plantações e diferentes cidades, aventura de evolução e descobertas de desventuras que não afetaram a leveza de vida de um solitário japonês adulto, cuja única companhia é a de seu gato, batizado então por Nana, que significa 7, o literal formato de seu rabo.

    É nesse instante que a tâmara revela seu truque: a densidade da sua carne, que não cede de imediato, mas se entrega aos poucos, num misto de resistência e rendição. Como mastigar um poema, cada pedaço é uma linha que se dissolve, doce e incomensurável, até desaparecer.

    E assim, entre o degustar das tâmaras, do vinho branco que humanamente é transformado em água, o romance também vai desaparecendo da brochura, dissolvendo-se na construção da essência de quem o lê.

    Há quem diga que sábado à noite é momento fértil para mudanças. No entanto, nem sempre são as grandes epopeias que nos moldam: pode ser em uma cerimônia íntima, ou ritual de solitude – o abrir de um livro, o degustar de uma modesta refeição – que o doce e a esperteza das coisas penetra a carne e nos devolve ao mundo mais humanos – e, quem sabe, muito mais inteiros.

  • O óbvio como argumento

    Ao escrever, deve-se em princípio fugir do óbvio. Nada irrita mais o leitor do que se deparar com informações que ele já conhece ou pode facilmente deduzir. Elas parece que estão no texto para “encher linguiça” e completar o número de linhas.

    O óbvio está para o conteúdo assim como o clichê está para a forma. É um lugar-comum mental. Indica pobreza de ideias mais do que de estilo e concorre para baixar a informatividade. Dizendo o que todos já sabem, o redator dá a entender que não tem um pensamento próprio. É uma espécie de “maria vai com as outras” (escrito agora sem hífen, em razão dessa esdrúxula reforma ortográfica).

    São óbvias afirmações como as de que “o Estado deve promover o bem-estar dos cidadãos”, “o capitalismo aumenta a desigualdade social”, “o homem precisa continuamente rever os seus conceitos” etc. etc. Informações desse tipo, de tão batidas, nada acrescentam ao que o leitor já sabe.

    Mas nem tudo no óbvio é inútil. A evidência que ele representa pode ter valor argumentativo, ou seja, servir de reforço a um ponto de vista. Existe um nome para esse recurso: argumento de presença. Por meio dele se realça uma verdade indiscutível, um conceito ou ideia que as pessoas devem ou deveriam ter em mente.   

    Esse tipo de argumento aparece, por exemplo, nesta passagem da redação de um aluno: “A adolescência é uma idade de conflitos e insegurança, por isso o adolescente deve ser orientado em suas escolhas”. O que ele afirma na primeira oração não é novidade. Psicólogos, pedagogos, terapeutas (e os pais, pelo que experimentam em casa!) sabem que os conflitos e a insegurança em boa medida caracterizam o universo mental dos adolescentes.   

    Geralmente quem formula o argumento de presença não o faz apenas para “dizer de novo” o que já se sabe. Procura associá-lo a outros recursos argumentativos. No exemplo que acabamos de mostrar, a verdade enfatizada pelo estudante serve de reforço ao apelo que ele faz na segunda oração (no sentido de que se devem orientar os indivíduos nessa faixa de idade).

    Por que precisamos trazer à tona o óbvio? Porque o ser humano comumente se alheia de princípios que não poderia nem deveria esquecer. Isso o leva a negligenciar deveres, distorcer valores, praticar injustiças contra si ou contra os outros. Repetir antigas verdades é sempre uma forma de chamá-lo à razão.

  • Desde aquele dia

    Em 2010 eu morava em Gaurama e não sabia o que fazer da vida dali pra frente. Aos vinte anos a gente acha que pode tudo e acredita cegamente que as questões da vida têm soluções simples, num otimismo nada mais que adolescente. Eu estava perdido e assim fiquei talvez por mais um ano ou dois, pois tinha abandonado uma faculdade, concluído dois cursos técnicos dos quais pouco aproveitei e seguia vivendo na crença de que teria um futuro promissor como baterista. Embora hoje, década e meia depois, me orgulhe de uma empreitada ou outra, ando com a certeza de que jamais me dediquei tão fortemente a algo como ao instrumento.

    A bateria me era uma religião. Estudava como se apostasse todas as fichas numa única jogada e criei uma rotina que ultrapassava dez horas de prática por dia. Lia todas as revistas, buscava referências, bandas e músicos, fazia aulas com os bateristas mais experientes da região e viajava seguidamente para workshops em Porto Alegre e Caxias do Sul. Vez ou outra, além disso, compunha músicas para a banda da qual fazia parte, chamada General Lee.

    Nessas idas e vindas, conheci muita gente e sempre foi comum a surpresa quando falava sobre a minha cidade. Acredito que era, e ainda é, relativamente estranho viajar de um lugar com seis mil habitantes para um grande centro por conta de um workshop de bateria, que tem duração de, quando muito, duas ou três horas.

    Numa dessas o Rubens, baterista que encontrava nos workshops pelo estado e com quem converso até hoje, liga no telefone fixo de casa ao meio dia. Eu almoçava com a minha avó. Jamais soube como ele conseguiu aquele número. O fato é que não tive tempo para me surpreender com a ligação porque ele foi direto ao ponto. Um conhecido músico gaúcho acabara de entrar numa polêmica das brabas e tinha de sumir por uns dias. Gaurama seria o lugar perfeito. Concordei sem pensar e só quando desliguei percebi que não sabia o nome do fugitivo. Ao ser indagado, segundos depois, disse apenas: “vamos esconder alguém”.

    Pelo extinto MSN, combinamos o restante. Na sexta de tarde, eles viriam com um Punto preto, eu aguardaria sua chegada em frente ao posto de combustíveis na entrada da cidade e os guiaria até a minha casa. Soube quem era o tal músico só quando estacionamos. A minha avó era cúmplice e até gostou da história, acabou preparando uma macarronada para o jantar.

    Organizamos um quarto isolado, no sótão, com vários cobertores, pois aquela foi uma das semanas mais frias do ano. Ansioso e um tanto tenso porque, afinal, mal conhecia o Rubens, e, sejamos sinceros, aquilo tinha tudo para dar errado, quase mijei nas calças quando vi o Humberto Gessinger saindo do carro. Trazia uma mochila e uma edição antiga do Crônica da casa assassinada, do Lúcio Cardoso. Ao me ver, no looping de uma surpresa paralisante. gargalhou e agradeceu a parceria.

    A sensação de pânico não me abandonou naquela noite. O Humberto e a minha avó conversavam sobre os mais variados assuntos como velhos amigos. Eu mal acreditava no que via. Na manhã seguinte, mostrei a cidade ao forasteiro que, de touca e óculos escuros, fazia várias perguntas. De tarde descemos ao porão de casa, onde estavam os equipamentos da General Lee. Ele olhou tudo com calma e, ao ver o baixo na parede, pediu de quem era. Eu respondi que era do Joel, o baixista da banda, que geralmente o deixava ali para os ensaios. O Humberto o mirou por mais alguns instantes e, com a mão no queixo, sem virar para mim, disse: “Será que ele se importaria se fizéssemos um som?”. Aquele era um dos raros fins de semana em que não ensaiaríamos e, não preciso dizer que ficamos por horas, Humberto e eu, tirando um som no porão de casa. Só paramos quando a minha avó nos chamou para o jantar.

    Depois, por sugestão dele, fomos ao Maruag Pub. Ele estava de touca, manta e óculos, tapando quase completamente o rosto. Naquela noite, o Pub promoveu o show de uma banda de Passo Fundo, mas teve pouco público. O frio assustava. Assistimos sentados, num canto meio escondido, tomando seguidas latinhas de Coca-Cola, com raros comentários, pois o Humberto não tirava os olhos da banda. Quando a apresentação acabou, o vi escrevendo um SMS no celular, pagamos a conta e voltamos para casa, em silêncio.

    Jamais pensei em revelar essa história, mas creio que o Humberto já não se importe. Ninguém o reconheceu naquele fim de semana e não houve aborrecimentos posteriores. Acho até que o pedido de sigilo tenha jubilado. No domingo bem cedo ele partiu. Autografou alguns discos e pediu para que não contasse da visita a ninguém. A minha avó o convidava seguidamente para retornar enquanto se despedia. Eu via aquele Punto saindo pela estrada sem entender o que havia acontecido, com a certeza de que ninguém acreditaria caso contasse. Pouco me lembro dos dias subsequentes, mas fui alvo de piadas no ensaio da banda por estar feliz. E nunca pude contar o porquê. No fim das contas, a vida é mesmo cheia dessas coisas difíceis de explicar.


  • Cento e vinte e duas folhas

    122 folhas caíram sem aviso prévio, de um dia para outro, do Manacá que resiste às intempéries da vida, aos seus altos e baixos, junto a outras tantas plantas, que já somam mais de 4 dezenas espalhadas pelas varandas e cômodos de um apartamento situado em rua tranquila, que nem parece centro de cidade média. Cercado por árvores urbanas, cujas copas privatizam a vizinhança, garantem a qualidade de vida e o cantar dos pássaros a um sem número de pessoas e situações, o número de folhas parece um número pequenino: cento e vinte e duas — não cento e vinte, nem cento e vinte e cinco: exatamente cento e vinte e duas. Seria tal montante uma mensagem do acaso ou um capricho da própria planta, que, desconfiada da mão humana que a cuida – aquela que escolheu tê-la em sua rotina, pelo prazer de cuidar e ver seus frutos como recompensa – decidiu ensaiar uma pequena rebelião?

    O verde da paisagem predomina. Mas são as folhas pontiagudas, firmes – de maioria idosa, outras que sequer chegaram ao seu tamanho final – que, mesmo jazendo no piso frio, transformados os seus verdes, vistosos e habituais, em amarelentas folhas, enrugadas folhas, são o foco da atenção – não as copas vibrantes do entorno, mas estas formas já amorfas ao rés-do-chão da varanda da casa de quem é responsável por as fazer florescer, e assim ter sombra, e receber a visita de pássaros, a bagunça causada pela passagem do vento, ambientando mais natureza ao lugar cinzento que configura as construções do homem, que tanto destrói pela simples ganância em criações. A morte ou a interrupção do que é esperado é instantaneamente mais interessante do que toda a beleza vivente ao redor. Colhidas na palma de uma das mãos enquanto a outra pinça as recém defuntas folhas, o subconsciente humano se questiona;

    – Foi o vento, foi o calor, foi a falta d’água?

    O Manacá então, com tantos galhos desfolhados, que casou-se com um copo de leite branco e anda trançando sua copa aos pecíolos da samambaia – no auge de sua fase esporófita – vai acabar perdendo a esposa para o jovem pé de café, destemido e energizado, que cresce aumentando vagarosamente suas folhas – sem as perdê-las – enquanto não tira os olhos das formosas folhas alongadas que já não tem forças para fazer brotar sequer um único copo de leite.

    – Um bom café com leite é uma combinação das mais perfeitas!

    – Sussurra o pé de uma das bebidas mais consumidas do mundo a sua amada, ao enxergar a traição injusta.

    A queda concomitante de cento e vinte e duas folhas pode ser por culpa. Não necessariamente excesso de vento, o sopro de uma consciência superior, ou do calor intenso deste verão (metáfora de uma paixão desmedida de férias): há o equilíbrio das chuvas, há o zelo da rega constante. A culpa, ou melhor, sua confissão, pode ser porque, quanto menos folhas, menos consegue o Manacá esticar seus braços em direção à amante. No fundo, a culpa pode ser por um ímpeto natural, cuja consciência o faz sofrer.

    As percepções podem ser tantas que, não fosse a necessidade do funcionamento humano de fazer sentido, o copo de leite poderia ser o adúltero, e a perda das folhas um sintoma de depressão do Manacá sofredor. A samambaia poderia apenas tentar ajudar um amigo, sendo sua confidente. O café poderia ser o grande vilão, disfarçado de herói.

    Ou, simplesmente, poderia tratar-se de uma troca de folhas necessária: caem as folhas como caem os dias. E a relação das plantas não ser outra que a organização preferida por seu cuidador, que brinca de ser Deus até na narração de tantas possíveis estórias.


  • Entrevista de Itararé (com o Barão Idem)

    Apparício Torelly, conhecido como o Barão de Itararé, foi um famoso jornalista que atuou na imprensa brasileira nas primeiras décadas do século passado. Notabilizou-se pelo espírito crítico e o humor ácido, expressos em tiradas como as que constam na entrevista abaixo. Fi-la (ele deploraria essa ênclise!) extraindo passagens da sua obra, que tem servido de estímulo e inspiração a muitos humoristas brasileiros. Vamos então às perguntas:

    P – O senhor promete dizer tudo neste bate-papo? Não vai esconder a verdade?

    R – Sou um homem sem segredos, que vive às claras, aproveitando as gemas e sem desprezar as cascas.

    P – Falemos primeiro de política. O Brasil discute agora o seu regime de governo. Muitos querem o presidencialismo – pelo futuro não do País, mas do presidente de plantão. Que pensa o senhor sobre isso?

    R – A moral dos políticos é como elevador; sobe e desce. Mas, em geral, enguiça por falta de energia …

    P – Por falar em política, o senhor tem alguma sugestão para o pagamento da nossa dívida?

    R – Tempo é dinheiro. Vamos então fazer a experiência de pagar as nossas dívidas com o tempo.

    P – E como ficam os credores internacionais?

    R – Quem empresta, adeus …

    P – A mudança no regime de governo deve alterar o processo de escolha dos homens públicos, Barão?

    R – O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato.

    P – Falemos de outras coisas. O senhor considera que exista alguma regra para comer e beber?

    R – Comer até adoecer, beber até sarar.

    P – Verdade, Barão? E o fígado?

    R – O fígado faz muito mal à bebida.

    P – O álcool às vezes, realmente, é um consolo para os misantropos. Ou para os misóginos…

    R – Quanto mais conheço os homens, mais gosto das mulheres.

    P – Mas isso o levaria, por exemplo, a se casar?

    R – O casamento é uma tragédia em dois atos: um civil e um religioso.

    P – Ora, dizem que os homens inteligentes dão bons maridos.

    R – Que tolice! Os homens inteligentes não se casam.

    P – Mudando de assunto. Como o senhor vê certos frutos modernos do engenho humano – como por exemplo a televisão?

    R – A televisão é a maior maravilha da ciência a serviço da imbecilidade humana. Com o progresso, um ignorante pode somar maquinalmente.

    P – Ah, então o senhor é um passadista. Acredita, como Comte, que os vivos são governados pelos mortos.

    R – Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos.

    P – Dou-me por satisfeito, Barão. Muito obrigado.

    R – O “Muito obrigado” é sempre um pagamento módico.


  • Paraíso também fica nublado

    Não foi difícil achar essa cadeira de frente para o mar. O sol, que estava poderoso desde as primeiras horas da manhã, cansou da função e foi se esconder atrás das nuvens. Os turistas, ou melhor, os outros turistas porque também não sou daqui, bateram em retirada e se espalharam pelos bares e lojinhas.

    De onde estou, na ponta da praia, ouço distante o murmúrio da música. Nada que me agrade e por decoro estético e consideração com as pessoas que gentilmente me atendem na pousada não vou mencionar o gênero. Mas fica combinado que nem no meu enterro é para ser tocada.

    Um vento suave passa pelo meu rosto, braços e pernas. A saída de praia me cobre quase por completo. Sobre o mar, gaivotas aproveitam e descansam no ar quase imóveis, me lembrando Tom Jobim e seu Jereba.

    Suspiro. Início de ano. Sozinha. Ou melhor, sem ninguém para trocar uns sorrisos e fechar os olhos a dois. Mas nada que me faça ter palpitação. Depois de dois maridos, vários namorados e casos que não fico contando porque não é elegante posso dizer sem exagero que meu coração segue forte.

    Confesso que eventualmente sinto falta daquela arritmia que uns chamam de amor e eu, a partir dos meus poucos cabelos brancos, prefiro entender como momentos para compartilhar a curtição. Sim, porque o descompasso cardíaco também acontece nas pequenas situações, no olhar sedutor, nos cumprimentos gentis e nas palavras bem escolhidas.

    Pode durar pouco, é verdade. Mas se conseguiu acelerar a circulação, pode contabilizar na coluna dos bons momentos vividos. Não foi uma fantasia sua, existiu de fato. Mesmo efêmero, mesmo sem condições de ir adiante.

    Vale o momento, por que não? Para sentir-se bem, com o coração cantando, não é preciso ter uma estória de amor com música francesa, vinho e coisa e tal. Por muito menos, já dá para remexer o corpo e sorrir em sintonia com alguém que valha à pena. Não para a vida toda, mas para aquele momento especial que um foi posto diante do outro.

    Como saber que instante mágico é esse? Basta você prestar atenção.

    Porque a vida é assim e diante do mar não tem como deixar de lembrar de Lulu Santos. Um ir e vir infinito, de ondas, afetos, amores. Uns me marcaram, outros eu marquei. Alguns passaram sem deixar lembrança, em outros fui eu quem não deixou vestígios. Faz parte, sempre faz parte.

    O que não estava no roteiro era esse tempinho feio em pleno verão. Se continuar assim vão achar que passei as férias na Groenlândia vestindo burca.

    Porque sei que ninguém vai acreditar que o paraíso também fica nublado.


  • Abrir uma janela para a alma!

    Quando falamos na busca para a cura de problemas emocionais, um dos diferenciais para pensar melhor nossas vidas é utilizar uma teoria aberta que inclua diversas ideias diferentes, e permita uma discussão de opiniões distintas nessa árdua existência. 

    Uma dessas teorias é a logoterapia que utiliza uma abordagem psicoterapêutica reconhecida internacionalmente, e se baseia na premissa de que a principal força motivacional de um indivíduo é encontrar um sentido para sua vida. 

    Segundo Nietzsche, “quem tem por que viver aguenta quase todo como”. 

    Nessa área não podemos esperar uma resposta pronta porque não existe, e não cabe a nenhum psicólogo dizer ao indivíduo qual o sentido da sua vida.

     Seria sem desventura nenhuma nossos dias de perseguição e luta pelo prazer, e o encontro com a felicidade, se não dependessem muito de nosso interesse.

    O Dr. Viktor E. Frankl, um neuropsiquiatra 

    austríaco, foi o fundador da Logoterapia e Análise Existencial. 

    Ele ficou mundialmente conhecido após descrever sua experiência dramática em quatro campos de concentração nazistas, em seu best-seller 

    internacional: “Em Busca de Sentido”.

    Ele foi libertado somente ao fim da guerra quando tomou conhecimento de que sua mulher faleceu de esgotamento, e seus pais e o irmão, haviam morrido no Holocausto nazista. 

    Uma das pérolas que Dr. Viktor nos deixou é que “A vida é sofrimento e sobreviver, é encontrar sentido na dor. Se há, de algum modo, um propósito na vida, deve havê-lo também na dor e na morte”.

    Essa visão aberta da logoterapia traz a possibilidade da disseminação de múltiplas formas de felicidade e a discussão promovida na mesa, é a base do crescimento coletivo.

    O gatilho que mostra a felicidade em uma curva possível durante a busca, na verdade promove uma nova chance com dor e lágrimas, porém, capaz de proporcionar que sigamos em frente mesmo sem saber para onde ir, porque o durante, é onde se concretiza a experiência. 

    O andar desmonta o pesar e os sobreviventes serão os experientes de amanhã, que saberão empunhar novas armas para usar nesses quinhões de desafios. 

    Como definiu Dostoiévski, o ser humano é um ser que a tudo se habitua.

    Mas afinal, quando se encerra o drama de quem por vezes não sabemos quem somos.  

    Chorar ajuda, é uma maneira de abrir uma janela para alma e deixar esvaziar o sangue dolorido.


  • Tatiana está sangrando

    Era perto do meio-dia quando Tatiana saiu correndo da escola. Ela tinha ainda que almoçar antes de se encontrar com a Ju. Estava atrasada, e isso a fazia suar mais. Passou no meio dos meninos a tempo de escutar “A gorda tá com pressa?” Olhou para a frente e correu mais. Não dava tempo de chorar. “Corre mesmo, gorda, pra ver se perde meia tonelada”, ela ouviu antes de cruzar o portão e ganhar a calçada. Subiu no ônibus e procurou um assento no fundo da condução, onde ninguém a visse. Olhou pela janela e aí, sim, chorou um pouquinho. Decidiu não ir na Ju, depois ligaria para a amiga. Faria sozinha hoje.

    Entrou em casa, gritou “Cheguei!” e foi direto para o banheiro. Trancou-se, pegou o estilete na mochila e começou. Doeu tanto, tanto, no corpo e no coração, mas vai cicatrizar. Tatiana sabe que todas as feridas cicatrizam mais cedo ou mais tarde. Fica a marca por um tempo, depois some — um fio de sangue que corre pelo joelho, uma trilha que nasce no ponto do corte e busca, pela gravidade, alcançar o chão. Uma gota maior e mais robusta dilata o fio vermelho e morre no meio da gaze que a mão aperta contra a pele, estancando a hemorragia. A água fria da torneira termina de limpar o resto, só permanece aquele tom avermelhado e difuso, a mancha que denuncia a mutilação, a identidade do flagelo imposto por ela própria.

    Tatiana sabe que isso está errado, mas não consegue parar de errar. A mãe chama “Almoço pronto. Tá morta aí dentro?” Tatiana quis gritar “Tô”, mas só disse “Já vou”. Não queria ver ninguém naquele momento, não precisava de testemunhas na hora de lavar e expiar o que os outros consideravam pecado. Tampouco precisava que mais uma vez, outra vez, a julgassem e lhe apontassem com o dedo. Seca as pernas com papel higiênico e puxa a saia para baixo, escondendo os sinais.

    Semana que vem, quando a marca de hoje já estiver velha, uma nova será feita, porque ela precisa de ajuda e, na hora da ajuda, ninguém aparece. Só aparece a Ju, tão gorda, tão vesga, tão infeliz como ela.


  • O NARRADOR

    Nós, humanas criaturas, contamos, desde sempre, histórias. Histórias para ninar, histórias para assustar, histórias de amor e outras sem fim, histórias de nós mesmos e histórias para divertir… O fato é que não importa a finalidade, contamos histórias. E elas, as histórias, têm um dono!

    Não falo dos autores, não falo dos editores e tampouco dos que representam a indústria da arte contemporânea. Falo, simplesmente, do narrador.

    O narrador. Este ser criado e imaginado e experimentado por seus criadores.

    O narrador. Este ser entre o real e o imaginário, o ambíguo e o contraditório. Tímido ou panfletário…

    O narrador com pele e ossos e cabelo… Ou apenas uma voz que nos orienta.

    O narrador e o seu olhar sobre as coisas. A sua fala. As suas falas.

    Somos capazes de acreditar no que ele diz. Somos capazes de odiá-lo e amá-lo!

    Ao acabar o seu texto, o autor morre. O narrador não. A palavra é sua. As verdades e as mentiras, as nuanças de cor e as dúvidas que encerra. Tudo o que disser, sendo ele personagem ou não, sairá da sua boca como se fosse vida.

    Em Grande Sertão Veredas, o desesperoamorpaixão de Riobaldo por Diadorim é o desespero amoroso do narrador. As falas monossilábicas de Fabiano, em Vidas Secas, são a aridez e a contenção do narrador. O riso, a crítica, a língua e o olhar de João da Ega, em Os Maias, para além de Eça, pertencem ao olhar e à língua do ferino narrador.

    O narrador provoca, atiça, desorienta, como as vozes criadas por Clarice Lispector.

    O narrador brinca, observa, desenha os detalhes e prepara a armadilha.

    No entanto, entre diversos romances, contos, crônicas, dois narradores machadianos merecem destaque: Brás Cubas, o defunto-autor, e Bentinho, o homem traído.

    O Bruxo do Cosme Velho sabia criar narradores!

    O primeiro, do outro lado da vida, dedica: “Aos primeiros vermes que roeram as frias carnes do meu cadáver…” O sarcasmo e a mediocridade de Brás Cubas lhe cabem e lhe pertencem do primeiro ao último parágrafo. Seguimos com ele. Rimos. Confiamos e desconfiamos de Brás Cubas. Machado de Assis observa, apenas observa seu narrador-personagem discorrer sobre a vida e a morte, a mostrar todas as hipocrisias da sociedade de seu tempo. Muitos não compreendem o mistério: um morto que escreve. Mas escreve morto? E como se dá? É o narrador e o que diz: as suas verdades e as suas mentiras.

    Por meio do seu olhar e daquilo que diz, temos um cenário perfeito do Rio de Janeiro do final do século XIX.

    Brás Cubas, depois de morto, já não precisa usar a máscara social e, por isso, revela, com a ironia tão peculiar aos textos machadianos, sua total mediocridade! Brás Cubas é um intolerante, preguiçoso, presunçoso e interesseiro, enfim, um total idiota! Mas, a forma como conduz sua própria história, permite que nos aproximemos e, como mistério, mágica ou estratégia, nos afeiçoamos ao idiota genial. 

    Brás Cubas revela, a partir de si, a condição de miséria do gênero humano.

    Ponto para Machado!

    O segundo, entre o ciúme e a obsessão, a todo instante escreve sobre os olhos de Capitu: culpada! Não… Machado, mesmo que declarasse a inocência de Capitu, não nos convenceria porque Bentinho é incisivo e doentio: culpada! O que restaria ao escritor carioca diante de tão rochoso narrador? Bentinho é contundente, perseverante e, por que não dizer, envolvente! Ela é culpada segundo a versão do narrador. A versão é falsa? Distorcida? Isso não importa! Importa é que os fatos são apresentados por ele: as suas verdades e as suas mentiras!

    Bentinho se protege criando camadas e mais camadas e fechando-se por inteiro. É teimoso! Ensimesmado! É, por isso, o casmurro. Dom Casmurro.

    Bentinho acredita no que escreve! Bentinho fervorosamente acredita no que escreve!

    Não teremos a versão de Capitu. Bentinho não cria a oportunidade. Não quer. Não pode. O que sabemos é que os olhos de ressaca prenunciam Escobar.  O que sabemos é que o choro de Capitu provoca sentimentos e sensações diversas. Entre palavras e sentidos, postos e expostos, induzidos e conduzidos, os argumentos do narrador acusam a traição.

    Mais um ponto para Machado.

    Contar histórias define nossa identidade! Somos o que contamos e ouvimos.

    Reside aí a grande questão de tudo o que se entende como narrativa: as verdades e as mentiras são contadas e recontadas de modo a fazer das verdades, mentiras e, das mentiras, verdades… ou ainda embaralhar bem os dois conceitos para não se saber distinguir o que é verdade ou o que é mentira!

    Assim, todos os narradores contam suas histórias. E acreditamos nas mentiras ou verdades que são contadas através dos séculos.

    Assim, conhecemos uma parte da história de Capitu. Desbravamos as terras e o sertão dentro de Riobaldo. Esfarelamos a terra e sentimos o calor e a fome de Fabiano.

    Enfim, enquanto for possível abrir um livro, muitas vozes, inúmeras vozes se manifestarão. Serão as vozes de todos os narradores iniciando suas histórias e fazendo cada leitor acreditar nas suas verdades e nas suas mentiras


  • Sobre ontem

    Contrariada, acordei às 6h da manhã. Hoje é dia de Pilates e caminhada. Pensei em esbravejar, dizer o quanto eu odeio esse compromisso com o bem viver, mas melhor não.

    Faz tempo que aceitei que atividade física é remédio. Não importa se o gosto é ruim, se a drágea é muito grande, engole! Também cansei da cobrança de encontrar um exercício que me desse prazer, já fiz muito esforço para achar um amor, a empreitada é inglória. Então, me troquei e fui. 

    Na volta da caminhada, num calor de furar o saco da paciência, decidi passar na padaria para comprar um picolé Magnum. Adentrei no recinto e me lembrei da dieta que prometi começar hoje. Adio o projeto por mais um dia? Talvez não seja tão complicado, tenho adiado há 50 anos… não, melhor não. Perderia muito da minha admiração por mim. Preciso ter palavra. Me prometi ser mais honesta comigo. Quem sabe um picolé de fruta? Com certeza, é menos calórico que o Magnum. Não, melhor ficar sem nada do que aceitar remendas no desejo. 

    Superado! Hoje tem o meu programa favorito na tevê. É por ele que aguardo e me motivo a seguir em frente. 

    O tempo dança com os ponteiros do relógio de parede, enquanto espera o fim do meu expediente.

    Tomo um banho caprichado feito quem se prepara para a festa. Lanço mão do pijama preferido. Ligo a tevê, o ar, sim, mereço, nada de mesquinharias. Faço a pipoca, salgada, porque fiz promessa de ficar sem açúcar até o carnaval. Me estico no sofá. Mereço! Começa o programa. Um estrondo anuncia o fim da atividade laboral de um transformador. Acaba a luz. Breu. Da varanda, vejo uma tevê acesa no prédio em frente. 

    Será que o morador reconhece a sorte de estar naquele prédio, naquela sala, naquele momento? Será que assiste ao meu programa ou foi vencido pelo sono e dorme sem saber do seu privilégio? 

    Espero. Espero. Escrevo a crônica. O sono chega. A chuva leva para longe a irritação.

    Em algum lugar alguém deseja esse silêncio, esse tempo, essa chance de pensar no amanhã como possibilidade. 


  • Tudo novo de novo

    O início de ano, quando há troca de gestão municipal, não surpreende ninguém. E quando há troca de gestão estadual e federal, não é diferente. São comuns os discursos tarimbados, com argumentos fantasiosos e copiados dos governos anteriores (nunca cumpridos, de fato). São mais comuns ainda as votações de projetos polêmicos em ampla aceitação justamente nos dias em que ninguém está com paciência para a política.

    Então, ano sim ano não, a gente acaba passando pelo mesmo tipo de raiva. Não indico remédios, embora os conheça (alguns, inclusive, um nocaute), não indico nenhuma atividade além do saco de pancadas e do ódio, por mais infantil que pareça. Eu diria, inclusive, que sentir ódio da política brasileira é como a gripe: todos teremos um dia. Umas fortes, outras fracas, umas retornam depois de um tempo, outras são curadas rapidamente, mas basta um nariz entupido para o incômodo reaparecer e as lembranças poluírem a nossa memória. Com a política é também assim.

    E, de fato, a mudança de gestão é uma festa. A ala vencedora promete honestidade e transparência. A ala perdedora se cala, tenta um estreitamento de laços e, talvez, uma vaguinha como cargo comissionado, afinal, eles sempre podem precisar de um favor aqui ou acolá. Dois meses antes, se ofendiam mutuamente em debates na rádio ou na televisão, agora discursam em tom harmonioso. Isso é absolutamente normal, porque, como diz o jargão dos anos oitenta ou noventa (não sei, exatamente), a política é suja. Não há como discordar. E esse encardido não sai de jeito nenhum.

    Legislar em causa própria parece ser um dever tão importante quanto prometer melhorias para a saúde e para a educação durante a campanha. Passam meio ano dizendo que precisamos de alternativas, defendendo uma nova forma de fazer política, sugerindo que apenas com eles teremos uma saída para um mundo melhor, sem corrupção e, deveras, desenvolvido. Após a eleição, antes mesmo de assumirem os seus tão almejados postos, conseguem (de que maneira, não sei) angariar apoio e aceitação para votarem em regime de urgência o aumento dos próprios salários. Culpa da inflação, claro.

    Quando nós estamos pensando em descansar, planejando as festas de fim de ano, organizando a ceia de natal, o reencontro com familiares, as férias ou possíveis viagens, eles, nossos amigos vereadores (inclusive os que não se reelegeram ou não tentaram a reeleição), por sua vez, estão votando rapidamente o aumento dos seus honorários.

    Prefeitos, vices e secretários são também lembrados nessa barca, por obviedade. Eu sempre me perguntei por qual motivo os vereadores merecem salários tão altos, visto que, as sessões das câmaras municipais ocorrem, geralmente, à noite, e eles não precisam deixar os seus empregos para cumprir sua função política. Até entendo que, muitas vezes, viajam pra lá e pra cá, buscando apoio, emendas parlamentares e seja lá o que for; no entanto, ainda acho que o pagamento de diárias para esses translados já bastaria (embora recebam o valor da mesma forma, em adição ao salário). Além disso, as sessões, por vezes, não duram sequer uma hora. Então, poderíamos considerar que um vereador de cidade média ou pequena, recebe o equivalente a quatro ou cinco salários mínimos, quando pouco, para participar de quatro ou cinco horas de sessão por mês. Não parece estranho para vocês?

    Não ficarei aqui comparando o custo de cada vereador, nem calculando o salário dos vereadores com o do cidadão comum, tampouco dividirei esse montante por horas trabalhadas. Não gostaria de causar constrangimentos (na verdade, gostaria). Por isso, quero apenas expressar a minha desvelada indignação com os aumentos dos nossos representantes, que chegam, em alguns casos, a dobrar o salário dos ilustres.

    Não preciso lembrar que isso tudo sairá do nosso bolso, cada vez mais vazio. Sinceramente, me revolta saber que calculamos os centavos para pagar as contas, enquanto os impostos que nos consomem acabarão engrossando o feijão daqueles que tão humildemente vieram nos pedir votos e prometer renovações políticas, aqueles que, aliás, nunca mais apareceram. Me revolta ainda mais o fato de fazerem essas votações nos inícios de gestão e rirem quando questionados, defendendo a necessidade de tal acréscimo por conta da inflação, do acompanhamento do mercado ou da equiparação com cidades do mesmo porte.

    Gostaria de dizer um foda-se na cara de cada um que votou a favor do próprio aumento salarial, por mais rechonchudinhos e polidinhos que sejam seus argumentos. É inadmissível pensarem nisso em primeiro plano, quando as cidades enfrentam problemas sociais e ambientais, problemas de mobilidade urbana e segurança pública, problemas de habitação e saneamento básico, problemas com a educação e com a saúde, dentre tantos outros. Mas fazer o que, não é? Rir e desejar um feliz 2025, que seja um ano de muitas realizações, maravilhoso mesmo.


  • VALDIR E FONSECA

    Valdir e Fonseca trabalhavam na mesma empresa. Estavam na casa dos 50 anos bem vividos, um talvez mais do que o outro. Eram também vizinhos, o que não significava que eram amigos. Todos os dias saíam no memos horário, mas Valdir nem sempre voltava para casa antes do Jornal Nacional. Tinham algumas outras tantas diferenças. Valdir era quase mau humorado. Quase. Alto, magro, parecia estar sempre com fome. Mas preservava a cabeleira intacta, motivo de inveja de Fonseca. Quem o conhecia bem, dizia que era uma dama. Mas tinha cara de poucos amigos, talvez para se defender de puxas saco ou de gente chata mesmo. O que dá no mesmo. Ninguém sabia muito da sua vida particular. Muito não, quase nada. Nem mesmo Fonseca.

    Fonseca era quase o oposto. Estatura mediana, um pouco mais gordinho, quase careca. Era casado e achava que não precisava se cuidar muito mais do que um banho de manhã e outro antes de dormir e fazer a barba todos os dias. Não entendia como o vizinho estava sempre bonito e arrumado. E solteiro. Mas o que mais intrigava Fonseca era porque Valdir nunca lhe oferecera carona. Saíam religiosamente no mesmo horário, trabalhavam no mesmo local e provavelmente fariam o mesmo trajeto se Fonseca também tivesse carro. Se. Mas Fonseca ia de metrô, lotado, esmagado, suado, todos os dias. Se casou cedo, teve filhos logo, e, entre estar em casa com a família e estudar ou viajar para aproveitar as oportunidades que a empresa oferecia, preferiu a primeira opção. Não se arrependia. Gostava de ser um homem de família, com uma rotina fixa e a oportunidade de ver os filhos crescerem. Mas agora, com eles crescidos e a mulher cheia de hobbies que não lhe incluíam, sentia falta de algo mais.

    Já Valdir era diretor, só faltava ser presidente. Tinha galgado todos os degraus, de acordo com a cartilha da empresa. Fez todos os cursos, foi para todos os cantos que mandaram e hoje, ia com seu carro reluzente para a empresa. Era um modelo antigo, clássico e charmoso. Não tinha filhos e Fonseca não se lembrava se um dia ele fora casado. Parecia um lobo solitário. Mesmo assim, com todas as diferenças, eles se cumprimentavam todas as manhãs e cada um partia para o seu destino à sua maneira. Enquanto Valdir entrava no seu carro reluzente, Fonseca caminhava 3 quadras até o metrô, pensando o porquê desse comportamento do colega de trabalho. Seria timidez? Não queria se misturar com a ralé? Ou seria puro egoísmo mesmo?

    Resolveu puxar conversa na hora do cafezinho. Trabalhavam também próximos e resolveu esperar o vizinho sair de sua sala para tentar uma deixa. Ao chegar na copa onde todos se reuniam para tomar café, Fonseca atacou sem piedade:

    — Dia quente, hoje, hein?

    — Muito! Nem parece que não estamos mais no verão.

    — Pois é… o metrô estava lotado. Parecia uma sauna!

    — Imagino…

    E Valdir terminou seu café com a mesma cara de poucos amigos de sempre, deu meia volta e foi para a sua sala, sem antes dizer a Fonseca:

    — Até amanhã!

    — Até!

    Mas era muito cara de pau mesmo! O sujeito não tinha nem pena do ser humano que se espremia no metrô lotado. Não podia ser mesmo boa pessoa! Quem seria tão frio assim? Custava oferecer uma simples “caroninha”?

    Fonseca passou o dia todo com raiva de si. Chegava a ficar furioso toda vez que se lembrava da tentativa de amizade frustrada. Amizade não, carona. Chegou em casa praguejando:

    — Você acredita, Janete, que o sr. Valdir se acha muito bom para andar comigo?

    Nessa altura do campeonato, Fonseca já tinha formulado uma história na qual Valdir se achava superior e não consideraria ser amigo dele.

    — Que gritaria é essa, Fonseca? E que Valdir é esse?

    — O nosso vizinho, que trabalha comigo. Está se achando demais!

    — Eu, hein? Muito me admira você querer ser amigo dele. Aquele homem é muito estranho…

    — Estranho como?

    — Nunca reparou? Ele sai sempre no mesmo horário que você, mas nunca volta no mesmo horário. O apartamento fica com as luzes acesas até de madrugada e sempre tem barulho de música ou conversa até tarde. Mas ele nunca aparece com ninguém. Sei não…

    — Como você sabe disso tudo?

    — Às vezes eu acordo de madrugada com o seu…Quer dizer, tenho insônia, e vou beber alguma coisa. Sempre tem movimento por lá, isso as 3, 4 horas da manhã.

    Janete ia dizer que acordava com o ronco do marido, mas preferiu deixar para lá. Fonseca já estava nervoso demais.

    — Mas se ele vai dormir tão tarde, como acorda tão cedo?

    — Deve ser um zumbi! Janete levantou as mãos para dramatizar a sua opinião e Fonseca se benzeu de maneira instintiva:

    — Vade retro, Janete! Para de falar besteira!

    Mas aquilo ficou martelando na cabeça de Fonseca. Seu vizinho era, no mínimo, muito estranho. Não falava sobre a família – se é que tinha alguma – não ia nas festas da firma, não oferecia carona…não fazia nada de normal. Ele, Fonseca, ofereceria carona se tivesse um carro, por que não?

    No outro dia, no escritório, depois de mais uma saga no metrô, Fonseca resolveu tirar aquilo a limpo:

    — Você sabe por que o Valdir não oferece carona para ninguém?

    — Como assim?

    Fonseca ficou obcecado com o tema Valdir. Começou a achar que tinha mesmo algo estranho com o seu vizinho zumbi e resolveu perguntar para os colegas mais chegados o que eles achavam do chefe. Dona Telma, que era secretária de Valdir desde sempre, com certeza poderia esclarecer:

    — Ele já me deu carona uma vez, sim. Mas já tem algum tempo. Por quê?

    Hummmm…Então o vizinho zumbi oferecia caronas para mulheres e não para homens. Podia ser uma pista. Ou era só mais um clichê: chefe dá carona para a secretária na hora do almoço e acaba indo parar no motel. Não, era muito cliché, mesmo para Valdir.

    — Seu Lupércio, me responde uma coisa: O que o senhor acha do Valdir?

    — Seu Valdir é uma dama! Por que o senhor quer saber?

    — É por quê…Porque vamos fazer uma festa surpresa para ele e estamos pensando no que ele gostaria de ganhar. Alguma sugestão?

    — Para o senhor Valdir? Ele merece muita coisa! Pode contar comigo para o presente!

    Agora essa. Nem pegava carona com o dito e agora ia ter que fazer uma festa surpresa. Nem ao menos sabia a data do aniversário de Valdir. Vizinhos há quase 30 anos e nunca se parabenizaram por nada. Nem quando Fonseca se casou, teve filhos…Por que nunca foram próximos? A voz de Janete parecia ressoar no fundo da sua mente: É porque ele é um zumbiiiiii!!!!!!!

    Teria que dar uma olhada no mural da empresa, lá com certeza tinha o aniversário de todos os funcionários. Chegou até a letra V: Vagner, Valentina, Valdir…02 de março de 1964. 02 de março de 1964? Eles faziam aniversário praticamente no mesmo dia, Fonseca era do dia 04. Que coincidência. E nem assim eles eram amigos? Aniversário aproxima as pessoas, ora essa. Fonseca estava sentimental. Poderiam ser irmãos gêmeos praticamente. Precisava corrigir isso. Ia fazer uma festa surpresa para Valdir. Foi para casa cheio de ideias:

    — Janete, vou precisar de sua ajuda. Vamos fazer uma festa surpresa para o Valdir!

    — Ah, pronto…Agora que o homem endoidou de vez!

    — Não escutei, Janete!

    — Nada não, meu marido…Do que você precisa? – Tem horas que é melhor não contrariar.

    — Bolo, balão, salgadinho, brigadeiro…Será que ele gosta de brigadeiro?

    — Alguém não gosta?

    — Tem razão Janete. Todo mundo gosta de brigadeiro. Vamos fazer uma festa de arromba para Valdir.

    Janete só resmungava: Eu, hein?

    No dia seguinte, no mesmo horário, os dois se encontraram como de costume na porta do prédio. Valdir, todo elegante e cheiroso — chegava exatamente assim no escritório, sem nada fora do lugar — e Fonseca com ar de criança travessa, falando apressado:

    — Tá chegando, hein?

    — O que que está chegando?

    — Deixa pra lá…Rs… Melhor não estragar a surpresa!

    Valdir deu de ombros, um pouco confuso com essa mudança repentina do vizinho, enquanto Fonseca caminhou suas três quadras rotineiras de uma maneira quase eufórica. Se sentia leve, como se estivesse prestes a um grande feito. Tinha certeza de que seriam, afinal, grandes amigos. Com direito a carona!

    Dona Telma já estava de prontidão quando Fonseca chegou no escritório. Ela estava responsável por encomendar os salgadinhos e docinhos e queria algumas sugestões:

    — Kibe ou coxinha?

    — Eu adoro os dois!

    — Eu também, mas o Valdir é vegetariano. Talvez uma empada de palmito?

    — Vegetariano? Desde quando?

    — Sei lá. Só sei que é.

    Um zumbi vegetariano? E lá vinha a voz da Janete: Ele é um zummmmbiiiiiiiii!!!!!

    — Chega!

    — Eu, hein? Tá estressado Fonseca?

    — Não, desculpa, dona Telma. Vamos escolher empada de palmito. Mais alguma coisa?

    — Refrigerantes e sucos já forma comprados e deixei na geladeira do refeitório, todas com etiqueta para ninguém mexer.

    — Não vai ter uma cervejinha? Afinal, já será no fim do expediente…

    — O Valdir não bebe, Fonseca! Eu, hein? Por que você quer fazer uma festa para alguém que você nem sabe se bebe ou não?

    — Isso não importa Dona Telma. Mais uma coisa…O Valdir já foi casado?

    — Não acredito, Fonseca. Valdir é viúvo, já tem muito tempo. Sério mesmo que você não sabia nem disso?

    — A senhora há de convir que o Valdir é um tanto reservado, né? Mas depois dessa festa tudo vai mudar, a senhora vai ver. Nós não somos amigos ainda. Mas vamos ser!

    — Tem certeza?

    — Claro, Dona Telma. Seremos melhores amigos, a senhora vai ver! Seu olhar era quase vidrado. Pobre Fonseca.

    Mas o que ninguém sabia, muito menos Fonseca, era que Valdir, nessa vida, não gostava de 2 coisas: aniversários e de dar carona. Não gostava de festa, ficava ranzinza, se achava mais velho e não fazia questão nenhuma de ser lembrado da idade que avançava a cada ano. E a carona…Era mania mesmo. Tinha um carinho especial pelo carro: foi nele que ensinou a esposa a dirigir, aos trancos e barrancos. Ela não gostava, ficava tensa, mas no fim riam de suas inseguranças e da sua total falta de atenção. Como ela sabia rir de si mesma! E como era sensível…Uma vez quase atropelou um cachorrinho e chegou chorando em casa.

    — Mas foi quase, querida, ele não morreu!

    — Mas podia ter morrido Valdir… Não iria me perdoar nunca!

    E ele a consolava em seus braços e nada mais parecia importar. Sua sensibilidade e bom humor eram suas maiores qualidades e conquistavam Valdir todos os dias. Então, ele nem poderia imaginar alguém maculando aquele carro. Além disso, era uma negação pela manhã. Tinha verdadeiro horror, falta de paciência mesmo para conversas matutinas. Dormia pouco, pois adorava ver filmes até tarde – seu único prazer depois de ter ficado viúvo – e se achava péssima companhia pela manhã. Evitava que o outro também lhe achasse chato e ainda preservava seu carro de caronistas que teimavam em bater as portas sem a menor sensibilidade. Não era um zumbi. Era um cricri. Mas também uma dama, segundo seu Lupércio.

    Em casa, Fonseca ficou pensando na mulher de Valdir. Não se lembrava dela, nunca tinha visto uma foto no escritório de Valdir. Estranho…

    — Janete, você se lembra da mulher do Valdir?

    — Mulher do Valdir?

    — Sim. A secretária dele, Dona Telma, me disse hoje que ele é viúvo. Você se lembra de algo?

    — Agora que você falou, acho que a vi algumas vezes. Ana…não, Ângela. Mas isso tem muito tempo…O que aconteceu, eles se separaram?

    — Não, Janete. Ela faleceu.

    — Faleceu? Gente, mas…Fomos à missa, ao enterro?

    — Não lembro, Janete. Isso não é estranho? Será que somos tão insensíveis assim? Nem me lembro do rosto dela. E no escritório do Valdir não tem nenhuma foto, nada que lembre a mulher.

    — Isso sim é estranho… Zuuumbiiiiiiiiiiii!!!!

    Claro que Valdir tinha uma foto de sua Ângela. Uma foto linda, de close, tirada na lua de mel em Veneza. Os melhores dias de sua vida. Ela ficava estrategicamente guardada na segunda gaveta a esquerda da sua mesa de trabalho. Ninguém precisava vê-la além dele. E eles se viam várias vezes durante o dia. Sempre que algo novo acontecia, quando Valdir estava preocupado, sem saber como resolver um problema ou quando queria apenas fofocar. Sim, eles fofocavam muito:

    — Você acredita, Ângela, que a Telma insiste em voltar para aquele tal de Roberto? Já avisei que ele não presta, mas ele parece que não me ouve. Ah, se você estivesse aqui, com certeza saberia como falar com ela. Sinto tanto a sua falta…

    Valdir sorria um sorriso triste e Ângela lhe sorria de volta, como sempre. Seu melhor sorriso, registrado na sua melhor foto. Talvez por isso permanecesse no escritório até altas horas, entre conversas com sua amada e os problemas do dia a dia. Gostava do silêncio pós expediente, conseguia pensar melhor. Era um mundo só dele, como todos os outros. Em casa ou em qualquer outro lugar, era um homem absolutamente só.

    Pela manhã, no escritório, o clima era tenso. Muitos estavam se perguntando por que fazer uma festa para aquele chefe que não gostava de festas, não dava carona e não tinha amigos no escritório. Ou melhor, só tinha um: Seu Lupércio. Ele era o mais animado com os preparativos, junto com Dona Telma, que já tinha até pegado uma carona com Valdir. Vai saber o que aconteceu naquela carona! Chegaram a questionar Fonseca:

    — Por que essa festa em cima da hora para aquele chato do Valdir?

    — Quem disse que ele é chato? Ele é meu amigo, respeito é bom e eu gosto! – Rebatia Fonseca batendo no peito com orgulho.

    — Amigo? Nunca vi ele te dando nem ao menos uma carona…E sei que vocês são vizinhos!

    De novo aquele maldito assunto da carona. Por que raios o Valdir era daquele jeito? Não é possível que não tivesse nenhuma qualidade. Resolveu apelar para seu Lupércio, que insistia em dizer que “Valdir era uma dama.”

    — Você não sabe, Fonseca? Sr. Valdir é um homem muito bom, muito culto…Quando entrei para empresa, era um simples faxineiro. Ele conversava comigo todos os dias, perguntava sobre os estudos, sobre a minha família…Um dia, disse-lhe que gostaria de fazer uma faculdade de administração para ter alguma chance de crescer, melhorar de vida. Ele pagou o meu cursinho e a minha faculdade. Hoje, já sou gerente e pude dar ao meu filho a melhor educação, a que eu não tive. Quando meu filho entrou na faculdade no ano passado o Sr. Valdir fez questão de lhe dar um belo presente. Devo tudo a ele!

    Isso tudo deixava Fonseca ainda mais intrigado. Se ele era uma pessoa tão boa, por que fazia questão de andar de cara fechada e não dar muita bola para ninguém? Para Dona Telma ele dava, ah se dava…

    As perguntas de Fonseca sobre Valdir foram repercutindo na empresa e a insatisfação geral com esse puxa-saquismo repentino dele também. Claro que, mais cedo ou mais tarde, aquilo ia acabar chegando nos ouvidos de Valdir. E chegou.

    — Nunca vi ninguém fazer festa nessa empresa, e de repente o doido do Fonseca inventou de comemorar aniversário do Valdir. Justo daquela “mala”!

    — Pelo amor de Deus, nem me fala! Pior que todo mundo vai ter que ir, vai ser no horário do expediente… Até isso!

    Valdir sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir essa conversa. Estava chegando na salinha do café quando dois colegas acabavam de ter o diálogo. Eles se entreolharam rapidamente e tentaram disfarçar, falando sobre o jogo do Botafogo na noite anterior, que andava mal das pernas, mesmo com o novo técnico e um elenco estrelado. Mas o mal já tinha sido feito. Ele escutara tudo, mas fingiu que não tinha, digamos, entendido:

    — Vergonha, né? Tanto dinheiro investido e o Fogão não ganha uma!

    — O senhor gosta de futebol, Sr. Valdir?

    — Pode me chamar de Valdir, amigão!

    Amigão? Valdir nunca tinha dado nenhum tipo de intimidade para ninguém no escritório. Os dois sorriram meio sem graça e, ainda desconfiados com a amizade repentina, continuaram a conversa com o “amigão.”

    — Então, amigão, estamos combinando de ir ao FLA x FLU no final de semana. Vamos?

    — Mas é claro! Contem comigo!

    Valdir não sabia de onde essas palavras tinham saído. Não ia a um jogo há anos e não sabia nem onde comprar um ingresso. Mas depois que foi praticamente crucificado pelos dois colegas, se sentiu na obrigação de tentar reverter essa impressão. Será que todos pensavam o mesmo? Meu Deus, estava tão envolvido em mostrar autoridade e ser competente, que tinha se esquecido do social. Desde que sua esposa morreu, tinha se esquecido também de si.

    — Dona Telma, preciso falar com a senhora urgente!

    — O que aconteceu, Valdir?

    Dona Telma era sua secretária desde que ele tinha chegado ao cargo de gerente e o acompanhara na ascensão à diretoria e à nova sala, muito maior e elegante. Eles se conheceram quando entraram para a empresa, há quase 30 anos, e se tornaram grandes amigos, confidentes até. Valdir foi o ombro amigo de Dona Telma quando ela perdeu os pais, o seu primeiro gato e depois de todos os foras dos canalhas que ela insistia em namorar. Depois de tanta decepção, resolveu, por fim, adotar outro gato e está feliz e solteira desde então. Da mesma forma, foi Dona Telma que esteve ao lado de Valdir quando a esposa morreu, cuidando de todos os trâmites cabíveis e, também, do coração do amigo, que se despedaçou de tantas formas que até hoje ele não tinha conseguido colar.

    — A senhora sabe que as pessoas me odeiam?

    Dona Telma fez uma expressão que ele conhecia bem: franziu a testa, levou a boca para o lado esquerdo e abaixou a cabeça. Se virou, fechou a porta e voltou-se para ele séria. Começou a frase com um sussurro:

    — Não é que eles te odeiam, Valdir…

    — Você sabia disso e nunca me disse nada? – gritou Valdir exasperado.

    — Fala baixo, pelo amor de Deus.

    — Falar baixo por quê? Eu sou o chefe dessa joça!

    — Valdir, olha só…

    — Conheço o seu “olha só”. Não quero saber de olha só!

    — Não é que eles te odeiam. Na verdade, acho que ninguém aqui te conhece bem. Você não vai aos happy hours, não oferece carona, não conversa muito…Até o Fonseca, que está preparando a festinha surpresa do seu aniversário, não sabia que você era vegetariano, por exemplo. Talvez, se vo…

    — Como é que é? O Fonseca está organizando uma festa surpresa para mim?

    Naquele instante, quem gelou foi Dona Telma. Ela mesma havia se esquecido que o seu chefe e grande amigo DETESTAVA aniversário, muito mais festa surpresa. Tentou se justificar:

    — A culpa é sua! Ele veio com uma conversa estranha se você oferecia carona, depois descobriu que o seu aniversário é colado no dele e agora resolveu que vocês serão grandes amigos depois da grande festa que ele está organizando. Quem mandou ser assim?

    — Telma, eu não acredito que você deixou isso chegar nesse ponto!

    — Ou era isso ou eu teria que contar que você é uma dama, que me deu carona várias vezes para eu visitar o meu pai no hospital e aí a sua fama de mal ia para o brejo. Qual vai ser?

    Valdir respirou fundo. Contou até 10…100…Parecia que ia explodir. Dona Telma fechou os olhos institivamente esperando a bronca homérica que estava por vir. Mas Valdir foi se acalmando quando chegou no 99. Seu rosto voltou a cor normal e o sangue parecia ter voltado a circular pelo resto do corpo. Estava em uma verdadeira encruzilhada da vida. Aquele momento em que você precisa tomar uma atitude drástica: Ou se mantinha durão e antipático, ou se tornava um chefe descolado e sociável, com direito a dar carona e a sorrir na festa surpresa.

    Quando finalmente abriu a boca para falar, nem mesmo Valdir se reconheceu. A fala veio mansa, suave, e ele disse:

    — Ajude Fonseca a fazer uma bela festa. E vamos pensar em uma maneira dos vizinhos darem carona uns aos outros. É isso.

    Dona Telma foi abrindo os olhos devagar, tentado enxergar aquilo que seus ouvidos não acreditavam. Parecia pronta para receber um grande impacto, mas seu corpo todo foi saindo da defensiva e voltando ao estado normal. Ainda sem acreditar, apenas respondeu:

    — Pode deixar.

    E saiu da sala ainda querendo entender o que havia acontecido lá dentro.

    Finalmente, o dia da grande festa chegou. Fonseca não se aguentava mais, quase havia deixado escapar para Valdir alguma pista nas várias vezes que se encontraram na hora do café, mas respirava fundo e dizia apenas:

    — Tá chegando!

    Esse “tá chegando”, que antes havia deixado Valdir apenas confuso, hoje lhe dava cólicas de aflição. Por já saber da festa, teria que fingir a surpresa, e mais: fingir que havia adorado a surpresa. ADORADO, como aconselhara Dona Telma, para que ele mudasse a sua má fama na empresa. Até treinar na frente do espelho Valdir estava treinando. Mas o seu maxilar parecia ter se esquecido de como era sorrir. Cada tentativa parecia mais falsa do que a outra e ele tinha medo de que a sua expressão se congelasse e ele nunca mais pudesse se mexer. Era como um botox eterno. Por que precisava tanto da aceitação do outro? Tudo estava tão bem do jeito que ele já estava acostumado!

    O dia foi passando normalmente. Valdir almoçou sozinho como de costume e, ao escovar os dentes, treinou mais algumas expressões que pudessem alegrar Fonseca. Teve medo daquelas caretas e tentou relaxar, dizendo um “Seja o que Deus quiser’. Tentou se concentrar nos problemas da empresa que não eram poucos, mas o relógio parecia ter se tornado seu inimigo: As horas se arrastavam da maneira que ele tanto havia pedido em outros momentos da sua vida. Quando descobriu a doença terminal da mulher. Quando escutava seu riso já fraco. Quando seus lábios não queriam se desgrudar e o abraço se fazia ninho. Como queria ter mais um minuto ao lado dela. Como sentia falta da sua companheira de vida!

    — Vamos?

    Era Dona Telma, toda faceira, despertando Valdir de suas lembranças. Ela estava toda arrumada, parece que a festa ia mesmo ser boa.

    — Tem certeza que preciso mesmo ir?

    — A festa é para você, tem graça se não for, né?

    — Delicada, hein?

    Eles riram juntos daquela cumplicidade boa. De repente, Telma parou seu sorriso com as mãos e disse:

    — É isso! Faz assim que será perfeito.

    — Obrigado amiga. E me lembra de ligar para a oficina depois, tenho que buscar meu carro.

    — Sim senhor! Ela esboçou uma continência, ele lhe deu um abraço. Foram juntos para o salão nobre da empresa, que já estava todo enfeitado.

    Assim que se aproximaram, Fonseca abriu a porta de repente e gritou:

    — SURPRESA!!!!!

    Talvez tenha sido a cara de felicidade de Fonseca ou o primor que tudo tinha sido feito. Mas a questão é que Valdir conseguiu dar um belo sorriso. Daqueles que veem do coração mesmo. Dona Telma enxugou uma lágrima teimosa.

    — O senhor gostou?

    — Está uma maravilha!

    Fonseca não se aguentou e partiu para o abraço. Aquilo era a glória. Meio desajeitados, acabaram preferindo um aperto de mão.

    — Excelente trabalho Fonseca, parabéns!

    — Parabéns para você, amigão! Na cabeça de Fonseca, já eram íntimos.

    E todos começaram a bater palmas e se aproximaram do chefe para cumprimentá-lo. Era uma bela festa, e Valdir realmente estava gostando. Era como um sopro de alegria em tantos anos de uma quase clausura. Finalmente parecia achar graça em algo que não tinha a ver com a sua casa e as suas lembranças da esposa. Desde o seu falecimento, só queria saber de trabalhar e rever os filmes que tinham visto juntos. Ele gostava de imaginar que ela estava ao seu lado, dando sua risada gostosa ou chorando das cenas bobas. Falava sozinho, tentava lembrar do que ela havia dito em cada cena, ria da mania que ela tinha de adivinhar em qual filme aquele ator italiano tinha atuado. Como sentia falta desses momentos…

    — Continue sorrindo assim que amanhã muitos já vão te adorar!

    Era Telma novamente o aconselhando. Mal sabia ela o motivo dos seus sorrisos. Mas é claro, estava se sentindo bem com toda aquela atenção e sabia que poderia ser uma pessoa melhor ao se aproximar dos seus colegas de trabalho. Resolveu começar por Fonseca:

    — Muito obrigada por essa festa, Fonseca. Realmente não tenho palavras para lhe agradecer. Faço questão de te dar uma carona hoje. Somos vizinhos, afinal!

    Fonseca mal se conteve na frente de Valdir. Lhe deu uns tapinhas nas costas e foi correndo para o banheiro. Chorou um choro de menino, aquele que finalmente teve aprovação do pai, mas ao mesmo tempo não quer que ele lhe veja emocionado.

    A festa fez tanto sucesso que entrou noite adentro. Alguns compraram cerveja, pessoas de outros setores acabaram dando uma passadinha, tudo ia às mil maravilhas. Valdir circulava entre todos, sempre ao lado de Dona Telma, que lhe dava um resumo rápido antes dele se aproximar de alguém:

    — Esse é o Ricardo, do Financeiro. Acabou de ter um filho.

    — Ricardo, parabéns! Ser pai é uma grande alegria, aproveite!

    E Valdir convertia mais um. Dona Telma seguia firme:

    — Essa é a Carolina, começou há pouco na empresa e já tem se destacado.

    — Carol, já estou sabendo que você está bombando!

    E recebia um ou outro beliscão de Dona Telma quando passava do ponto:

    — Carol, Valdir? Que intimidade é essa?

    — Me deixa, Telma. Sou iniciante nessa arte!

    E eles riam e voltavam à missão de fazer Valdir ser um ser social.

    Depois de vários abraços, comentários amigáveis e excesso de socialização, Valdir estava pronto para voltar ao seu refúgio. Não sem antes chamar Fonseca para a tão esperada carona.

    — Vamos Fonseca? Te deixo em casa!

    Era tudo que ele sempre sonhara. Foram juntos até o elevador e Valdir apertou o G. Estava mesmo acontecendo. Fonseca ia entrar no carro de Valdir. Iam trocar figurinhas, falar da festa, quem sabe eles não falavam um pouco de trabalho? Não, hoje não, hoje era dia de festa. Falariam sobre coisas amenas. Fonseca iria convidar Valdir para jantar na sua casa no dia do seu aniversário. Jantar não, ia fazer um churrasco no salão de festas, isso. Eles entrariam no carro e Fonseca talvez dissesse que estava pensando em comprar aquele modelo. Valdir lhe daria as dicas, quem sabe até lhe desse um aumento para lhe ajudar? Seria o começo de uma grande amizade, tinha certeza disso.

    Assim que o elevador se abriu, Valdir começou a procurar as chaves do carro. Colocou as mãos nos bolsos da calça, do paletó, da camisa. Pediu para Fonseca esperar enquanto abria a maleta e procurava as chaves dentro dela, em cada cantinho da sua bela maleta de couro. Fonseca achava tão elegante ter uma maleta de couro. Um dia teria a sua, tinha certeza. Quem sabe Valdir não lhe daria uma de aniversário?

    — Meu Deus, onde foi que deixei as minhas chaves?

    — Será que, por descuido, você não deixou dentro do carro?

    — Será? Do jeito que estou distraído ultimamente, pode até ser.

    — Onde ele está estacionado?

    — F1

    — Estamos no E, deve ser logo ali.

    E foram seguindo a direção que o dedo de Valdir apontava.

    — F0, F1… é aqui?

    — É. Ou melhor. Deveria ser.

    — Não tem carro nenhum aqui, Valdir.

    — Sim, estou vendo. Mas não estou entendendo.

    — Como assim? Você me faz vir até aqui, promete me dar uma carona, mas não tem carro nenhum estacionado?

    — Devem ter me roubado!

    — Ah, tá. Você passa a vida toda me esnobando, nunca me oferece carona, e no dia que eu faço uma megafesta para comemorar o seu aniversário, você me vem com uma pegadinha?

    — Que pegadinha, Fonseca? Você realmente acha que eu iria perder meu tempo mentindo para você? Se ofereci carona é porque sabia que meu carro estaria aqui. Ou pelo menos achei que sabia.

    — Ah, conta outra…

    — Meu Deus do céu, Fonseca. Juro que a minha intenção era te dar carona, mas que diabos! E outra: não te pedi festa nenhuma, você fez porque quis!

    — Ah, mas é claro! Estava só faltando essa! Eu pelo menos gosto das pessoas, e se tivesse carro daria carona para todo mundo!

    — Chega, Fonseca. Vou ligar para Dona Telma, perguntar se tem segurança por aqui e ver o que podemos fazer. Já parou para pensar que posso ter sido roubado? Tenha dó!

    — Aham…

    Já arrependido de ter oferecido a tal carona, Valdir liga para Dona Telma:

    — Telma, olha só. A vaga do meu carro sempre foi a F1, não foi?

    — Claro, desde que você se tornou diretor. Por quê?

    — Porque estou olhando para ela e meu carro não está aqui.

    — Claro que não está. Você o levou para a oficina hoje de manhã. Até pediu para que eu lhe lembrasse de ligar para lá amanhã.

    Valdir quis soltar um palavrão, mas ficou com medo da reação de Fonseca. Ele jamais iria acreditar naquela história.

    — Isso mesmo, Dona Telma. A senhora tem toda razão. Vou lá agora mesmo.

    — Ficou doido?

    — Boa noite, Dona Telma. Bom descanso.

    — O que aconteceu? Vai dar carona para Dona Telma e está disfarçando comigo?

    — Só me faltava essa agora, Fonseca. Dona Telma também acha que meu carro foi roubado e devo ir à delegacia dar parte. Vou pegar um táxi até lá, posso pedir um para você também.

    — Não preciso que você me peça nenhum táxi. Vou para casa da mesma forma que venho trabalhar todos os dias, de metrô. E não pense que eu caí nessa história para boi dormir não. Relações cortadas!

    E Fonseca foi andando duro, como se tivesse sido magoado pelo grande amor da sua vida. Pegou o cartão do metrô e encarou o seu destino. Nunca iria andar no carro de Valdir.

    Ainda parado ao lado da vaga, sem saber como pedir um táxi àquela hora, Valdir praguejava:

    — É por isso que nunca dou carona!!!


  • #05 – A Besta de Gevaudan (*)

    .

    “entre os anos de 1764 e 1767 os habitantes da pequena província francesa de Gevaudan, atualmente parte de Lazere, próximo das montanhas Margueride foram aterrorizados por uma criatura lupina que passou a ser conhecida como La Bête Du Gevaudan ou “A Besta de Gevaudan”

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha.

    a primeira mulher atacada conseguiu escapar e chegar até ao seu vilarejo, de onde passou a adotar um comportamento estranho e agressivo. Após esse episódio, seguiu-se um tempo de calmaria, mas próximo ao natal o cântaro de água derramou e mais uma pessoa desapareceu e localizaram os seus restos terrivelmente mutilados em uma ravina. Suspeitaram então que um nobre renegado estava por detrás daquelas mortes, transformando-se em um lobo demoníaco em noites de lua cheia. as pessoas do vilarejo foram ficando incomodadas com essa presença lupina comendo a sua comida, remexendo os campos e invadindo as suas propriedades. Montaram então uma expedição de militares com um arsenal de 50 mosquetes, lanças com mais de dois metros de comprimento, armas que disparavam setas de ferro, bombas explosivas de pólvora negra, armadilhas e correntes para capturar o intruso animal. Os homens da expedição usavam armaduras negras de couro batido e metal cheio de espinhos, cabelos moicanos e pinturas de guerra. As suas peles eram besuntadas com os despojos de uma loba no cio para atrair a fera sanguinária. Esses trajes exalavam um fedor nauseabundo. Tudo preparado para fazer o abate, mas a besta atacou antes e matou várias pessoas da tropa. Então os aldeões revoltados se armaram com ferramentas, paus e pedras e um desespero de iconoclastas, e nada. Tudo fracassou e contrataram então um taxidermista de Paris. A nova expedição ou empreitada contava com 40 caçadores e uma dúzia de cães farejadores. Os homens concentraram-se em uma área rochosa, repleta de ravinas e onde se dispunha de água potável ao que tudo indicava ser o covil da fera. Esta última tentativa se enveredou pela floresta tendo como líder um taxidermista especialista em folclore e superstições e que, armado com projeteis e balas de prata que foram abençoadas pelo pároco local. Chegaram num bosque próximo de Gevaudan onde recitaram uma série de orações e cantigas místicas. E logo a fera, na forma de um lobo, apareceu e então todos dispararam com suas pistolas e os projeteis de pura prata que vararam o corpo da besta que caiu fulminada. Para alguns aquela era de fato a besta carniceira e quando tiraram a máscara de pelos e sangue era um homem com trajes de um maluco monge e assim foi queimado e as suas cinzas espalhadas ao vento. Foi preciso o decurso de algumas semanas até que dessem falta do homem tosquiador e descobriram então que a besta não passava do camponês que tosquiava as ovelhas e se chamava “O Monstro” e a sua descrição batia ipsis litteris com aquilo que eu era na aldeia.

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha, ectoplasmática.

    Da Essencialidade da Água

    (*) transcrição livre e poética do famoso caso ocorrido na França do século XVIII


  • A primeira crônica do ano

    Esta é a primeira crônica do ano. Um ano novinho cheio de sonhos e projetos para o futuro!

    Esta é uma crônica de início. Uma crônica que cheira o novo, como presente recém-aberto, esperando ser tocado, usado, experimentado pela primeira vez…

    O que imaginamos de um ano que se inicia?

    Que sejamos felizes e tenhamos paz?

    Que conquistemos tudo aquilo que desejamos?

    Que nossos esforços sejam recompensados?

    Na virada do ano, quando os fogos de artifício colorem o céu das cidades, olhamos para cima, extasiados com a profusão de cores e luzes. Nesse momento, fechamos os nossos olhos e desejamos um ano incrível, diferente do anterior (sempre o ano que virá tem a promessa de ser melhor do que o que passou).

    A verdade é que desejamos um ano inteiro todo novo e melhor, mas não mudamos por dentro.

    Desejamos o novo, mas não somos o novo!

    Esta é a primeira crônica do ano e, por isso mesmo, cumpre seu papel de registrar o que fazemos nesse período: desejar coisas boas e querer o melhor!

    Entretanto, esta mesma crônica fica como uma reflexão: cuidemos de nós por dentro para que tenhamos um ano melhor.

    Sejamos melhores e o ano, de bom grado, será melhor também!


  • Humor e Velhice

    Fala-se que, na velhice, a vida perde a graça. Discordo. Quem perde a graça é o velho, não a vida, que sempre está aberta a quem quer desfrutá-la. Uma das formas de evitar que a graça se perca, mesmo sendo avançada a idade, é cultivar o humor.

    O bom humor diante das limitações que a idade impõe é uma forma de resignação ativa. Existe a resignação passiva, que leva à tristeza e a uma espécie de submissão ressentida aos percalços da idade. Não é essa a que o humor propicia, pois quem ri da própria condição mostra que não se submeteu a ela.

    O riso não apenas “castiga os costumes”, conforme a expressão latina; não é só um instrumento de crítica social e um recurso para transformar as instituições. Ele também constitui um meio de aferição das carências individuais. Concorre para que o indivíduo tenha a exata medida do seu valor e, sobretudo, reconheça suas fraquezas e impossibilidades.

    Rir de si mesmo é um gesto grandioso porque vai de encontro ao egoísmo e à presunção de superioridade sobre os outros. Só os grandes espíritos são capazes disso, pois não temem se ver como verdadeiramente são, quer dizer, sem as máscaras com que normalmente atuam na sociedade. “Atuam” é bem o termo, pois o convívio com as outras pessoas tem muito de representação. E ninguém representa o que é, mas sim o que pensa ou deseja ser.

    Rimos do absurdo de certos comportamentos, como o de se deixar filmar vandalizando a sede dos Três Poderes; da hipocrisia dos que no púlpito pregam virtudes, mas na prática são capazes de atos extremos como assassinar alguém; dos que falsamente invocam a pátria e a família para conquistar o poder. O riso atesta um descompasso entre o propósito e a feitura, a expectativa e o fato, a visão do mundo e o que o mundo realmente é.

    Fala-se que os humoristas são tristes, o que em nada surpreende. Se escolhem o humor, é porque há nele a revelação da impotência humana para mudar o que a vida tem de insuficiente e frustrante; os humoristas traduzem como poucos essa dura percepção. Toda manifestação de humor é, no fundo, um gesto de piedade. Só que o humorista não tem o propósito de salvar nada nem ninguém; ri desse ingênuo propósito, que não nos redime da nossa condição.

    Aos velhos, para os quais tendem a se fechar as possibilidades de viver plenamente, o humor é uma espécie de volta por cima. Um meio de superar as limitações de um corpo no qual mínguam os recursos vitais. Nessa quadra da vida, propícia ao cultivo do espírito, o riso aparece como um saber que consola – com a vantagem de reduzir a pressão e aliviar as coronárias. É preciso desconfiar dos velhos que não aprenderam a rir.


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