Crônicas

SEM TÍTULO, dezembro dois mil e vinte e quatro

Ler – sendo eu o “recheio de um sanduíche” composto pelo conjunto de lençóis praticamente novos, verdes, vacilando entre o algodão 100% liso e o de arabescos geométricos, aroma envolvente de quem acabou de sair da máquina lava e seca -, confortavelmente descansando as intermináveis horas de trabalho que se seguiram nas últimas semanas – mal tive tempo de me deitar ou introjetar minha nova idade, não fosse a viagem – que sempre faz parte do meu ritual de ano novo pessoal. Pois bem.

Aqui estou eu, a ler um livro pelo qual me apaixonei a partir de uma minissérie na Netflix; nos esbarramos em uma feira de sebos na praça central da cidade, eu que passei e ele que segurou decidido meu braço esquerdo, em meio a profusão de outros livros, e disse “desculpe.. hey, oi, tudo bem?! Olha quem está aqui, que coincidência! vamos tomar um café e ir para um lugar mais… privativo?” Sem ter como contradizer a cantada – muito da bem arquitetada – e com o tal apetite de leitor faminto e sempre, sempre à caça literária a me cutucar, paguei pelo café, onde fomos logo em seguida nos conhecer, e trouxe não só o homônimo da telinha para casa, como um segundo volume do mesmo autor, muito superior em páginas. Me dou de presente esses momentos após uma exaustão daquelas, na qual o único conforto é por em ordem a caixola pensante, como se organizasse meus armários, limpasse o banheiro e ordenasse os itens que descansam ou apodrecem na geladeira. Zeca me acompanha, pêlos brilhantes e cheirosos do segundo dia pós-banho profissional no pet shop – e incontáveis lenços umedecidos, escovações de pêlos e dentes -, em suas poses que fazem meu coração transbordar de amor, de agradecimento por sua companhia fiel e vigília incanssável.

Pela inteligência sem igual e sempre sorrisos – e pedidos de comidas e petiscos. Sobre a cama, eu e Zeca nos entretemos em nossas atividades, cada um na sua. Um mesmo colchão, dois mundos que não se misturam, mas convivem em perfeita harmonia. E para saudar as festividades de fim de ano, que estão em baixa por aqui pelas baixas que a vida nos impôs ao longo dos últimos meses, pedi a Alexa que tocasse músicas natalinas.

Jingles conhecidos, outros novos, alguns jazz e assim seguiram-se 40 páginas. Meu ser de quatro patas prefere o chão duro e o espaço imediatamente acima – quase inexistente – entre o fundo da minha cama box e a superfície preferida pelos pés descalços à cama delícia, colchão de molas. Em questão de instantes, divido-o apenas com Anthony Doerr. Entre pernas que se entrelaçam – as minhas -, e as que me devoram – o livro -, este texto poderia muito bem se encaixar na coluna Contos Eróticos, inaugurada pela minha querida amiga e também sagitariana Carol Meyer, mas basta um pouco de imaginação para perceber que Zeca e Doerr estão sempre pela cama, e nada além de pêlos e palavras servem como prova de uma tórrida cena de prazer – há distintas formas de se gozar a vida. Qual não foi minha surpresa, contígua a um sonoro “Happy Christmans everybody”, o preto no branco da sentença do último parágrafo do capítulo em que pausaria a leitura desta noite:

“Madame morreu, madame morreu”.

Respirei fundo, encarei a dupla página que me contava a notícia, levantei o rosto em direção a uma Alexa festeira às 23h de uma sexta-feira pré Natal. “Alexa, volume 2”. Zeca ronca alto, a cama estremece. Como podem, também, os personagens terem suas mortes ressoando dentro de quem as lê?

Respiro profundamente. Fecho os olhos, medito, rezo. Pondero sobre ler mais umas páginas para aliviar o novo luto. Faltam poucos dias para não ser mais 2024. Guizos chacoalham minh’alma

“Must be Santa… Must be Santa… Must be Santa…. Santa Klaus!”


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Bia Mies

BIA MIES é carioca da Serra Fluminense, autointitula-se "do mundo" e reflete em sua escrita um olhar sensível sobre a vida do seu "entremeio": cada crônica torna-se uma interação entre o trivial e a reflexão poética, uma tapeçaria de influências e insights. Tece pontes entre arquitetura, urbanismo, artes visuais e cênicas, moda, leituras, cafés, viagens, família, amores, Zeca (seu fiel companheiro de quatro patas), amigos, Itália e "experiências dos usuários", área na qual atualmente se especializa. Cada percepção transforma-se em texto, numa busca exploratória de pensamentos e emoções, através de uma visão pessoal do cotidiano e do extraordinário. Celebra a beleza da imperfeição e convida o leitor a uma jornada introspectiva, onde cada palavra é cuidadosamente escolhida para ressoar e provocar. Como o sopro das vivências que se entrelaçam pelo seu caminho, Bia Mies homenageia quase duas décadas de exploração literária no Crônicas Cariocas.

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