Contos

VALDIR E FONSECA

Valdir e Fonseca trabalhavam na mesma empresa. Estavam na casa dos 50 anos bem vividos, um talvez mais do que o outro. Eram também vizinhos, o que não significava que eram amigos. Todos os dias saíam no memos horário, mas Valdir nem sempre voltava para casa antes do Jornal Nacional. Tinham algumas outras tantas diferenças. Valdir era quase mau humorado. Quase. Alto, magro, parecia estar sempre com fome. Mas preservava a cabeleira intacta, motivo de inveja de Fonseca. Quem o conhecia bem, dizia que era uma dama. Mas tinha cara de poucos amigos, talvez para se defender de puxas saco ou de gente chata mesmo. O que dá no mesmo. Ninguém sabia muito da sua vida particular. Muito não, quase nada. Nem mesmo Fonseca.

Fonseca era quase o oposto. Estatura mediana, um pouco mais gordinho, quase careca. Era casado e achava que não precisava se cuidar muito mais do que um banho de manhã e outro antes de dormir e fazer a barba todos os dias. Não entendia como o vizinho estava sempre bonito e arrumado. E solteiro. Mas o que mais intrigava Fonseca era porque Valdir nunca lhe oferecera carona. Saíam religiosamente no mesmo horário, trabalhavam no mesmo local e provavelmente fariam o mesmo trajeto se Fonseca também tivesse carro. Se. Mas Fonseca ia de metrô, lotado, esmagado, suado, todos os dias. Se casou cedo, teve filhos logo, e, entre estar em casa com a família e estudar ou viajar para aproveitar as oportunidades que a empresa oferecia, preferiu a primeira opção. Não se arrependia. Gostava de ser um homem de família, com uma rotina fixa e a oportunidade de ver os filhos crescerem. Mas agora, com eles crescidos e a mulher cheia de hobbies que não lhe incluíam, sentia falta de algo mais.

Já Valdir era diretor, só faltava ser presidente. Tinha galgado todos os degraus, de acordo com a cartilha da empresa. Fez todos os cursos, foi para todos os cantos que mandaram e hoje, ia com seu carro reluzente para a empresa. Era um modelo antigo, clássico e charmoso. Não tinha filhos e Fonseca não se lembrava se um dia ele fora casado. Parecia um lobo solitário. Mesmo assim, com todas as diferenças, eles se cumprimentavam todas as manhãs e cada um partia para o seu destino à sua maneira. Enquanto Valdir entrava no seu carro reluzente, Fonseca caminhava 3 quadras até o metrô, pensando o porquê desse comportamento do colega de trabalho. Seria timidez? Não queria se misturar com a ralé? Ou seria puro egoísmo mesmo?

Resolveu puxar conversa na hora do cafezinho. Trabalhavam também próximos e resolveu esperar o vizinho sair de sua sala para tentar uma deixa. Ao chegar na copa onde todos se reuniam para tomar café, Fonseca atacou sem piedade:

— Dia quente, hoje, hein?

— Muito! Nem parece que não estamos mais no verão.

— Pois é… o metrô estava lotado. Parecia uma sauna!

— Imagino…

E Valdir terminou seu café com a mesma cara de poucos amigos de sempre, deu meia volta e foi para a sua sala, sem antes dizer a Fonseca:

— Até amanhã!

— Até!

Mas era muito cara de pau mesmo! O sujeito não tinha nem pena do ser humano que se espremia no metrô lotado. Não podia ser mesmo boa pessoa! Quem seria tão frio assim? Custava oferecer uma simples “caroninha”?

Fonseca passou o dia todo com raiva de si. Chegava a ficar furioso toda vez que se lembrava da tentativa de amizade frustrada. Amizade não, carona. Chegou em casa praguejando:

— Você acredita, Janete, que o sr. Valdir se acha muito bom para andar comigo?

Nessa altura do campeonato, Fonseca já tinha formulado uma história na qual Valdir se achava superior e não consideraria ser amigo dele.

— Que gritaria é essa, Fonseca? E que Valdir é esse?

— O nosso vizinho, que trabalha comigo. Está se achando demais!

— Eu, hein? Muito me admira você querer ser amigo dele. Aquele homem é muito estranho…

— Estranho como?

— Nunca reparou? Ele sai sempre no mesmo horário que você, mas nunca volta no mesmo horário. O apartamento fica com as luzes acesas até de madrugada e sempre tem barulho de música ou conversa até tarde. Mas ele nunca aparece com ninguém. Sei não…

— Como você sabe disso tudo?

— Às vezes eu acordo de madrugada com o seu…Quer dizer, tenho insônia, e vou beber alguma coisa. Sempre tem movimento por lá, isso as 3, 4 horas da manhã.

Janete ia dizer que acordava com o ronco do marido, mas preferiu deixar para lá. Fonseca já estava nervoso demais.

— Mas se ele vai dormir tão tarde, como acorda tão cedo?

— Deve ser um zumbi! Janete levantou as mãos para dramatizar a sua opinião e Fonseca se benzeu de maneira instintiva:

— Vade retro, Janete! Para de falar besteira!

Mas aquilo ficou martelando na cabeça de Fonseca. Seu vizinho era, no mínimo, muito estranho. Não falava sobre a família – se é que tinha alguma – não ia nas festas da firma, não oferecia carona…não fazia nada de normal. Ele, Fonseca, ofereceria carona se tivesse um carro, por que não?

No outro dia, no escritório, depois de mais uma saga no metrô, Fonseca resolveu tirar aquilo a limpo:

— Você sabe por que o Valdir não oferece carona para ninguém?

— Como assim?

Fonseca ficou obcecado com o tema Valdir. Começou a achar que tinha mesmo algo estranho com o seu vizinho zumbi e resolveu perguntar para os colegas mais chegados o que eles achavam do chefe. Dona Telma, que era secretária de Valdir desde sempre, com certeza poderia esclarecer:

— Ele já me deu carona uma vez, sim. Mas já tem algum tempo. Por quê?

Hummmm…Então o vizinho zumbi oferecia caronas para mulheres e não para homens. Podia ser uma pista. Ou era só mais um clichê: chefe dá carona para a secretária na hora do almoço e acaba indo parar no motel. Não, era muito cliché, mesmo para Valdir.

— Seu Lupércio, me responde uma coisa: O que o senhor acha do Valdir?

— Seu Valdir é uma dama! Por que o senhor quer saber?

— É por quê…Porque vamos fazer uma festa surpresa para ele e estamos pensando no que ele gostaria de ganhar. Alguma sugestão?

— Para o senhor Valdir? Ele merece muita coisa! Pode contar comigo para o presente!

Agora essa. Nem pegava carona com o dito e agora ia ter que fazer uma festa surpresa. Nem ao menos sabia a data do aniversário de Valdir. Vizinhos há quase 30 anos e nunca se parabenizaram por nada. Nem quando Fonseca se casou, teve filhos…Por que nunca foram próximos? A voz de Janete parecia ressoar no fundo da sua mente: É porque ele é um zumbiiiiii!!!!!!!

Teria que dar uma olhada no mural da empresa, lá com certeza tinha o aniversário de todos os funcionários. Chegou até a letra V: Vagner, Valentina, Valdir…02 de março de 1964. 02 de março de 1964? Eles faziam aniversário praticamente no mesmo dia, Fonseca era do dia 04. Que coincidência. E nem assim eles eram amigos? Aniversário aproxima as pessoas, ora essa. Fonseca estava sentimental. Poderiam ser irmãos gêmeos praticamente. Precisava corrigir isso. Ia fazer uma festa surpresa para Valdir. Foi para casa cheio de ideias:

— Janete, vou precisar de sua ajuda. Vamos fazer uma festa surpresa para o Valdir!

— Ah, pronto…Agora que o homem endoidou de vez!

— Não escutei, Janete!

— Nada não, meu marido…Do que você precisa? – Tem horas que é melhor não contrariar.

— Bolo, balão, salgadinho, brigadeiro…Será que ele gosta de brigadeiro?

— Alguém não gosta?

— Tem razão Janete. Todo mundo gosta de brigadeiro. Vamos fazer uma festa de arromba para Valdir.

Janete só resmungava: Eu, hein?

No dia seguinte, no mesmo horário, os dois se encontraram como de costume na porta do prédio. Valdir, todo elegante e cheiroso — chegava exatamente assim no escritório, sem nada fora do lugar — e Fonseca com ar de criança travessa, falando apressado:

— Tá chegando, hein?

— O que que está chegando?

— Deixa pra lá…Rs… Melhor não estragar a surpresa!

Valdir deu de ombros, um pouco confuso com essa mudança repentina do vizinho, enquanto Fonseca caminhou suas três quadras rotineiras de uma maneira quase eufórica. Se sentia leve, como se estivesse prestes a um grande feito. Tinha certeza de que seriam, afinal, grandes amigos. Com direito a carona!

Dona Telma já estava de prontidão quando Fonseca chegou no escritório. Ela estava responsável por encomendar os salgadinhos e docinhos e queria algumas sugestões:

— Kibe ou coxinha?

— Eu adoro os dois!

— Eu também, mas o Valdir é vegetariano. Talvez uma empada de palmito?

— Vegetariano? Desde quando?

— Sei lá. Só sei que é.

Um zumbi vegetariano? E lá vinha a voz da Janete: Ele é um zummmmbiiiiiiiii!!!!!

— Chega!

— Eu, hein? Tá estressado Fonseca?

— Não, desculpa, dona Telma. Vamos escolher empada de palmito. Mais alguma coisa?

— Refrigerantes e sucos já forma comprados e deixei na geladeira do refeitório, todas com etiqueta para ninguém mexer.

— Não vai ter uma cervejinha? Afinal, já será no fim do expediente…

— O Valdir não bebe, Fonseca! Eu, hein? Por que você quer fazer uma festa para alguém que você nem sabe se bebe ou não?

— Isso não importa Dona Telma. Mais uma coisa…O Valdir já foi casado?

— Não acredito, Fonseca. Valdir é viúvo, já tem muito tempo. Sério mesmo que você não sabia nem disso?

— A senhora há de convir que o Valdir é um tanto reservado, né? Mas depois dessa festa tudo vai mudar, a senhora vai ver. Nós não somos amigos ainda. Mas vamos ser!

— Tem certeza?

— Claro, Dona Telma. Seremos melhores amigos, a senhora vai ver! Seu olhar era quase vidrado. Pobre Fonseca.

Mas o que ninguém sabia, muito menos Fonseca, era que Valdir, nessa vida, não gostava de 2 coisas: aniversários e de dar carona. Não gostava de festa, ficava ranzinza, se achava mais velho e não fazia questão nenhuma de ser lembrado da idade que avançava a cada ano. E a carona…Era mania mesmo. Tinha um carinho especial pelo carro: foi nele que ensinou a esposa a dirigir, aos trancos e barrancos. Ela não gostava, ficava tensa, mas no fim riam de suas inseguranças e da sua total falta de atenção. Como ela sabia rir de si mesma! E como era sensível…Uma vez quase atropelou um cachorrinho e chegou chorando em casa.

— Mas foi quase, querida, ele não morreu!

— Mas podia ter morrido Valdir… Não iria me perdoar nunca!

E ele a consolava em seus braços e nada mais parecia importar. Sua sensibilidade e bom humor eram suas maiores qualidades e conquistavam Valdir todos os dias. Então, ele nem poderia imaginar alguém maculando aquele carro. Além disso, era uma negação pela manhã. Tinha verdadeiro horror, falta de paciência mesmo para conversas matutinas. Dormia pouco, pois adorava ver filmes até tarde – seu único prazer depois de ter ficado viúvo – e se achava péssima companhia pela manhã. Evitava que o outro também lhe achasse chato e ainda preservava seu carro de caronistas que teimavam em bater as portas sem a menor sensibilidade. Não era um zumbi. Era um cricri. Mas também uma dama, segundo seu Lupércio.

Em casa, Fonseca ficou pensando na mulher de Valdir. Não se lembrava dela, nunca tinha visto uma foto no escritório de Valdir. Estranho…

— Janete, você se lembra da mulher do Valdir?

— Mulher do Valdir?

— Sim. A secretária dele, Dona Telma, me disse hoje que ele é viúvo. Você se lembra de algo?

— Agora que você falou, acho que a vi algumas vezes. Ana…não, Ângela. Mas isso tem muito tempo…O que aconteceu, eles se separaram?

— Não, Janete. Ela faleceu.

— Faleceu? Gente, mas…Fomos à missa, ao enterro?

— Não lembro, Janete. Isso não é estranho? Será que somos tão insensíveis assim? Nem me lembro do rosto dela. E no escritório do Valdir não tem nenhuma foto, nada que lembre a mulher.

— Isso sim é estranho… Zuuumbiiiiiiiiiiii!!!!

Claro que Valdir tinha uma foto de sua Ângela. Uma foto linda, de close, tirada na lua de mel em Veneza. Os melhores dias de sua vida. Ela ficava estrategicamente guardada na segunda gaveta a esquerda da sua mesa de trabalho. Ninguém precisava vê-la além dele. E eles se viam várias vezes durante o dia. Sempre que algo novo acontecia, quando Valdir estava preocupado, sem saber como resolver um problema ou quando queria apenas fofocar. Sim, eles fofocavam muito:

— Você acredita, Ângela, que a Telma insiste em voltar para aquele tal de Roberto? Já avisei que ele não presta, mas ele parece que não me ouve. Ah, se você estivesse aqui, com certeza saberia como falar com ela. Sinto tanto a sua falta…

Valdir sorria um sorriso triste e Ângela lhe sorria de volta, como sempre. Seu melhor sorriso, registrado na sua melhor foto. Talvez por isso permanecesse no escritório até altas horas, entre conversas com sua amada e os problemas do dia a dia. Gostava do silêncio pós expediente, conseguia pensar melhor. Era um mundo só dele, como todos os outros. Em casa ou em qualquer outro lugar, era um homem absolutamente só.

Pela manhã, no escritório, o clima era tenso. Muitos estavam se perguntando por que fazer uma festa para aquele chefe que não gostava de festas, não dava carona e não tinha amigos no escritório. Ou melhor, só tinha um: Seu Lupércio. Ele era o mais animado com os preparativos, junto com Dona Telma, que já tinha até pegado uma carona com Valdir. Vai saber o que aconteceu naquela carona! Chegaram a questionar Fonseca:

— Por que essa festa em cima da hora para aquele chato do Valdir?

— Quem disse que ele é chato? Ele é meu amigo, respeito é bom e eu gosto! – Rebatia Fonseca batendo no peito com orgulho.

— Amigo? Nunca vi ele te dando nem ao menos uma carona…E sei que vocês são vizinhos!

De novo aquele maldito assunto da carona. Por que raios o Valdir era daquele jeito? Não é possível que não tivesse nenhuma qualidade. Resolveu apelar para seu Lupércio, que insistia em dizer que “Valdir era uma dama.”

— Você não sabe, Fonseca? Sr. Valdir é um homem muito bom, muito culto…Quando entrei para empresa, era um simples faxineiro. Ele conversava comigo todos os dias, perguntava sobre os estudos, sobre a minha família…Um dia, disse-lhe que gostaria de fazer uma faculdade de administração para ter alguma chance de crescer, melhorar de vida. Ele pagou o meu cursinho e a minha faculdade. Hoje, já sou gerente e pude dar ao meu filho a melhor educação, a que eu não tive. Quando meu filho entrou na faculdade no ano passado o Sr. Valdir fez questão de lhe dar um belo presente. Devo tudo a ele!

Isso tudo deixava Fonseca ainda mais intrigado. Se ele era uma pessoa tão boa, por que fazia questão de andar de cara fechada e não dar muita bola para ninguém? Para Dona Telma ele dava, ah se dava…

As perguntas de Fonseca sobre Valdir foram repercutindo na empresa e a insatisfação geral com esse puxa-saquismo repentino dele também. Claro que, mais cedo ou mais tarde, aquilo ia acabar chegando nos ouvidos de Valdir. E chegou.

— Nunca vi ninguém fazer festa nessa empresa, e de repente o doido do Fonseca inventou de comemorar aniversário do Valdir. Justo daquela “mala”!

— Pelo amor de Deus, nem me fala! Pior que todo mundo vai ter que ir, vai ser no horário do expediente… Até isso!

Valdir sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir essa conversa. Estava chegando na salinha do café quando dois colegas acabavam de ter o diálogo. Eles se entreolharam rapidamente e tentaram disfarçar, falando sobre o jogo do Botafogo na noite anterior, que andava mal das pernas, mesmo com o novo técnico e um elenco estrelado. Mas o mal já tinha sido feito. Ele escutara tudo, mas fingiu que não tinha, digamos, entendido:

— Vergonha, né? Tanto dinheiro investido e o Fogão não ganha uma!

— O senhor gosta de futebol, Sr. Valdir?

— Pode me chamar de Valdir, amigão!

Amigão? Valdir nunca tinha dado nenhum tipo de intimidade para ninguém no escritório. Os dois sorriram meio sem graça e, ainda desconfiados com a amizade repentina, continuaram a conversa com o “amigão.”

— Então, amigão, estamos combinando de ir ao FLA x FLU no final de semana. Vamos?

— Mas é claro! Contem comigo!

Valdir não sabia de onde essas palavras tinham saído. Não ia a um jogo há anos e não sabia nem onde comprar um ingresso. Mas depois que foi praticamente crucificado pelos dois colegas, se sentiu na obrigação de tentar reverter essa impressão. Será que todos pensavam o mesmo? Meu Deus, estava tão envolvido em mostrar autoridade e ser competente, que tinha se esquecido do social. Desde que sua esposa morreu, tinha se esquecido também de si.

— Dona Telma, preciso falar com a senhora urgente!

— O que aconteceu, Valdir?

Dona Telma era sua secretária desde que ele tinha chegado ao cargo de gerente e o acompanhara na ascensão à diretoria e à nova sala, muito maior e elegante. Eles se conheceram quando entraram para a empresa, há quase 30 anos, e se tornaram grandes amigos, confidentes até. Valdir foi o ombro amigo de Dona Telma quando ela perdeu os pais, o seu primeiro gato e depois de todos os foras dos canalhas que ela insistia em namorar. Depois de tanta decepção, resolveu, por fim, adotar outro gato e está feliz e solteira desde então. Da mesma forma, foi Dona Telma que esteve ao lado de Valdir quando a esposa morreu, cuidando de todos os trâmites cabíveis e, também, do coração do amigo, que se despedaçou de tantas formas que até hoje ele não tinha conseguido colar.

— A senhora sabe que as pessoas me odeiam?

Dona Telma fez uma expressão que ele conhecia bem: franziu a testa, levou a boca para o lado esquerdo e abaixou a cabeça. Se virou, fechou a porta e voltou-se para ele séria. Começou a frase com um sussurro:

— Não é que eles te odeiam, Valdir…

— Você sabia disso e nunca me disse nada? – gritou Valdir exasperado.

— Fala baixo, pelo amor de Deus.

— Falar baixo por quê? Eu sou o chefe dessa joça!

— Valdir, olha só…

— Conheço o seu “olha só”. Não quero saber de olha só!

— Não é que eles te odeiam. Na verdade, acho que ninguém aqui te conhece bem. Você não vai aos happy hours, não oferece carona, não conversa muito…Até o Fonseca, que está preparando a festinha surpresa do seu aniversário, não sabia que você era vegetariano, por exemplo. Talvez, se vo…

— Como é que é? O Fonseca está organizando uma festa surpresa para mim?

Naquele instante, quem gelou foi Dona Telma. Ela mesma havia se esquecido que o seu chefe e grande amigo DETESTAVA aniversário, muito mais festa surpresa. Tentou se justificar:

— A culpa é sua! Ele veio com uma conversa estranha se você oferecia carona, depois descobriu que o seu aniversário é colado no dele e agora resolveu que vocês serão grandes amigos depois da grande festa que ele está organizando. Quem mandou ser assim?

— Telma, eu não acredito que você deixou isso chegar nesse ponto!

— Ou era isso ou eu teria que contar que você é uma dama, que me deu carona várias vezes para eu visitar o meu pai no hospital e aí a sua fama de mal ia para o brejo. Qual vai ser?

Valdir respirou fundo. Contou até 10…100…Parecia que ia explodir. Dona Telma fechou os olhos institivamente esperando a bronca homérica que estava por vir. Mas Valdir foi se acalmando quando chegou no 99. Seu rosto voltou a cor normal e o sangue parecia ter voltado a circular pelo resto do corpo. Estava em uma verdadeira encruzilhada da vida. Aquele momento em que você precisa tomar uma atitude drástica: Ou se mantinha durão e antipático, ou se tornava um chefe descolado e sociável, com direito a dar carona e a sorrir na festa surpresa.

Quando finalmente abriu a boca para falar, nem mesmo Valdir se reconheceu. A fala veio mansa, suave, e ele disse:

— Ajude Fonseca a fazer uma bela festa. E vamos pensar em uma maneira dos vizinhos darem carona uns aos outros. É isso.

Dona Telma foi abrindo os olhos devagar, tentado enxergar aquilo que seus ouvidos não acreditavam. Parecia pronta para receber um grande impacto, mas seu corpo todo foi saindo da defensiva e voltando ao estado normal. Ainda sem acreditar, apenas respondeu:

— Pode deixar.

E saiu da sala ainda querendo entender o que havia acontecido lá dentro.

Finalmente, o dia da grande festa chegou. Fonseca não se aguentava mais, quase havia deixado escapar para Valdir alguma pista nas várias vezes que se encontraram na hora do café, mas respirava fundo e dizia apenas:

— Tá chegando!

Esse “tá chegando”, que antes havia deixado Valdir apenas confuso, hoje lhe dava cólicas de aflição. Por já saber da festa, teria que fingir a surpresa, e mais: fingir que havia adorado a surpresa. ADORADO, como aconselhara Dona Telma, para que ele mudasse a sua má fama na empresa. Até treinar na frente do espelho Valdir estava treinando. Mas o seu maxilar parecia ter se esquecido de como era sorrir. Cada tentativa parecia mais falsa do que a outra e ele tinha medo de que a sua expressão se congelasse e ele nunca mais pudesse se mexer. Era como um botox eterno. Por que precisava tanto da aceitação do outro? Tudo estava tão bem do jeito que ele já estava acostumado!

O dia foi passando normalmente. Valdir almoçou sozinho como de costume e, ao escovar os dentes, treinou mais algumas expressões que pudessem alegrar Fonseca. Teve medo daquelas caretas e tentou relaxar, dizendo um “Seja o que Deus quiser’. Tentou se concentrar nos problemas da empresa que não eram poucos, mas o relógio parecia ter se tornado seu inimigo: As horas se arrastavam da maneira que ele tanto havia pedido em outros momentos da sua vida. Quando descobriu a doença terminal da mulher. Quando escutava seu riso já fraco. Quando seus lábios não queriam se desgrudar e o abraço se fazia ninho. Como queria ter mais um minuto ao lado dela. Como sentia falta da sua companheira de vida!

— Vamos?

Era Dona Telma, toda faceira, despertando Valdir de suas lembranças. Ela estava toda arrumada, parece que a festa ia mesmo ser boa.

— Tem certeza que preciso mesmo ir?

— A festa é para você, tem graça se não for, né?

— Delicada, hein?

Eles riram juntos daquela cumplicidade boa. De repente, Telma parou seu sorriso com as mãos e disse:

— É isso! Faz assim que será perfeito.

— Obrigado amiga. E me lembra de ligar para a oficina depois, tenho que buscar meu carro.

— Sim senhor! Ela esboçou uma continência, ele lhe deu um abraço. Foram juntos para o salão nobre da empresa, que já estava todo enfeitado.

Assim que se aproximaram, Fonseca abriu a porta de repente e gritou:

— SURPRESA!!!!!

Talvez tenha sido a cara de felicidade de Fonseca ou o primor que tudo tinha sido feito. Mas a questão é que Valdir conseguiu dar um belo sorriso. Daqueles que veem do coração mesmo. Dona Telma enxugou uma lágrima teimosa.

— O senhor gostou?

— Está uma maravilha!

Fonseca não se aguentou e partiu para o abraço. Aquilo era a glória. Meio desajeitados, acabaram preferindo um aperto de mão.

— Excelente trabalho Fonseca, parabéns!

— Parabéns para você, amigão! Na cabeça de Fonseca, já eram íntimos.

E todos começaram a bater palmas e se aproximaram do chefe para cumprimentá-lo. Era uma bela festa, e Valdir realmente estava gostando. Era como um sopro de alegria em tantos anos de uma quase clausura. Finalmente parecia achar graça em algo que não tinha a ver com a sua casa e as suas lembranças da esposa. Desde o seu falecimento, só queria saber de trabalhar e rever os filmes que tinham visto juntos. Ele gostava de imaginar que ela estava ao seu lado, dando sua risada gostosa ou chorando das cenas bobas. Falava sozinho, tentava lembrar do que ela havia dito em cada cena, ria da mania que ela tinha de adivinhar em qual filme aquele ator italiano tinha atuado. Como sentia falta desses momentos…

— Continue sorrindo assim que amanhã muitos já vão te adorar!

Era Telma novamente o aconselhando. Mal sabia ela o motivo dos seus sorrisos. Mas é claro, estava se sentindo bem com toda aquela atenção e sabia que poderia ser uma pessoa melhor ao se aproximar dos seus colegas de trabalho. Resolveu começar por Fonseca:

— Muito obrigada por essa festa, Fonseca. Realmente não tenho palavras para lhe agradecer. Faço questão de te dar uma carona hoje. Somos vizinhos, afinal!

Fonseca mal se conteve na frente de Valdir. Lhe deu uns tapinhas nas costas e foi correndo para o banheiro. Chorou um choro de menino, aquele que finalmente teve aprovação do pai, mas ao mesmo tempo não quer que ele lhe veja emocionado.

A festa fez tanto sucesso que entrou noite adentro. Alguns compraram cerveja, pessoas de outros setores acabaram dando uma passadinha, tudo ia às mil maravilhas. Valdir circulava entre todos, sempre ao lado de Dona Telma, que lhe dava um resumo rápido antes dele se aproximar de alguém:

— Esse é o Ricardo, do Financeiro. Acabou de ter um filho.

— Ricardo, parabéns! Ser pai é uma grande alegria, aproveite!

E Valdir convertia mais um. Dona Telma seguia firme:

— Essa é a Carolina, começou há pouco na empresa e já tem se destacado.

— Carol, já estou sabendo que você está bombando!

E recebia um ou outro beliscão de Dona Telma quando passava do ponto:

— Carol, Valdir? Que intimidade é essa?

— Me deixa, Telma. Sou iniciante nessa arte!

E eles riam e voltavam à missão de fazer Valdir ser um ser social.

Depois de vários abraços, comentários amigáveis e excesso de socialização, Valdir estava pronto para voltar ao seu refúgio. Não sem antes chamar Fonseca para a tão esperada carona.

— Vamos Fonseca? Te deixo em casa!

Era tudo que ele sempre sonhara. Foram juntos até o elevador e Valdir apertou o G. Estava mesmo acontecendo. Fonseca ia entrar no carro de Valdir. Iam trocar figurinhas, falar da festa, quem sabe eles não falavam um pouco de trabalho? Não, hoje não, hoje era dia de festa. Falariam sobre coisas amenas. Fonseca iria convidar Valdir para jantar na sua casa no dia do seu aniversário. Jantar não, ia fazer um churrasco no salão de festas, isso. Eles entrariam no carro e Fonseca talvez dissesse que estava pensando em comprar aquele modelo. Valdir lhe daria as dicas, quem sabe até lhe desse um aumento para lhe ajudar? Seria o começo de uma grande amizade, tinha certeza disso.

Assim que o elevador se abriu, Valdir começou a procurar as chaves do carro. Colocou as mãos nos bolsos da calça, do paletó, da camisa. Pediu para Fonseca esperar enquanto abria a maleta e procurava as chaves dentro dela, em cada cantinho da sua bela maleta de couro. Fonseca achava tão elegante ter uma maleta de couro. Um dia teria a sua, tinha certeza. Quem sabe Valdir não lhe daria uma de aniversário?

— Meu Deus, onde foi que deixei as minhas chaves?

— Será que, por descuido, você não deixou dentro do carro?

— Será? Do jeito que estou distraído ultimamente, pode até ser.

— Onde ele está estacionado?

— F1

— Estamos no E, deve ser logo ali.

E foram seguindo a direção que o dedo de Valdir apontava.

— F0, F1… é aqui?

— É. Ou melhor. Deveria ser.

— Não tem carro nenhum aqui, Valdir.

— Sim, estou vendo. Mas não estou entendendo.

— Como assim? Você me faz vir até aqui, promete me dar uma carona, mas não tem carro nenhum estacionado?

— Devem ter me roubado!

— Ah, tá. Você passa a vida toda me esnobando, nunca me oferece carona, e no dia que eu faço uma megafesta para comemorar o seu aniversário, você me vem com uma pegadinha?

— Que pegadinha, Fonseca? Você realmente acha que eu iria perder meu tempo mentindo para você? Se ofereci carona é porque sabia que meu carro estaria aqui. Ou pelo menos achei que sabia.

— Ah, conta outra…

— Meu Deus do céu, Fonseca. Juro que a minha intenção era te dar carona, mas que diabos! E outra: não te pedi festa nenhuma, você fez porque quis!

— Ah, mas é claro! Estava só faltando essa! Eu pelo menos gosto das pessoas, e se tivesse carro daria carona para todo mundo!

— Chega, Fonseca. Vou ligar para Dona Telma, perguntar se tem segurança por aqui e ver o que podemos fazer. Já parou para pensar que posso ter sido roubado? Tenha dó!

— Aham…

Já arrependido de ter oferecido a tal carona, Valdir liga para Dona Telma:

— Telma, olha só. A vaga do meu carro sempre foi a F1, não foi?

— Claro, desde que você se tornou diretor. Por quê?

— Porque estou olhando para ela e meu carro não está aqui.

— Claro que não está. Você o levou para a oficina hoje de manhã. Até pediu para que eu lhe lembrasse de ligar para lá amanhã.

Valdir quis soltar um palavrão, mas ficou com medo da reação de Fonseca. Ele jamais iria acreditar naquela história.

— Isso mesmo, Dona Telma. A senhora tem toda razão. Vou lá agora mesmo.

— Ficou doido?

— Boa noite, Dona Telma. Bom descanso.

— O que aconteceu? Vai dar carona para Dona Telma e está disfarçando comigo?

— Só me faltava essa agora, Fonseca. Dona Telma também acha que meu carro foi roubado e devo ir à delegacia dar parte. Vou pegar um táxi até lá, posso pedir um para você também.

— Não preciso que você me peça nenhum táxi. Vou para casa da mesma forma que venho trabalhar todos os dias, de metrô. E não pense que eu caí nessa história para boi dormir não. Relações cortadas!

E Fonseca foi andando duro, como se tivesse sido magoado pelo grande amor da sua vida. Pegou o cartão do metrô e encarou o seu destino. Nunca iria andar no carro de Valdir.

Ainda parado ao lado da vaga, sem saber como pedir um táxi àquela hora, Valdir praguejava:

— É por isso que nunca dou carona!!!


Mostrar mais

Carol Meyer

Carol Meyer - Curiosa e apaixonada pela arte da escrita, a autora do livro "Ave Marias", obra premiada no concurso Bunkyo de literatura, é uma apreciadora das delicadezas do cotidiano, uma ouvinte atenta, "colecionadora de pessoas e casos." Divirta-se!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo

Adblock detectado

Desative para continuar