Contos

UM SUJEITO PECULIAR

Silas Arruda é um sujeito peculiar, do tipo que, vagando pela cidade dentro do ônibus, observa pela janela as pessoas que andam apressadas pela calçada e tenta encontrar seus olhos, adivinhar sua história, criar-lhes uma vida. Registra tudo com o olhar silencioso. Não conversa com ninguém, fechado nos próprios pensamentos.

Na padaria, enquanto aguarda sua vez, fixa os olhos na vitrine cheia de pães e escolhe dois do fundo, aqueles que — ele acredita — ainda não foram tocados pelo atendente. Vai se sentir mais seguro quando, ao preparar seu lanche habitual, colocar na boca um produto sobre o qual ninguém pôs as mãos. No miolo estenderá três fatias de queijo e duas de presunto, sobras da noite anterior. Se ainda houver tomate na geladeira, cortará duas fatias pequenas e as colocará nas extremidades do pão, nunca no meio. O copo de leite com chocolate amargo em pó será o complemento líquido de sua refeição noturna e solitária, degustada na frente da televisão.

Costuma passear pelo bairro à noite, depois que assiste ao jornal de notícias. Não se olha no espelho antes de sair. Também não leva guarda-chuva, mesmo que esteja chovendo. Prefere se esgueirar pelas marquises das lojas e supermercados e até se molhar um pouco, se não houver outro jeito. Anda com as mãos nos bolsos, os passos ritmados, uma sombra com olhos de carcará que tudo vê e pouco é visto. Respeita os faróis e nunca atravessa fora da faixa de pedestres. Se decidir parar para tomar um café, ficará em pé na extremidade do balcão, de onde poderá observar, em silêncio, o movimento das pessoas; verá, por exemplo, quem passa por ele para ir ao banheiro sem se importar com sua presença.

Trabalha vendendo seguro de vida de porta em porta, e não se incomoda nem um pouco quando lhe respondem secamente “Não me interessa” ou se apenas o espiam por trás da cortina e nem se dão ao trabalho de abrir a porta. Silas Arruda, o corretor, está acostumado com isso e não leva essas grosserias em consideração.

Andando pelas ruas para fazer o seu trabalho, escolhe aleatoriamente a casa do próximo cliente. O instinto o guia e raramente o engana. Na maleta de mão, além de formulários e outros documentos, carrega sempre uma garrafa de vinho, porque lhe apraz comemorar com uma taça o fechamento de um negócio. Toca a campainha e espera. Hoje quem abre a porta e o atende com surpreendente gentileza é a Dona Jurema, viúva que mora sozinha. Silas põe os pés na sala e olha em volta. Enquanto a dona da casa lhe serve um café, avalia em pensamento, e por antecipação, o quão fácil será tudo.

Antes de sair tem o cuidado de verificar se a sala continua do mesmo jeito, com tudo em seu lugar, e se o corpo está bem acomodado no sofá. Fecha a porta da frente e caminha devagar até o ponto de ônibus. Sobe no coletivo, senta-se no banco dos fundos e solta o nó da gravata. Pela janela, observa em silêncio as pessoas que andam apressadas pela calçada.

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Mário Baggio

Mário Baggio é jornalista e escritor. Nasceu em Ribeirão Claro-PR. Mora em São Paulo-SP desde os anos 70. Tem 6 livros de contos publicados: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe (2017), “Espantos para uso diário” (2019), “Verás que tudo é mentira” (2020), “Antes de cair o pano” (2022) e “A vida é uma palavra muito curta” (2024). Publicou contos em várias revistas eletrônicas (Germina, Gueto, Ruído Manifesto, Subversa, entre outras). Escreve quinzenalmente no blog literário Crônica do Dia e no Crônicas Cariocas. Participou da “Antologia Ruínas” (2020), “Tanto mar entre nós: diásporas” (2021), “Brevemente Infinito” (2024) e Antologia de Contos da UBE-União Brasileira de Escritores (2021 e 2023).

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