Crônicas

Cento e vinte e duas folhas

122 folhas caíram sem aviso prévio, de um dia para outro, do Manacá que resiste às intempéries da vida, aos seus altos e baixos, junto a outras tantas plantas, que já somam mais de 4 dezenas espalhadas pelas varandas e cômodos de um apartamento situado em rua tranquila, que nem parece centro de cidade média. Cercado por árvores urbanas, cujas copas privatizam a vizinhança, garantem a qualidade de vida e o cantar dos pássaros a um sem número de pessoas e situações, o número de folhas parece um número pequenino: cento e vinte e duas — não cento e vinte, nem cento e vinte e cinco: exatamente cento e vinte e duas. Seria tal montante uma mensagem do acaso ou um capricho da própria planta, que, desconfiada da mão humana que a cuida – aquela que escolheu tê-la em sua rotina, pelo prazer de cuidar e ver seus frutos como recompensa – decidiu ensaiar uma pequena rebelião?

O verde da paisagem predomina. Mas são as folhas pontiagudas, firmes – de maioria idosa, outras que sequer chegaram ao seu tamanho final – que, mesmo jazendo no piso frio, transformados os seus verdes, vistosos e habituais, em amarelentas folhas, enrugadas folhas, são o foco da atenção – não as copas vibrantes do entorno, mas estas formas já amorfas ao rés-do-chão da varanda da casa de quem é responsável por as fazer florescer, e assim ter sombra, e receber a visita de pássaros, a bagunça causada pela passagem do vento, ambientando mais natureza ao lugar cinzento que configura as construções do homem, que tanto destrói pela simples ganância em criações. A morte ou a interrupção do que é esperado é instantaneamente mais interessante do que toda a beleza vivente ao redor. Colhidas na palma de uma das mãos enquanto a outra pinça as recém defuntas folhas, o subconsciente humano se questiona;

– Foi o vento, foi o calor, foi a falta d’água?

O Manacá então, com tantos galhos desfolhados, que casou-se com um copo de leite branco e anda trançando sua copa aos pecíolos da samambaia – no auge de sua fase esporófita – vai acabar perdendo a esposa para o jovem pé de café, destemido e energizado, que cresce aumentando vagarosamente suas folhas – sem as perdê-las – enquanto não tira os olhos das formosas folhas alongadas que já não tem forças para fazer brotar sequer um único copo de leite.

– Um bom café com leite é uma combinação das mais perfeitas!

– Sussurra o pé de uma das bebidas mais consumidas do mundo a sua amada, ao enxergar a traição injusta.

A queda concomitante de cento e vinte e duas folhas pode ser por culpa. Não necessariamente excesso de vento, o sopro de uma consciência superior, ou do calor intenso deste verão (metáfora de uma paixão desmedida de férias): há o equilíbrio das chuvas, há o zelo da rega constante. A culpa, ou melhor, sua confissão, pode ser porque, quanto menos folhas, menos consegue o Manacá esticar seus braços em direção à amante. No fundo, a culpa pode ser por um ímpeto natural, cuja consciência o faz sofrer.

As percepções podem ser tantas que, não fosse a necessidade do funcionamento humano de fazer sentido, o copo de leite poderia ser o adúltero, e a perda das folhas um sintoma de depressão do Manacá sofredor. A samambaia poderia apenas tentar ajudar um amigo, sendo sua confidente. O café poderia ser o grande vilão, disfarçado de herói.

Ou, simplesmente, poderia tratar-se de uma troca de folhas necessária: caem as folhas como caem os dias. E a relação das plantas não ser outra que a organização preferida por seu cuidador, que brinca de ser Deus até na narração de tantas possíveis estórias.


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Bia Mies

BIA MIES é carioca da Serra Fluminense, autointitula-se "do mundo" e reflete em sua escrita um olhar sensível sobre a vida do seu "entremeio": cada crônica torna-se uma interação entre o trivial e a reflexão poética, uma tapeçaria de influências e insights. Tece pontes entre arquitetura, urbanismo, artes visuais e cênicas, moda, leituras, cafés, viagens, família, amores, Zeca (seu fiel companheiro de quatro patas), amigos, Itália e "experiências dos usuários", área na qual atualmente se especializa. Cada percepção transforma-se em texto, numa busca exploratória de pensamentos e emoções, através de uma visão pessoal do cotidiano e do extraordinário. Celebra a beleza da imperfeição e convida o leitor a uma jornada introspectiva, onde cada palavra é cuidadosamente escolhida para ressoar e provocar. Como o sopro das vivências que se entrelaçam pelo seu caminho, Bia Mies homenageia quase duas décadas de exploração literária no Crônicas Cariocas.

Um comentário

  1. Quem diria que numa varanda comum haveria um drama shakespeariano?
    Esse café é muito maroto, hein!?
    Ao menos o Manacá transforma suas mágoas em arte.

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