Crônicas

Espelho, espelho meu

Ontem foi dia de conhecer um exemplar da nova humanidade. Estava almoçando com meu filho, num restaurante da zona sul, depois de um exame em que fui acompanhá-lo (ação corriqueira para mães das proles de antigamente) quando ele me interpelou: “Aquilo ali é um bebê reborn?” 

Discretamente, acompanhei seu olhar e me deparei com uma moça aconchegando o bebê em seu colo enquanto andava para lá e para cá. O movimento era parecido com o ninar das mães/cuidadoras de crianças feitas de poros, mas com algumas diferenças, talvez, inalcançáveis para quem não vivencia a corda bamba da maternidade feita de cheiro de fralda suja e beijo babado:

1. o balançar do colo não tinha aquela apreensão inerente ao ato de ninar um bebê: é sono? Fome? Dor? Gases?

2.  A tranquilidade de quem não corre o risco de levar uma golfada.

3.  A paz absoluta dos que não precisam ter medo de errar, de não perceber ou intervir a tempo, de falhar.

4. A solidão de um olhar que não encontra testemunho de afeto.

Tudo sob controle, milimetricamente previsível, controlável. Por alguns instantes, admirei a maternidade reduzida a sua função de cuidados mecânicos. Mas, em poucos segundos, o sorriso esvaziou, senti falta da temperatura, do cheiro, da gargalhada, do choro feito de lágrimas, das mãozinhas puxando o cabelo. 

Voltei para o meu filho e respondi: “Com certeza é um reborn. Não há dúvidas.” 

Quando coloquei no teto do quarto um papel de parede cheio de estrelas, achei lindo, mas sabia que não eram estrelas. 

Por mais que digam que, para toda mãe, os filhos serão sempre crianças, desejamos que cresçam. E essa é a graça, ver o amor ganhar contornos, a intimidade desenhar nuances, a relação se reinventar no tempo.

As rosas de plástico enfeitam a casa, mas não perfumam.

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Soraya Jordão

Soraya Jordão é psicóloga e escritora. Nasceu no Rio de Janeiro em 1968, sob o signo de Virgem. Durante a pandemia, descobriu seu interesse pela escrita. É autora do e-book de contos Histórias que contei pra Lua, publicado pela Amazon, em 2022. No mesmo ano, publicou o livro infantil O plano do tomate Tomé, pela editora Itapuca. Foi finalista do concurso Poeta Saia da Gaveta do Verso Falado (2021) e do concurso de crônicas do Instituto Fome Zero (2022). Recebeu menção honrosa no Concurso Literário Relâmpago Virtual, da FALARJ, em 2023. Seu primeiro romance Ciranda de mamutes foi selecionado e publicado pela Editora Patuá em 2023. Escreve para os sites Crônicas Cariocas e Crônica do Dia.

4 comentários

  1. Soube dessas bonecas no dia das mães, quando o Brasil todo já estava discutindo e com diversas opiniões formadas. Fiquei calada, tentando entender se eu iria conseguir prosseguir a conviver com o resto da humanidade! Senti um alívio quando também alcancei uma hipótese sobre essa situação… suponho que não há surto coletivo de saúde mental, mas uma estratégia capitalista de acumulação através da nova moeda chamada “likes”.

  2. Perfeito! E, assim como tb já diziam os Titans, “as flores de plástico não morrem”!! É realmente assustador o humano zelando a falta de humanidade.

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