Crônicas Cariocas

  • A Chuva

    Gotas esparsas trouxeram o chuvisco e fizeram subir um cheiro bom de terra molhada. A chuva anunciou sua chegada e pôs para correr quem estava distraído.

    A grama continuou seca e marrom, as plantas mantinham as folhas encolhidas pela desidratação, e uma leve brisa inundou o ambiente.

    De repente, a chuva despencou de forma torrencial — forte, densa e barulhenta — por poucos minutos. A primeira pancada recuou por um instante, apenas para voltar ainda mais intensa, como se uma comporta houvesse sido aberta no céu. Em segundos, as nuvens brancas, que pareciam véus de noiva se alongando no espaço, foram engolidas pela tempestade, e o céu escureceu.

    Uma pausa? Não!

    O temporal se intensificou. Descargas elétricas riscavam o céu como armas luminosas — sinuosas, douradas, prateadas. O estrondo dos trovões explodia no ar, um após o outro!

    A grande ventania passou, mas o vento ainda balançava os galhos das árvores, que pareciam adornadas por milhares de cristais cintilantes nas gotas que escorriam. A cada trovão, a cada raio, pairava a iminência do apagão.

    E aconteceu!

    Ouviu-se um forte baque, como se algo grandioso tivesse desabado. No chão, como um grande corpo com várias pernas e braços, jazia um gigante tombado — uma árvore caída bem no meio da rua! Na queda, levou consigo os fios elétricos, deixando o bairro sem energia.

    Com a luz apagada e o dia se despedindo, a chuva continuou. Forte e soberana.

    Elevadores parados, televisores mudos, semáforos sem sinais. Automóveis alternavam entre lentidão e pressa, enquanto as buzinas tomavam conta do ar.

    Por alguns minutos, a grande metrópole silenciou. O afã em sempre ter algo para fazer, a importância, a pressa e a impaciência perderam a vez. Nada a ser feito, a não ser o quê?

    Olhar a chuva!

    E nesse tempo, ela reinou…

  • Poema #16 – Convidados

    Da janela da casa onde moro
    aguardo a chegada de alguns
    amigos para a festa de
    aniversário.

    Nada se move, exceto a minha
    sombra na varanda, vazada de
    angústia, silêncio e noite.

    Fecho as janelas da casa
    onde moro e ainda dou
    uma última olhada através
    das frestas da veneziana.

    Nada se move, exceto a noite
    com a sua noção de simultaneidade
    do tempo, das pessoas e das coisas.

    Nada se move, exceto o silêncio
    que domina o ambiente e repousa
    na visão do telefone emudecido
    e inútil sobre o criado-mudo.

    Fecho a porta do meu quarto
    e a casa onde moro fica escura,
    imersa na solidão dos cômodos.

    Inventário de Sombras

  • Quando o tempo para: instantes de giz e asas

    “O mundo não está para a paciência. Mas a paciência está para o nosso bom desenvolvimento humano”.

    Assim, de costas, com o velho e conhecido giz branco em punho, desenhando símbolos e números e letras contra uma lousa verde, a professora Vida passa lições aos seus alunos, uma turma heterogênea chamada humanidade. Aparentemente simples, a lição de hoje reprovou quase a totalidade dos alunos. O simples, nem sempre, é facil. O simples, muitas vezes, é um compacto complexo. Que equaçãozinha filo-matemática desafiadora!

    Sentada na primeira fila, Olivia presta atenção não só ao que está escrito no quadro, mas aos gestos da professora, ao tom da sua voz, séria, embora doce. Sempre voltada para o quadro, difícil dar de caras com ela. Voz, o barulho do giz na lousa, pausas, uma figura que se mexe delicadamente ao passo que injeta questões instigantes, ameaçadoras, apaixonantes e que desfazem o mundo tal qual pensamos que o conhecemos. Odor de lancheira do maternal, sabor da promoção de toda quarta-feira do salgado de queijo, tomate e orégano com batida de morango ao leite da cantina da faculdade. Nesta sala de aula não se sente nem frio, nem calor. Um mistério saboroso, sob o movimentar-se de uma discreta silhueta de longos cabelos brilhantes aprisionados lindamente por uma fita de cetim azul. O vulto veste uma peça única de corte reto, bem cintado, tom sóbrio que, ao ritmo dos passos encurtados e decididos, sem se voltar para os estudantes, prenuncia enigmas que jamais se deixarão decifrar.

    ***

    Vernon senta-se no mesmo lugar, todas as manhãs. Entre outros seres de luz, perfaz a rotina dos eternos sem pressa, deixa-se entreter com o canto dos pássaros e as migalhas deixadas pelo vento, na estrada de pedras lisas, de tom marrom, ao lado do rio cintilante que aponta a direção de sua casa, nada distante.

    Alta, trajando um vestido reto e bem cintado, a professora está atrás de uma lousa transparente. Escreve números, letras e símbolos com um giz branco. Todos estão capturados pela luz de seu rosto, lições simples e delicadas que são entendidas de primeira. Ninguém repara em nada além do rosto angelical da professora Vida, cujo cabelo está todo preso por uma fita cetim azul, e do giz que não pára quieto.

    Hoje, entretanto Vernon se sente diferente. Fixa o olhar em uma borboleta verde que pousou sobre a lousa translúcida. Aos poucos, a claridade rareia, as asas do pequeno inseto o hipnotizam e Vernon enxerga Olívia. O tempo para, o espaço físico se diluí. Olivia está crescida e sorridente, a melhor da turma, como sempre. Seu olhar compenetrado não mudou nada. A pele mais clara de quem perdeu o tempo do lazer e do sol de verão, o sol que sempre amou a queimar-lhe a pele e acender as sardas, por todo o corpo… algumas linhas de expressão mais duras se fazem perceber, perto dos olhos. Está mais magra e mais abatida, também. Mas ainda é bela e vívida..É ela, sua Olívia! Quanto tempo! O coração bate em seu peito como há muito não sentia. Vernon então compreende a dor que desde sua morte não sentira: a ausência dos entes queridos, das memórias, dos dias de aprendizado – e erro -, do amor que ainda corre em suas veias, tão incorpóreas, na forma de mulher humana com quem não teve tempo de se casar. A cena entre planos é orquestrada pela professora, a borboleta que bate as asas em um compasso sonolento. Olívia mexe o nariz do jeito de sempre. Vernon sorri. A borboleta invade a lousa transparente, fura o entre mundos, e sobrevoa a cabeça de Olívia. Pousa em seu nariz.

    Por um breve segundo, apenas um segundo, os olhos de Vernon encontram os de Olívia.

    “Vernon, quanta saudade!”, pensa a jovem estudante.

    A borboleta, então, levanta voo e irrompe pelas janelas do cômodo – o bater das asas sublinhando todo o silêncio do instante interminável -, sumindo em direção a um horizonte qualquer.

  • Crônicas, Filmes e Fotos

    Em Crônicas sobre uma foto falei sobre o tempo, falei um pouco do passado, falei de memória. Tomei emprestado um verso do grande Manuel Bandeira, “…tempos de eu-menino…” E, também, tomei por empréstimo Pasárgada. Mas o poeta há de entender. Retirei algumas fotos de caixas de papelão (quem hoje ainda faz isso?) e lembrei de mim e de pessoas que passaram pela minha vida. Muitos, ainda sempre vistos e abraçados. Outros, nunca mais vistos… Não tive e talvez nunca tenha o paradeiro ou qualquer referência que o valha.

            Mas.

            Ao falar sobre o tempo nessa sequência de crônicas, percebi como dói, às vezes, lembrar certas coisas, certos fatos. Contudo vi que, de mesmo modo, a alegria em rememorar determinadas aventuras era, também, muito forte. Escrevi em outros textos, escrevi em poemas e contos sobre a questão do tempo, sobre a passagem do tempo. Quem escreve sempre fala sobre o tempo…

            Sempre há algo a dizer. Sempre há alguma coisa para desenterrar… O tema não se esgota.

    Eu me lembro de um filme interessante, Conta comigo (1986), com Richard Dreyfuss. Neste longa, a temática do tempo é abordada por um escritor (Dreyfruss) que resolve fazer um livro sobre a sua infância. Ao pensar sobre o passado, percebe que seus verdadeiros amigos (no que essa palavra possui de mais significativo) sempre foram os ‘esquisitos’ dos tempos de moleque. As aventuras e desventuras vividas pelo grupo de meninos marcaram de tal forma a sua visão de mundo que ele não poderia jamais esquecê-los.

            Em Quero ser grande, outro filme dos anos 80, um menino, inconformado com certas ‘barreiras’ da infância encontra uma forma de crescer bem rápido e, então, o jovem Tom Hanks fica perplexo com a sua imagem de homem adulto: um homem dividido entre as coisas de garoto e a descoberta do amor.

            O tempo e o fascínio que nos provoca. E se tivéssemos poder sobre o tempo? Uma máquina, por exemplo?

            Foi o que pensou Robert Zemeckis em De volta para o futuro (1985), uma trilogia que brincava e bagunçava de vez com o tempo. Eu era garoto. Um garoto de dez anos. E via Marty McFly correr com seu skate, tocar a sua guitarra em volume ensurdecedor e entrar em um DeLorean para voltar aos anos 50 e aprontar muito.

            Mas o que eu quero dizer com tudo isso?

            Em todos os filmes citados, o tempo é o assunto abordado. O tempo é o elemento mestre que impulsiona as personagens em suas histórias.

            Quando via as fotos e escrevia as crônicas não parava de pensar em mim mesmo: criança, jovem, adulto. O gosto da jabuticaba tirada do pé. O gosto da manga e os joelhos esfolados pelas quedas de bicicleta. O mergulho nas cachoeiras. As trilhas na Reserva da Mata da Câmara feitas por pequenos grupos. Mais uma vez o gosto, o gosto do primeiro beijo. Aquele morder de lábios e os olhos fechados e as mãos nervosas e incontroláveis… Ah! As mãos!

            Posso ver o olhar abobalhado de Marty Mac Fly quando sente que sua mãe o olha perdidamente apaixonada. Posso ver o sorriso de Tom Hanks pulando como criança junto com o amigo de 12 anos em uma cama elástica. Posso ver os meninos que atravessam léguas e léguas seguindo os trilhos da ferrovia só para resgatarem o corpo de um garoto.

            É o tempo. O fascínio do tempo. A passagem das horas e a vida que vai e vai…

            Recoloco as caixas em seu devido lugar: o armário.

            Mas.

            Ouço as vozes do tempo. Sou eu-menino correndo nas ruas da pequena cidade. Sou eu jovem descobrindo os anseios do corpo. Sou eu homem, inquieto olhando para a tela do computador e pensando terminar esta crônica.

    E, mesmo ao terminá-la, embora o tempo das coisas vividas terá seu espaço no passado, o tempo da escrita destas mesmas coisas será sempre o agora…

            Quando a crônica acabar, um tempo – o tempo da escrita – se foi. No entanto, o tempo da leitura trará as mesmas lembranças de volta num só tempo.

    *Texto originalmente publicado no livro Terra Brasilis.

  • Dia sim, dia não

    Seria pouco honesto dizer que Shirley não tentou caber na mesmice dos dias. Todos somos testemunhas de sua dedicação: levava o cachorro na rua, duas a três vezes, o filho na escola, no futebol, na explicadora, fazia mercado, voltava de lá com os braços lotados de sacolas pesadas e ainda arrumava tempo para vender os panos de prato que ela mesma bordava.

    Uma vez, a observei limpando os vidros da janela da sala, metade do corpo para fora do apartamento, apoiando-se feito malabarista no parapeito. Parecia não temer altura nem queda. Invejei sua disposição para viver com vigor horas sem nenhum atrativo.

    No condomínio sua fama de exímia cozinheira corria os andares. O cheiro do seu tempero invadia os corredores do prédio na hora do almoço e da janta. Sempre comida fresca.

    Aos domingos, com o filho no colo e de braços dados com o marido, encaminhava-se para o templo. Cabelo preso, bem esticado num coque, vestido abaixo dos joelhos, de manga longa, acho que usava sempre o mesmo, sapatilha fechada e perfume de alfazema. Não demonstrava cansaço ou desagrado. Sua perfeita adaptação ao morno da vida me jogava no buraco da culpa. Odiava o jeito firme com que Shirley fazia continência para a felicidade, mas, confesso, me causava um prazer macabro observá-la abrir a cortina, às cinco da manhã, animada para começar seus afazeres enquanto eu apagava o último cigarro antes de ir dormir.

    Ontem, como de costume, assisti ao ritual: a janela se abriu lentamente, corpo rígido como quem já está pronto para a luta, palmas das mãos voltadas para cima, olhos pregados no céu. A boca pálida parecia balbuciar a oração do amanhecer. Agora, eu podia dormir sem paz.

    Passava das duas horas da tarde quando o barulho das buzinas me despertou. Corri para a varanda. No meio da avenida, caminhando entre os carros, passos lentos, braços abertos, salto alto e despida de tudo, desfilava Shirley.

    Quando os enfermeiros a alcançaram, não resistiu, não chiou, não chorou. Entrou na ambulância com seu sorriso cansado todo borrado de batom carmim.

  • Precisamos falar sobre Elon

    “Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto os outros macacos morressem de fome, os cientistas estudariam aquele macaco para descobrir o que diabos estaria acontecendo com ele. Quando os humanos fazem isso, nós os colocamos na capa da Forbes” (Prof. Emir Sader)

    Li recentemente que se os 3000 sujeitos mais ricos do planeta, num ato coordenado de filantropia, resolvessem doar 5% de sua fortuna, a dinheirama gerada seria suficiente para extirpar a fome do planeta. Esse distinto grupo, uma turminha que poderia ser acomodada confortavelmente no interior de um desses navios de cruzeiro, teria capacidade de resolver num passe de mágica o trágico problema que há séculos assombra a humanidade. Estamos nos referindo a apenas 3 mil felizardos, uma gotinha de 0,0000375% em meio ao oceano humano de quase 8 bilhões de criaturas que com eles partilham o mesmo planeta.

    Elon Musk está no topo desse seleto clube. O presidente-executivo da Tesla e dono do Twitter (atual X) tem um patrimônio de quase 300 bilhões de dólares, ou seja, 1,5 trilhão de reais. Convertido em papel moeda, resultaria em quase cinco vezes todo o dinheiro em circulação no Brasil! Equivalente a 15 bilhões de notas de 100 reais que, alinhadas, formariam uma fila de tamanho igual ao triplo da distância até a Lua, ida e volta! Essa grana toda que faria o tio Patinhas resignar-se à constatação de que não passa de um pato chucro, está nas mãos de um único indivíduo.

    Pois é, se esse sujeito sozinho resolvesse, numa ação iluminada de generosidade, abrir mão de meros 2% de sua fortuna, algo que obviamente não lhe passa pela cabeça, poderia impedir a morte de 40 milhões de pessoas que se encontram em situação de penúria extrema. Mitigar a fome de africanos pretos pobres e desmilinguidos definitivamente não faz parte dos planos do nobre empresário trumpista, empenhado que está em destinar seus preciosos bilhõezinhos a iniciativas de maior relevância para a raça humana como projetar naves espaciais para levar outros endinheirados para passear em Marte já que a démodé Terra, lugar de plebeu, já era.

    Mas, sejamos justos, nem todos os super-ricos são tão zelosos com a integralidade de seus estimados bilhões. Ao contrário do que se possa imaginar, alguns desses seres celestiais têm consciência de que a fortuna que amealharam ao longo da vida veio acompanhada da obrigação moral para com a sociedade que os possibilitou chegar a essa privilegiada condição financeira. Afinal, as estatísticas revelam que os principais expoentes dessa nata assistiram sua fortuna se multiplicar na última década, enquanto nós outros, pobres mortais, que já estávamos na pindaíba, afundamo-nos ainda mais em nossa indigência.

    Uma pesquisa recente revela que 3 em cada 4 super-ricos não se oporia à criação de impostos incidindo sobre suas posses. Um grupo de 200 magnatas (entre eles um brasileiro) lançou há pouco um manifesto reivindicando (acredite) pagar mais impostos.

    “Nosso pedido é simples. Nós, os muito ricos queremos ser taxados por vocês. Isso não vai alterar fundamentalmente o nosso padrão de vida, tampouco prejudicar nossas crianças ou afetar as economias de nossas nações. Transformará a riqueza extrema e improdutiva em investimento em nosso futuro democrático comum. (…) Quando vocês vão taxar a riqueza extrema? Se os representantes eleitos nas principais economias do mundo não adotarem medidas para lidar com o aumento dramático da desigualdade econômica, as consequências serão catastróficas para a sociedade”, diz o documento direcionado à elite econômica e política reunida no Fórum de Davos.

    É de se estranhar que nossa civilização tão diligente em alardear as conquistas no campo da ciência e tecnologia que pretensamente nos possibilitaram melhor qualidade de vida não seja capaz de equacionar esse simples probleminha matemático de distribuição de renda que traria maior paz e equilíbrio social, minorando o sofrimento de bilhões de seres humanos. É pródiga em criar novas tecnologias, mas inapta em permitir que todos tenham acesso a elas.

    No Brasil, a situação é particularmente alarmante. Estima-se que o 1% mais rico concentre nada menos do que 2/3 da riqueza nacional, enquanto os 50% da base da pirâmide detêm apenas 2% da riqueza.  Esse fosso gigantesco é absolutamente ultrajante.

    Ainda que tendo apoio da maioria da população (85% segundo pesquisas), a taxação de grandes fortunas, por incrível que pareça, encontra resistência na sociedade. Boa parte dos deputados de direita que tomaram conta do Parlamento votou contra projeto do atual governo de taxar bilionários (‘virou crime ser rico no Brasil’ disse o ex-presidente Bolsonaro, antevendo problemas com o fisco quando chegar a essa condição). 

    Para tanto, contou com o apoio dos evangélicos, adeptos da ‘teologia da prosperidade’, segundo a qual, os abastados são merecedores da bênção material que lhes foi oferecida por seu Deus empresário. Recusam-se a colaborar com um tostão que seja para um necessitado (‘fracassado’), mas doam de bom grado um décimo de seu parco salário para o nababo pastor, que foge da caridade (e dos impostos) como o diabo foge da cruz.

    Mas não são só esses que se opõem à ideia de taxar super-ricos. Diversos economistas neoliberais para quem ‘imposto’ é palavrão, também se posicionam contra.  Alegam que de nada adianta taxar os bilionários pois eles desviariam suas fortunas para outros países, em especial os paraísos fiscais, além de serem mestres em dar um chapéu na Receita, corrompendo fiscais e sonegando tributos. Ou seja, já que a sociedade não consegue enquadrar os larápios, deve-se curvar a eles. E fica tudo como está.

    Assim como os advogados, os economistas são especialistas em criar dificuldades para implementar mudanças de caráter social. Submetendo-se à frieza dos números, cortam nossos sonhos de ter um mundo melhor. Ao invés de conceber uma sociedade composta por humanos empenhados em viver em harmonia entre si, enxergam um ambiente mercantilizado, onde agentes se digladiam, cada qual querendo otimizar sua posição, com base em seus interesses particulares, visando maximizar seus ganhos materiais. Nesse campo de batalha, chamado mercado, os super-ricos desempenham o papel fundamental de investidores, os motores do capitalismo. Em direção ao apocalipse socioambiental.

    O que não enxergam é que esse é um tema que transcende a esfera econômica. Não é também uma questão ideológica, coisa de comunista. Exigir maior equidade e evitar essas aberrações na distribuição dos recursos é uma necessidade ética, de justiça social.

    O que a humanidade produz é mais do que suficiente para suprir a necessidade de todos os indivíduos, mas apenas uma minoria cada vez mais afunilada colhe os frutos e ainda se dá ao luxo de esbanjar as sobras em futilidades, em detrimento de legiões de famintos que perambulam pelos continentes à procura de um lugar onde consigam sobreviver com as migalhas. Taxar os super-ricos é um imperativo para que possamos superar esse dilema e nos tornar uma civilização superior. Pelo menos, no mesmo nível da dos macacos.

  • Outono, bem-vindo!

    O outono chegou, espalhando seu tapete de petalas de flores pelas ruas e enchendo o ar com um frescor renovador. Hoje é o primeiro dia dessa estação que sempre me traz simbologias e memórias.

    Que época maravilhosa! O poeta Carlos Drummond de Andrade enalteceu os dias de abril: “Não basta sentir a chegada dos dias lindos. É preciso proclamar!” E eu concordo. O céu de um azul inigualável, a temperatura amena, o ar mais leve — tudo parece nos tocar de forma sutil e encantadora.

    As folhas amareladas dançam ao vento, antes de cair e formar caminhos dourados nas calçadas. Paineiras e jacarandás nos brindam com flores delicadas, as cerejeiras se vestem de tons suaves, e o vento frio no início e no fim do dia nos lembra que a natureza segue seu ciclo, renovando-se.

    Os parques se tornam mais convidativos: pais e filhos passeiam, jovens pedalam, amigas conversam, idosos descansam nos bancos. O outono parece aliviar o peso do cotidiano, trazendo leveza ao nosso olhar sobre a cidade. Até mesmo aqueles de quem se diz que estão no “outono da vida” parecem renascer. A alma se revigora, as janelas se abrem, os sorrisos se tornam mais frequentes.

    E como toda estação tem seus rituais, o outono é tempo de aquecer a casa com sabores que nos trazem conforto e história. Sei bem o que ele provoca em mim: saudades. Mas daquelas boas, que aquecem o coração.

    No inverno, a comida tem um papel quase sagrado na convivência familiar, e o outono é o prenúncio desse tempo acolhedor. Os encontros em casa se tornam mais frequentes, trazendo caldos fumegantes, fondues compartilhados, chocolates quentes e bolos acompanhados de café. Ninguém faz essas delícias só para si — é tempo de reunir-se à mesa, de criar momentos. Tão diferente do churrasco de verão, com sua algazarra de amigos, vizinhos e agregados! O outono pede aconchego.

    Na época dos meus pais, nos juntávamos na cozinha, aquecidos pelo fogão a lenha. As labaredas crepitavam, iluminando os rostos, enquanto esperávamos a “janta” entre histórias e risadas. Minha mãe, carregando sua própria saudade, preparava os pratos típicos do povo guarani, ao qual pertencia. Sopões encorpados, milho cozido, bijou com chá mate… sabores de raízes profundas.

    Lembro-me especialmente de um prato simples e delicioso: carne moída, caldo de feijão, macarrão cabelo de anjo e, por fim, ovos quebrados direto na panela. Comida para dar “sustância”, como diziam os antigos. O outono e o inverno fortaleciam o senso de família, e esses costumes, ainda que transformados pelo tempo, resistem em algumas casas.

    E que bom que resistem! Porque, no fim, o outono sempre nos renova. Seu nascer do sol aquece a alma, suas tardes douradas acalmam, suas noites frescas aconchegam. Como disse o poeta:

    “E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia.”

    Que saibamos sentir essa carícia e deixar o outono nos transformar.

  • Terrores infantis

    Penso que as mais intensas lembranças da infância são marcadas pelo que dá medo. Existem as de aniversário, viagens, reuniões em família, e todas constituem um repertório gratificante que nos faz ter saudades do tempo em que éramos guris. Mas elas não se imprimem na memória com a força dos eventos que nos deixavam o coração em sobressalto.  

    Grande parte deles está ligada aos “fantasmas” da noite e aos tipos conhecidos como “doidos”. Qual a criança que não chegou a tremer sob os lençóis com medo da visão de algum ente sobrenatural? Podia ser a imagem de alguém que morreu ou de uma dessas personagens que povoam as histórias contadas em filmes, gibis ou por pessoas próximas.

    Eu ouvia das empregadas histórias de crianças perseguidas por entidades monstruosas que vinham puni-las em razão de algum malfeito. Essa espécie de pedagogia do horror maltratava como um castigo, e de noite eu me encolhia sob as cobertas com medo de encarar a escuridão. Sentia os pingos de suor escorrerem pela barriga, mas não me atrevia a remover o lençol e ficar exposto às tenebrosas visões. Podia ser a de um vampiro, uma mula decapitada ou uma tal de La Condessa, que saía de noite do túmulo para perseguir crianças desobedientes.  

    Já os “doidos” eram fantasmas concretos, que povoavam as ruas e não precisavam do escuro para nos assustar. Geralmente se tratava de pessoas feias e malvestidas, que associavam a bizarrice da figura a um considerável acervo pornográfico. Os nomes feios, diga-se a bem da justiça, vinham como resposta às provocações que faziam a elas.  

    Tenho vivas as lembranças de alguns desses tipos. Um deles era Leôncio, que costumava ficar sob uma marquise numa das ruas mais famosas da cidade. Ele pedia dinheiro aos passantes e descompunha sem cerimônia os que negavam. “Filho da p…” era das expressões mais leves. Como já o conheciam, ninguém o denunciava. Sua agressividade ficava mesmo no plano das palavras, pois nunca se soube que tivesse feito mal a ninguém.

    Certa vez eu passava pela rua com a minha mãe e o vi dirigir-se a nós. Risonho, desdentado, estendeu a mão me pedindo “um troco” (era assim que ele falava). Na inocência dos meus oito anos, larguei a mão que me segurava e desandei a correr. Depois dessa experiência, evitei de uma vez por todas passar por aquela rua.

    Mas a pior experiência foi com “Baleia”, como era conhecida uma mulher que costumava no fim da tarde passar pela rua onde morávamos. Nada provocava mais a sua ira do que a menção ao cetáceo com que inventaram de apelida-la. Justamente por isso os meninos insistiam na cruel designação, o que a fazia correr atrás deles enquanto aguentasse. Nunca pegou nenhum, e duvido que quisesse mesmo fazer isso.

    Certa vez, ao voltar de uma padaria perto de casa, percebi com o coração aos pulos que ela vinha na minha direção e que iríamos cruzar um com o outro. Mudei de calçada e ela fez o mesmo, atribuindo o meu gesto a uma tentativa de fugir por tê-la em algum momento provocado. Enquanto se aproximava, vociferou com uma voz rouquenha e arquejante: 

     – Diga “Baleia” agora! Diga, se tiver coragem! 

    Corri em pânico para casa e lá cheguei “branco”, conforme disse  minha mãe. Deram-me um copo d´água e buscaram me acalmar enquanto eu tentava explicar o que tinha acontecido.

    Houve outros além de “Baleia” e Leôncio, mas esses dois foram os que mais me impressionaram. Hoje vejo que não eram tão maus assim. A explicitude de suas figuras fazia com que nós de antemão os identificássemos e nos preveníssemos. Ao longo da vida eu me depararia com outros mais perigosos, que sob o disfarce da normalidade nos surpreendem neste mundo hostil e nervoso em que estamos confinados.  

  • Cry me a river

    Se você de repente descobrir que se perdeu de mim, não sofra muito. Ou ao menos faça como eu e tente não sofrer muito. A falta da presença minimamente incomoda e honestamente se não conseguir tudo bem porque eu mesmo nem sei se isso é possível.

    Mas sei que se perder acontece. Lamentavelmente.

    Pode ter sido algum caminho que eu ou você escolhemos. Ou nem isso, fomos apenas jogados nessas direções, opostas ou paralelas mas sem nos cruzarmos. Circunstâncias, azares, ventos, quem sabe. Os gregos acreditavam que as pessoas eram meros joguetes da vontade dos deuses. Pode ser também. Zeus e Hera brigam e nós pagamos a conta. Enfim…

    Se foi você quem escolheu esse caminho diferente ou fui eu, ainda importa mesmo? Talvez seja mais importante saber o que nos motivaria a olhar na direção um do outro. Não um olhar de estranhos mas aquele olhar de olhos que se cruzam e se alinham e aninham no reconhecimento.

    O reencontro dos olhares não é impossível. Não seria como foi um dia porque aquilo que passou, passou. Seria certamente em outros termos. Uma nova receita.

    Com boa vontade mútua para abrir os trabalhos, umas doses de concessões leves e bastante atenção para não abrir feridas. Paciência para regar por cima e pode servir levemente aquecido deixando a temperatura ambiente decidir se esquenta ou esfria.

    No mais, não pode faltar boa vontade em crer que não foi por maldade que os passos tomaram direções diversas levando um para longe do outro. Um par por opção, outro por falta de opção.

    De qualquer forma terá algo de doloroso para os dois se os olhares se cruzarem. Sempre é para quem amou demais – como se houvesse amar de menos ou se amor fosse demais. Mas a gente sobrevive. Vida que segue e vem em ondas.

    Se eu for até você, não sei o que vou encontrar. Mas minha coragem é grande. E sofro calado. Se você vier até mim não vai encontrar a porta trancada. Venha sem medo porque comigo mal algum encontrará.

    Se a porta estiver dura de abrir é porque as dobradiças estão enferrujadas. Nada demais. Normal em porta fechada por muito tempo. Não pode usar força para abri-las. Com um pouco de determinação e alguma paciência elas cedem.

    Mas se vindo do outro lado da porta você escutar “Cry me a river” na voz de Julie London, atenção. Seja paciente e vá dar uma volta. Ou entre e venha escutar junto.

  • Confundir e preencher os olhos!

    Movimentos sociais levam décadas para implantar suas regras e conceitos prodigiosos, que por vezes chegam às raias do lamentável. 

    As atividades culturais se diferem no tempo durante seu processo de maturação, tornando-se belos quadros sociais para serem apreciados ao longo de nossa era. 

    Na política, são anos para estabelecer uma nova ideia, convencer o povo que será a melhor opção de bem-estar, seu, e de sua família, mesmo que essa nova partitura tenha consumido seus dias, como o fascismo, que proporcionou capítulos indesejáveis. 

    Na Itália, em outubro de 1922 ocorreu a “Marcha sobre Roma”, evento considerado o marco zero da revolução fascista. O projeto na época freou o avanço dos partidos, socialista e comunista. A milícia violenta, chamada camisas-negras, ocupou Roma, e Mussolini assumiu na Itália como Primeiro Ministro da era fascista. Por isso não há dúvidas de que esse movimento foi filho da Primeira Guerra Mundial, evento ocorrido bem antes de suas raízes se fincarem nas entranhas da política. O fascismo sempre mobilizou massas e as absorveu perigosamente. 

    Como entendido, levou tempo pra se estabelecer junto ao povo, mesmo após arrastar consigo maldade, tristeza e morte.

    Lentamente movimentos importantes para a sociedade, estabelecem razão de existir e fascínio atraente, mas nunca ocorrem rápidos e rasteiros. 

    As obras do Filósofo, Advogado, Escritor e Intelectual, Sêneca (século I), de forma muito distinta, promissora e sem sangue no chão, dignificaram no tempo o comportamento humano. Sete peças trágicas chegaram a nossa era, Medeia, Fedra, Édipo, e outras tantas se mantém preenchendo de cultura e lazer as novas gerações. Esses eventos foram criados por um homem de bem, e trouxeram reflexões saudáveis sobre nossas vidas. Mesmo exilado, em meio a grandes privações materiais, dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos. Entre eles, os três intitulados Consolationes 

    (“Consolos”), onde expôs os ideais estoicos clássicos de renúncia aos bens materiais, em busca da tranquilidade da alma, mediante o conhecimento e a contemplação. 

    Bem distinto do fascismo que dominou a sociedade através da política, sem medida aos danos avassaladores, desvencilhados de dó. 

    Nem tudo que brilha é ouro, mas pode confundir e preencher os olhos de inocentes e curiosos. Não devemos esperar um resultado saudável apenas por decurso de prazo, vindo de qualquer nova ideia, nascida com diferença e inovação a seu tempo. Nenhuma revolução se faz as pressas, isso não se obtém senão com o tempo, este senhor da verdade.

  • Dois homens bons e generosos

    João Alfredo colhe a cada final de semana as verduras e legumes que semeia. Sua horta é cuidada com esmero, o solo é fértil e o produto de seu trabalho é considerado o melhor do povoado. A barraca que tem na feira é concorrida, todos apreciam sua colheita. Como não tem mulher nem filhos, ele costuma distribuir entre os vizinhos e amigos os vegetais que não vendeu. Todos diziam dele:

    — João Alfredo é um homem bom e generoso e as verduras e legumes que saem de sua horta têm muito boa qualidade.

    Assim, quando vai à padaria comprar pão para o café da tarde, quando passeia pelas ruas do povoado ou quando decide descansar e tomar um copo de vinho no Bar do Massa, João Alfredo é sempre saudado com simpatia por quem o encontra:

    — João, suas verduras e legumes são deliciosos. Sempre frescos e tenros. A cada semana se tornam melhores.

    ***

    Eu também planto e colho verduras e legumes na horta que tenho no quintal de minha casa, mas o meu solo não é tão fértil quanto o de João Alfredo, e por isso a colheita não é tão viçosa. Mesmo assim, é boa para consumo. Na feira, pouca gente frequenta a minha barraca. Também não tenho mulher ou filhos, de maneira que me sinto bem distribuindo entre meus vizinhos e amigos os produtos que sobram. Por causa disso sempre me considerei um homem bom e generoso. Mas quando vou à padaria comprar pão para o café da tarde, quando passeio pelas ruas do povoado ou quando decido descansar e tomar um copo de vinho no Bar do Massa, as pessoas não se mostram simpáticas:

    — Paulo Clemêncio, suas verduras e seus legumes são uma porcaria. Ninguém em casa gosta delas. Acho que nem os porcos gostam.

    Sempre que ouço reações assim fico com um nó na garganta. Mordo meu lábio para disfarçar o desgosto e a vontade de chorar.

    ***

    O tempo passou e todos ficamos mais velhos, inclusive João Alfredo e eu. As verduras e os legumes dele continuaram sendo um sucesso entre as gentes do povoado. As minhas, como sempre, um fracasso. Então, um dia, quando João Alfredo lavrava seu solo fértil e distribuía as sementes e mudas de verduras nos buracos que fazia na terra, eu me aproximei dele por trás e abri sua cabeça com a ponta de uma pedra. João Alfredo caiu e nunca mais se levantou. Com as provas coletadas pela Polícia Civil, um juiz e dois peritos forenses concluíram que João Alfredo tinha tropeçado e batido a cabeça numa pedra. Pobre João Alfredo, estava tão velhinho!

    ***

    Neste fim de semana colhi as verduras e os legumes de minha horta, vendi uma parte na feira e a outra parte distribuí entre os vizinhos e amigos. Depois fui comprar pão para o café da tarde, passeei um pouco pelas ruas e resolvi tomar um copo de vinho no Bar do Massa. Algumas pessoas se aproximaram:

    — Paulo Clemêncio, suas verduras e seus legumes são horríveis, intragáveis. Que saudade do João Alfredo, Deus o tenha!

    ***

    Na semana seguinte joguei veneno para ratos nas verduras e nos legumes que vendi na feira e nas que distribuí entre os vizinhos e amigos. Em poucos dias, grande parte da população morreu. A Polícia Civil investigou e, diante das provas coletadas, um juiz e dois peritos forenses me acusaram de assassinato. Fui condenado a trinta anos e levado à prisão, onde passaria os anos que me restavam de vida. Pensei que não fosse suportar, que morreria de tristeza, mas estava enganado.

    ***

    Estava muito enganado. O diretor do presídio me concedeu um pedacinho de terra ao lado do pátio, para que eu fizesse uma horta e plantasse e colhesse verduras e legumes, atividade que eu sabia executar com esmero. A vida na prisão não tem sido ruim: alimento-me bem, durmo com tranquilidade e ainda cuido da minha horta. Como não tenho a feira para vender nem vizinhos e amigos a quem distribuir meus produtos, compartilho tudo com meus colegas de penitenciária e com os carcereiros.

    Aqui me consideram um preso bom e generoso. Assim, quando passeio pelo pátio, quando descanso num banco para ver cair a tarde ou quando fumo calmamente um cigarro depois do almoço, os companheiros se aproximam:

    — Paulo Clemêncio, suas verduras e legumes são uma verdadeira delícia. Estão melhores a cada semana.

    É quando fecho os olhos e sorrio para mim mesmo, satisfeito e certo de ser um homem bom e generoso.

  • O seleto grupo dos iluminados

    Há poucos dias finalmente descobri o meu lugar no mundo. Depois de vagar entre planaltos e ribanceiras por anos e anos, depois de me notar perdido, ansioso e angustiado, tive, por fim, a revelação. Foi um instante daqueles em que o coração não acelera porque sente que algo tranquilo abrandará para sempre as aflições. E o futuro de repente abre as portas para um andar sossegado, como se a vida até então fosse um longo pesadelo.

    Depois da epifania as cores ficaram mais nítidas, os problemas mais curtos e o sorriso mais largo. O calor, que incomodava meus sovacos suarentos, agora se aprochega tranquilo como um velho amigo. A vida já me parece mais simples e até o meu humor rançoso tem se esvaído devagar.

    O grupo do qual me desvencilhei é composto pela imensa maioria dos seres humanos: os que não sabem o seu lugar e, pior do que isso, não desconfiam qual a sua missão. No entanto, não quero causar alarde. Caso você pertença a essa multidão, não se desespere. Eu mesmo demorei quase quarenta anos para chegar à iluminação. Quem garante que você não será o próximo?

    Agora sou oficialmente da minoria. Na verdade, sempre fui do contra. Multidões me arrepiam e amedrontam desde criança. Jamais me comportei como um “Maria vai com as outras”, como diria minha avó. Sempre tive opinião forte, às vezes burra, mas sempre forte. Tenho pouquíssimos amigos e parto da premissa de que se todos gostam de algo é porque aquilo não presta, sobretudo culturalmente. Logo, se está na moda é uma porcaria e se é unânime, pior ainda.

    Hoje me sinto diferente. A satisfação do dever cumprido é inenarrável. Nunca fiz parte de grupos seletos. Não participo de sociedades secretas, não estou no coro da igreja, não li nem lerei “Café com Deus pai” e não abro a casa para a capelinha da paróquia. Não posto fotos ajudando os necessitados, não dou pitacos estilo coach na internet e não vendo cursos; porém, também me vejo como um homem realizado e iluminado, talvez não em estágio tão evoluído, mas ainda um tanto luzidio, por assim dizer.

    Se minha mãe estivesse aqui, não me furtaria o prazer de ligar para ela no exato momento em que a epifania aconteceu para contar que seu filho, depois de décadas e décadas, alcançou a iluminação e descobriu o seu lugar no mundo. Não sei como o orgulho agiria sobre ela, mas certamente mediria as palavras para não lhe causar algum infortúnio emotivo.

    Desde que a revelação me ocorreu, confesso não pensar em outra coisa, no afã de ocupar logo o meu posto, dia a dia, sorvendo a vida com a mais sincera alegria e a mais pura certeza de que não quero nem devo estar em qualquer outro lugar.

    O garçom, que entende os pormenores dos meus acessos de ansiedade, como todo bom companheiro, assim que me vê, traz logo uma cervejinha gelada para que eu possa realizar a minha imponente missão. O antigo bar na beira de um lago enorme, em que me sento sob a sombra de uma árvore bicentenária, parece funcionar também melhor naquela paisagem com a minha presença. Sinto que precisam de mim. De alguma forma, o bar, a árvore, a sombra, o lago, o céu, as montanhas ao fundo e eu damos sentido ao lugar e criamos ali uma atmosfera singular. Talvez só nós consigamos entender essa energia.

    Somos uma pintura antiga, esquecida por séculos num porão escuro, que enfim ganha os primeiros toques de restauração. Amanhã, com enorme alegria, lá seguirei. E depois de amanhã também, e depois e depois, e depois e depois. Na certeza de que não há desassossego que perdure muito tempo quando estamos no nosso lugar.

  • Poema #15 – EUTANÁSIA

    .

    Sob uma chuva de outubro
    o germe penetrou
    no solo árido de mim,
    onde as emoções se resguardavam.

    Mas o sol e o raciocínio
    dos meses subsequentes
    atrofiaram o germe ávido
    que havia trazido o amor.

    E foram tantos os desencontros
    do clima naquele ano
    que a meteorologia afetiva
    justifica-se culpando a ambos.

    Agora, numa sala de espera
    contígua à do esquecimento,
    resta-nos como única saída
    a eutanásia cúmplice
    do que restou do sonho.

    O Acaso das Manhãs

  • Botafumeiro

    Incensos sempre estiveram presentes na minha casa. Desde que, na juventude, comecei a praticar Yoga, sua fumaça perfumada me encantou e daí para frente fez parte do meu ritual de meditação e recolhimento.

    Passei a acender um incenso para estimular minha criatividade na hora de escrever, desenhar, deixar fluir novas ideias, mas também para afastar os maus fluidos de um lugar que me pareça meio carregado. Escolho cuidadosamente a procedência, a fragrância e o efeito a que se destina, e me entrego ao efeito inebriante que o sândalo, o benjoim ou a mira provocam.

    Mas essa prática sempre me fez lembrar do tempo em que ainda se usava o incenso nas missas de domingo, nas igrejas católicas. Os sacerdotes entravam balançando o turíbulo fumegante de olibano, com o intuito de elevar as orações dos fiéis ao divino. Sua fumaça criava uma sensação de mistério e reverência própria do misticismo da fé.

    Apesar de esse ritual não ser mais praticado com frequência nas igrejas brasileiras, o Botafumeiro, termo que deriva do galego e que significa, literalmente, “arremessador de fumaça”, continua sendo um dos símbolos mais emblemáticos da Catedral de Santiago de Compostela.

    Na minha caminhada pela Galícia, não pude deixar de participar da missa dos peregrinos e me deixar envolver pela fumaça perfumada que o turíbulo espalhava pela nave central e pelas laterais.

    O ambiente era de grande religiosidade, pois antes da missa começar os sacerdotes solicitavam a todos os visitantes não católicos que se retirassem, para os fiéis poderem acompanhar a missa em silêncio, sem fotografias, celulares e comentários — somente os cânticos e o rito em latim ecoavam pela magnífica basílica.

    O Botafumeiro era acionado ao iniciar a liturgia, e se repetia em determinados momentos da cerimônia, envolvendo os presentes numa névoa permanente, que propiciava a introspecção necessária à elevação do espírito e inundava o ambiente de um perfume reconfortante e acolhedor.

    Qual não foi minha surpresa ao descobrir, anos depois, que havia uma “segunda intenção” nesse ritual, muito mais prosaica do que a elevação dos espíritos — livrar o ambiente do odor dos peregrinos que, na idade média, faziam a caminhada em péssimas condições de higiene.

    Dei graças a Deus e ao Botafumeiro, pois pude constatar que, de lá para cá, nada mudou — bendito incenso!

  • Caçadores de eclipses

    Chuvas atrapalham planejamentos. Na realidade, chuvas atrapalham expectativas, e estas, nos frustram.

    [Aqui, chuvas podem se tratar de chuvas. Ou não. Use-a como metáfora, os textos pertencem a quem os lê, no momento da leitura].

    Hoje em dia é simples assistir eventos astronômicos com uma meteorologia ruim; eu, por exemplo, inspirada pela minha irmã, de vez em sempre, me surpreendo a mim mesma com o celular em punho, de noite, da varanda, de uma das janelas, da rua, apontando essa prótese humana para o céu, que pode estar límpido ou encoberto, não importa: lá estou eu girando no meu próprio eixo, tal qual uma lunática. Eis o app Stellarium, e a minha curiosidade pelo posicionamento de estrelas, outros astros e da Lua.

    Na madrugada da quinta para a sexta-feira última, fiz planos para ver a Lua de Sangue. Já com minhas vivências, velas e banhos engatilhados para a sexta-feira à noite, me empolguei com a magnífica poasibilidade de assistir a um momento envergonhado, enraivecido ou enamorado do nosso satélite natural, que teria o ápice de seu fenômeno às 3h26 da madrugada. Eu e muitos conhecidos e desconhecidos, aqui do lado ocidental e acidentalmente noturno da Terra, preparávamos nosso inconsciente para a madrugada em claro — que logo, tornaria-se escura, pela nossa própria sombra sobre a Lua. Mas, em Nova Friburgo, uma chuva torrencial, começou quando nem noite ainda era, minando o planejamento. Planejamento, uma pinoia!, diria minha avó; a tal da expectativa. A Lua vai passar pelo seu processo de eclipse, faça chuva ou passem nuvens. Estamos em março, as águas são certas e fecham o verão. Quem quer, que abrace a chuva e se molhe! Olhe para o céu, tome um banho de Lua. As energias podem até ser potencializadas. Há os que se preparem com telescópios ou cameras semi-profissionais com zoom 42x. Há ainda os que não se animem a sair de seus lençóis e pijamas, e liguem smart TVs, celulares, projetores, computadores ou outros — à exceção do Chrome Cast, que rapidamente instaurou o caos e um burburinho cibernético, com resets da configuracao padrão aqui e acolá, mudança de humores, por sair do ar, assim, sem explicações,dias afora…. em tempos de ansiedade impregnada nas veias, nada pior do que perder uma conexão que se espera onipresente e a nosso bel prazer — de novo, posso não estar me referindo à gadjets ou bandas largas, entenda como bem lhe convir. Por último, há os canais ao vivo no YouTube, com comentários que mais me mortificariam se eu não os acompanhasse no percurso da caça ao eclipse, sobre quatro rodas, suprimentos de café e tapiocas feitos às pressas, um spitz alemão com o focinho voltado para o céu, no meu colo, e um motorista que quase sucumbiu à frustração – e ao sono. Pouco antes das 2h, a chuva parou. Vibra a ligação via WhatsApp no pulso:

    — Alô…
    — Vambora? Anima, se não só em 2039!

    Enquanto todas as opções acima ocorressem por todas as Américas, dois adultos e um cachorro se embasbacavam com a Lua alaranjada que ora estava do lado do motorista, curvas depois do lado do carona. Nuvens e vegetações faziam necessária a presença do Stellarium.

    — Tá ali!

    Sobre a coxa do motorista, a tela do celular mostrava a Lua imensa, suas crateras, e exclamações que faziam a caçada ser mais interessante:

    — Está incrível, pessoal! Noooossa, olhem isso, está incrível! Já já essa nuvem passa, pessoal, por enquanto, façam um PIX de R$5,00 e mandem uma mensagem que respondemos aqui ao vivo.

    Seguimos o rastro da Lua, em busca de um descampado distante das luzes da cidade, quieto e seguro que nos permitisse parar, observar o fenômeno e fazer um lanchinho. Um bairro à esquerda, deixa fluir, lá vamos nós, 5G perdendo força, o 4G o qualquer G. Stellarium no more. Adeus YouTube.

    — Melhor voltar.
    — Vamos perder o ápice se voltarmos.

    De repente, uma pracinha digna de cidade de interior, um campo de futebol desses tomados pelas gramas selvagens, um ponto de ônibus, as casas que dormem. Paramos.

    A Lua.

    Para quem nunca presenciou com os próprios olhos, é difícil descrever; tem sabor de perfume de lavanda, sob o formato de brigadeiro; tem cheiro de um perfume marcante misturado ao odor de um café na madrugada, fumegante para que os olhos se abram. É de um vermelho revigorante. Parece final de copa do mundo, a experiência de se estar a ponto de gritar bem alto “É goooooooool!”. Mas não podemos, todos dormem — só os galos cantaram, cachorros-lobos uivaram e o meu spitz tenta inspirar de uma só tragada o pequeno piso concretado com suas narinas pequeninas. 3h26, o ápice. O mundo pára, por um instante.

    Ainda bem que, apesar de tudo, somos bons em desenvolver tecnologias. E ainda bem que sempre há lunáticos dispostos a vencer o sono, outros que se empenham em manter o planejamento e cachorros que nos fazem superar todas as (im)prováveis frustrações.

  • Admirável mundo novo

    Admirável mundo novo: prédios que desafiam a gravidade, veículos que se movimentam cada vez mais rápidos, produtos e aparelhos eletrônicos que prometem revolucionar a vida de todos nós… E compramos e acreditamos e nos iludimos.

    Admirável mundo novo! Problemas sempre os mesmos. A fome sempre a mesma. A violência sempre afiada. A palavra dos políticos desgastada. O poder e o pudor, desequilibrados e distantes. Caminhos errantes. Mas compramos a ideia. Acreditamos no futuro e nos desiludimos.

    Entre fios e chips e terminais de alta tecnologia, chineses, japoneses e norte-americanos desenvolvem robôs almejando uma cópia fiel do homem. E os cientistas buscam os movimentos precisos, a emoção perfeita, o sorriso certo, o calor medido, o humano. Compramos, acreditamos e nos iludimos.

    Carros andam sozinhos, casas reconhecem seus donos, câmeras espalhadas por todo o lugar. Tudo feito de forma rápida e precisa e direta. Não há tempo a perder porque, afinal, tempo é sempre dinheiro. Não importa o sonho, pela metade ou inteiro…

    Admirável mundo novo: praticidade, estética e velocidade. Precisamos resolver as coisas. As coisas precisam ser belas para nós, assim como nós precisamos ser belos para os outros. Nós e as coisas precisamos ser rápidos. Tudo prático, bonito e rápido.

    Admirável mundo novo! Mendigos e barracos e fuzis e diversos Brasis. O ser ainda humano, cibernético e plastificado, olha, dentro de uma redoma, o novo mundo que inventou. Um mundo cheio de prazeres a preços promocionais, remédios de todas as cores e para todas as dores. O mundo que contempla é de plástico e não há mais água nem cheiro e muito menos verde.

    Mas ainda existem viadutos e criaturas humanas que estão fora da redoma. E ainda há os que choram e que lamentam e que morrem… Ainda há fome e miséria!

    Inexplicável mundo novo!

  • A moda passa, o sacrifício é eterno

    Há poucas décadas era moda fazer plástica no nariz. Um modelo pequeno e parecido com o adotado pelo Michael Jackson ficou popular. Já não se usa mais.

    Agora sobrancelhas grossas estão na moda. Como assim? Adotar sobrancelhas finas, como na época dos filmes mudos, é fácil, mas conseguir pelos onde não há folículos é impossível. No entanto, já estão oferecendo transplantes de sobrancelhas. Caríssimos. Não importa: sempre existe gente interessada em pagar alto para se ajustar ao estilo da vez, mesmo que os objetivos sejam despropositados e os resultados desastrosos.

    A gordura, execrada atualmente, já foi desejada em outras épocas e está ensaiando uma volta. As pessoas fazem dietas loucas tentando enquadrar-se em padrões inatingíveis para o seu biotipo e acabam arruinando a saúde. Até fumar voltou a ficar na moda!

    No início do século, quando as mulheres descobriram o botox, muitas abusaram a ponto de ficarem todas parecidas. Quase tive que etiquetar algumas das minhas conhecidas.

    Tudo bem, Sílvia?

    Sou a Renata.

    Ah, agora que você falou, estou reconhecendo a voz.

    Antes do botox era o silicone. Ambos se aperfeiçoaram, mas veio a harmonização facial. Não são poucos os casos em que o tiro sai pela culatra e a pessoa fica medonha. De vez em quando procedimentos realizados por gente inescrupulosa e sem qualificação fazem uma vítima fatal.

    Tatuagens eram coisa de marinheiro, hoje é difícil achar quem não as ostente. São doloridas, mas quem se importa? Se me contassem há trinta anos que isso aconteceria eu duvidaria. Pois aconteceu. Incrível como as pessoas se submetem a sacrifícios para seguir a moda.

    Não sei se sempre foi assim, mas uma coisa que está na moda há bastante tempo é ser jovem. Ou, no mínimo, parecer jovem. Conheci homens que pintavam o cabelo e mentiam a idade, e mulheres com testas de quinze centímetros que afirmavam nunca ter feito plástica.

    O mito da fonte da juventude vem sendo perseguido pela humanidade sem sucesso e a indústria cosmética tem explorado o assunto com direito a lances inimagináveis. Ganhei uma amostra grátis de um produto carésimo que prometia mundos e fundos sobre rejuvenescimento. Procurando informações mais detalhadas na internet, encontrei um blog em que a autora afirmava ter usado e aprovado o tal artigo, que teria sido muito eficiente na redução do seu bigode chinês. Perfeito, não fosse o detalhe do vídeo ser protagonizado por uma menina de vinte e um anos e, pior, tratando o assunto a sério!! Com que idade será que ela começou a achar que precisava rejuvenescer?

    A moda do vestuário não faz tanto estrago, mas também apronta. Não adianta avisar que saltos de vinte centímetros são um convite a problemas de coluna e a pés torcidos, nem que todo mundo fica bem com isto ou aquilo. Meninas se vestem como viúvas negras, idosos sem-noção se comportam como adolescentes. Sei de uma pessoa cujo apelido é Avó da Barbie, precisa dizer mais? Colocar a estética acima do bom senso é dar um tiro no pé.

  • Prazo de validade

    Desde criança me intrigavam as relações que sobrevivem ao lodo do tempo. Talvez por ter avós e pais separados, a união indissolúvel de duas histórias me comovia profundamente. 

    Na infância, gostava de assistir aos avós de uma amiguinha caminharem pela rua. O andar lento, inseguro de cada um, se amparando na união das mãos enrugadas, nos braços pintados de manchas vermelhas, que depois descobri se chamarem fragilidade capilar, causavam, simultaneamente, uma paz e uma apreensão só ofertadas pela noção de eternidade.  

    Lembro de ressoar no pensamento, em momentos aleatórios, sem nenhuma explicação plausível, o termo “fragilidade capilar”. Por causa disso, toda pessoa que chegava em minha casa, jovem ou não, despertava o meu olhar investigativo na busca daquelas manchas que ficavam por baixo da pele fina. Lá pelas tantas do crescer, minhas pesquisas infantis revelaram a correlação entre aquelas marcas e o envelhecimento. Agora, sim, havia entendido tudo. O corpo dava os sinais do seu desgaste. A corrosão era de dentro pra fora. Mas, ainda assim, eu continuava a achar lindo que o caminho para a finitude fosse em parceria com o ser amado de uma vida inteira.

    Durante anos cultivei esse ideal romântico, mas a recepção dos consultórios médicos e até, mais efetivamente, do Pilates, ultimamente, têm destruído a marretadas minha ilusão. 

    Existem casais, que estão juntos há trinta, cinquenta anos, que não se suportam mais nem por um segundo. É curioso perceber a falta de paciência, as intolerâncias de todo tipo, os safanões, gritos e até xingamentos de canto de boca. As implicâncias, críticas ferozes edesvalorização do parceiro(a) também aparecem de forma acintosa.

    Hoje mesmo presenciei uma cena dessas e me indaguei: há quanto tempo passou a hora deles se separarem? Por que escolheram seguir juntos quando só a desavença os une? Quando foi que deixaram de acreditar na existência de outros caminhos? Como se estabelece o prazo limite para ser feliz? 

    Primeiro, senti uma tristeza rascante. Deve ser horrível viver com alguém pelo medo de morrer só. Em seguida, senti um alívio: quem sabe as brigas e as alfinetadas funcionem como a diversão possível ou, pelo menos, o espaço lícito para depuração das amarguras? É provável que, no exercício da convivência, eles tenham aprendido a se ignorar ou se odiar com amor. Quem sabe se sentem completos, felizes e realizados?

    Agradeci aos meus avós e a meus pais a coragem de lutar por novos rumos. Me orgulhei de mim por não ter me conformado com dias mornos.

    Suspirei fundo e lembrei daquele casal da minha infância. Eles são a prova de que é possível não deixar o amor azedar como feijão fora da geladeira.

    É isso que quero pra mim. Menos que isso não aceito nem com oitenta anos.

  • Quaresma

    Hoje, me pego pensando. Em quê? No tempo, esse estranho tão íntimo de nós. Culpado, amado, detestado — ele simplesmente é. Nunca, em todo esse tempo, me ocupei em entender ou julgar a Quaresma.

    Lembro-me da infância… Meu pai, minha mãe, abuelas, tios e primos, todos paraguaios de origem. Nesse período, a vida ganhava um tom especial. Para nós, crianças, era uma época de brincar com os primos, comer coisas gostosas e ser quase invisíveis para os adultos, ocupados com a Quaresma. Durante quarenta dias, em nossa casa e na de outras famílias, acontecia a “reza”. Alguém puxava, e todos seguiam. Minha lembrança ficou impregnada do sotaque e do ritmo cantado: “Dios te salve, reina, llena de gracia”“En el nombre del Padre, del Hijo y del Espíritu Santo”.

    O ponto alto do dia era a reza em família, com vizinhos e amigos que vinham participar do que já anunciava a chegada da Semana Santa. Minha saudade é longínqua… parece pertencer a outra vida.

    Ainda sou emotiva, arquivo belezas, enfeito lembranças. Mesmo que só eu saiba. A vida tem outro ritmo, as pessoas têm seus próprios interesses, e quase ninguém quer saber das coisas do tempo que não conheceram. Escrevo e me surpreendo. Como assim? Como essas mudanças aconteceram? Se estou aqui rememorando o que vi e vivi, quando e como tudo se transformou? As crianças e adolescentes de hoje terão memórias afetivas? O que estão arquivando como lembranças?

    Ao escrever e me fazer essas perguntas, não pretendo criar polêmica nem impor meus pontos de vista. Apenas organizo minhas ideias, num misto de lembrança, imaginação e invenção. Nesse redemoinho de pensamentos, entre o real e o irreal, descortino meus contentamentos, dilemas e contradições.

    Sei que me arrisco, mas, como já disseram, “se minhas palavras ecoarem em ao menos uma pessoa, respirarei aliviada: não estou só”.

    E seguirei buscando, na vida e na imaginação, o que me preenche a alma. 

    Em tempo: que a Quaresma seja tudo o que seu coração desejar!

  • O real motivo

    A função da publicidade não é apenas vender. É despertar em nós recônditos impulsos, criando necessidades até então inexistentes ou, pelo menos, ignoradas. O comercial age um pouco como a droga, que o indivíduo propenso ao vício despreza enquanto não conhece. Depois de tê-la experimentado, não consegue mais viver sem ela.

    A publicidade também faz registros curiosos e sintomáticos da vida moderna, funcionando como documento antropológico ou retrato psicológico da sociedade atual. Nesses casos, tem muito pouco de invenção. Em vez de se antecipar à realidade, como obra de ficção que é, capta o que está nela disperso.

    Me lembro, a propósito, de um comercial sobre uma marca de carro exibido há algum tempo na TV. Um pai, depois outro e mais outro levam seus filhos ao colégio. Os meninos vão ansiosos, preocupados. Pedem aos velhos que não parem o automóvel na entrada da escola, onde como é natural se agrupa muita gente. Os pais não entendem, desconfiam de que alguma coisa está errada. Supõem então que os filhos temem o julgamento dos colegas por estarem naqueles carros feios, ultrapassados.  

    Não havia nessa mensagem publicitária nada de novo. O comportamento dos garotos ainda é muito comum nos dias que correm. E não só quanto ao carro. Já ouvi de alguns pais que seus filhos se envergonham da casa, da roupa, do computador superado que têm em casa.

    O problema é que, ao documentar esse tipo de reação, o comercial praticamente o endossava. Apresentava como legítimo o ressentimento dos meninos. Mas quem era o verdadeiro culpado por tal ressentimento?     

    Subliminarmente, a peça publicitária dava a entender que o motivo da vergonha dos filhos não eram os automóveis. O motivo eram os pais, que não tinham dinheiro ou discernimento para comprar coisa melhor. Os pais é que os garotos, encolhidos naquelas “carroças” fora de moda, gostariam de esconder dos colegas.

  • Padre no avião

    Tem mais de 20 anos eu estava em um vôo para os Estados Unidos. Ao meu lado estava um padre brasileiro que foi deslocado para a diocese de Chicago.

    Sujeito de conversa agradável e bom de copo. Cada vez que o carrinho de bebidas passava não menos que quatro pequenas garrafas ficavam ali com a gente, duas para cada um, é claro. Nesse ritmo nós dois nos igualamos ao avião e estávamos bem altos.

    Foi nessa hora que o papo ficou mais animado. Lá pelas tantas o padre me disse que na paróquia de onde ele vinha, lá na pontinha do mapa da zona Leste de São Paulo, ele tinha uma abordagem diferente quanto ao casamento.

    O padre disse que quando os moços, nas palavras dele, o procuravam querendo casar ele aconselhava que fossem morar juntos primeiro. Diante dessa revelação questionei-o.

    Perguntei se ele não percebia que estava estimulando a fornicação, o sexo antes do sagrado matrimônio.

    Ao que o padre replicou: meu filho, casamento é um contrato com Deus. Isso não se rompe.

    Fornicação é um mal menor. Se resolve com qualquer penitenciazinha, uma meia dúzia de ave-marias e fica tudo bem.

    Foi difícil não gargalhar naquele vôo.

  • Preconceitos repetidos!

    O que vamos fazer com um mundo devastado depois da pandemia, já que a Organização Mundial da Saúde decretou o fim da emergência sanitária da Covid-19.

    Vamos reconstruir ou renascer nossos sentimentos saudosos por tudo e todos que perdemos?

    O que mais pesa é a decência na busca pelo respeito aos que sobreviveram e são o nosso presente, com frequente marca na construção do futuro, que em breve instante bate na sua porta quase sempre encostada.

    Preconceito e arrogância podem matar lentamente, e ainda não temos vacina contra isso para colocar no braço, somente na cabeça teimosa, que mantém a batida das palavras maldosas disponíveis num cardápio de ofertas.

    A Gordofobia, o machismo, o abuso sexual, a pedofilia, a transfobia, a homofobia, o feminicídio, e se me falhou a memória em citar outra psicopatia cotidiana não foi proposital ou preconceituosa, talvez eu não esteja preparado para colaborar da melhor forma com a lista dos que fazem parte desse grupo de iguais na dor. 

    Por vezes ouço olhos me fitando com suas lástimas em viver com medo da próxima experiência ruim. 

    Não me ausento na busca de argumentos para defender ou abrigar os que pisam inseguros na mesma calçada comum a todos, porém, recortada pelo comentário fiel à injustiça social. 

    Temo que seja tarde ou em vão meus esforços devido ao gigantismo frequente da luta descabida, descrita diariamente pelos doídos. 

    Parece que necessitamos recomeçar frequentemente esse tema, como a cultura no Brasil que sempre volta para o final da fila, porque sua sina é a adversidade permanente, e na reconstrução de si, retorna trilhar os mesmos caminhos de outrora.

    Cornel West, físico, escritor, crítico social, defensor dos direitos humanos, atribui a maioria dos problemas da comunidade negra à angústia existencial derivada da experiência vivida de feridas ontológicas e cicatrizes emocionais profundas, infligidas ao longo de muitas gerações. 

    O racismo faz parte da lista mencionada, e necessita ser banido de nossa sociedade porque permanece causando dor e lágrimas injustas e descabidas. 

    Os estímulos de curto prazo e a euforia instantânea superam as relações sólidas e a essência da comunidade. 

    Movimentos partidos de cidadãos conscientes têm mais força social, que eventos avulsos não recorrentes com base fragilizada. 

    Nessa validação densa de mudança no comportamento estamos nós, que devemos esse compromisso social aos nossos iguais.

  • A trama

    Assim que chega a manhã, as esposas dos pescadores se dirigem às docas e ali se sentam, os pés dentro d’água. Todas trazem linhas e agulhas de tamanhos variados e se dedicam à tarefa de fechar os buracos das redes que seus maridos utilizam no trabalho. Cantarolam enquanto cosem, e cosem com diligência e sem distração: ao entardecer, seus homens precisarão das redes prontas antes de saírem para o mar em busca do alimento e do sustento de todos os dias.

    Em determinados pontos da trama, que escolhem cuidadosamente tal qual um segredo bem urdido, elas substituem a linha de tecer por fios dos próprios cabelos, arrancados da cabeça num puxão seco e dolorido, e prosseguem a costura, embaladas pela cantoria que sai das dezenas de bocas em uníssono. Dessa maneira, um pequeno pedaço de cada uma — seus cabelos — acompanha o marido quando o barco em que ele está toma a direção do desconhecido, noite e mar adentro.

    Na manhã seguinte, repetem o ritual da costura e da cantilena e, quando necessário, em conjunto, solidárias, tratam de decapitar as sereias que, por atrevidas e insolentes, sem serem convidadas, aparecem na rede de vez em quando, no meio de centenas de milhares de sardinhas e outros peixes maiores. Deram-se mal, as tais, se tinham por objetivo alcançar a terra firme para seduzir homens que têm dona.

  • POEMA #01 – QUARENTENA – QUARESMA – QUARESMEIRA

    Cinco anos depois da pandemia ser anunciada, revisito este texto que nasceu em meio ao isolamento — ecos de um tempo que ainda ressoa.

    O horizonte anunciou um desafio
    Na época que traria
    Tanta luz e liberdade
    Chegaram tempos de trevas
    Fomos convidados ao exílio
    Um inimigo invisível
    Uma tal gripezinha
    Que surgia na China
    E, de repente, fez vítima,
    Seu José da esquina
    E com o perigo iminente

    Me isolei
    Nos tempos das quaresmeiras
    Roxas como um suplício
    Pré-milagre de Cristo

    Me isolei
    Ou melhor, nos isolamos
    Em um paraíso distante
    Em um refúgio externo
    Ou no silêncio que guardo

    Me isolei
    Perdi a vaidade
    Tentei assumir os brancos
    Quase raspei os cabelos
    Mas recobrei a sanidade

    Me isolei
    Adotei duas gatas
    Meu amor surtou
    Elas ronronaram
    Ele se apaixonou

    Me isolei
    Quis morrer
    Quis sumir
    Quis viver
    Ressurgi

    Me isolei
    Perdi um tio
    Perdi uma prima
    Chorei
    Como você também chorou

    Me isolei
    Conversei com amigos
    Voltei a falar com meus primos
    Me senti parte de algo
    Dentro do meu vazio

    Me isolei
    Fiz máscaras de beleza
    Pintei as unhas
    Emagreci
    Engordei

    Me isolei
    Vi ministros humilhados
    Nossos poderes desnudos
    Ouvi o que não queria
    Falaram o que não devia

    Me isolei
    Acordei de maneiras várias
    TPM´s, alegrias
    Senti saudades
    Do que não tinha

    Me isolei
    Li tantos livros
    Escrevi quase diários
    Poemas curtos
    Contos que criei

    Me isolei
    Descobri mais de mim
    De você
    Ou até do outro
    Já nem sei

    Me isolei
    Fui amiga do sol
    Companheira na chuva
    Me perdi
    Me encontrei

  • #14 – A LUA ESCURA

    .

    sabe,
    há um momento
    em que a lua
    fica escura.

    é quando,
    a escuridão maior
    vinda dos montes
    cobre a Rua Fácil.

    e tudo,
    vira um só quadro
    negro, uma lousa
    fria que antecede
    a morte.

    Da Essencialidade da Água

  • Mulheres são de Vênus

    Mayra abre a porta de casa afobada. Sabia do compromisso importante que teriam para o jantar, mas acabou se atrasando.

    Ao entrar, escuta um barulho no quarto e relaxa — Solano ainda deve estar se arrumando. Subiu as escadas já avisando:
    — Só demoro cinco minutos, amor!
    — Cinco minutos mesmo? Grita, lá de cima, o marido. — Já estou de saída.

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    “Demoro 5 minutos” — A maioria das mulheres demora, em média, 40 minutos para se arrumar antes de sair de casa. Esta frase significa que, provavelmente, ainda nem escolheu que roupa vai vestir.
    “Já estou de saída” — A maioria dos homens reage com essa frase. Significa que, provavelmente, eles ainda nem entraram no banho.

    Mayra entra no banheiro e logo pede espaço, para colocar o que vai usar: 2 tipos diferentes de Xampu, secador de cabelo, escova circular, mousse modeladora, spray, base, blush, rímel… e assim vai espalhando seus mil e um pertences por cima da bandada reservada a Solano que, timidamente, havia colocado seus cinco objetos de uso pessoal: escova de dentes e creme dental, barbeador, loção, desodorante e uma escova de cabelo.
    — Amor, dá pra encostar suas coisinhas mais pra lá? Não está vendo que preciso de mais espaço?
    — Minha linda, precisa mesmo de tudo isso?
    Mayra se limita a dar um bufo silencioso. Ele ignora e continua fazendo a barba.

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Duas regrinhas:
    A quantidade de objetos no banheiro é proporcional às necessidades de cada um e é inquestionável.
    As mulheres são mestres da linguagem não verbal — um bufo vale mais que mil palavras.
    Os homens nem sempre entendem esses sinais.

    Banho tomado, ela inicia o processo complexo de secagem do cabelo, enquanto aproveita para conversar com o marido sobre o grau de formalidade do jantar a que foram convidados e o que ele acha que ficaria melhor ela vestir. Não escuta nenhuma resposta, então insiste:
    — Solano, tá me escutando? Te fiz uma pergunta… (Aproveita para cuspir a pasta de dentes e mandar um oi pelo WhatsApp para a faxineira usando a mão livre.)
    — Oi? Amor, não vê que estou tentando dar o nó na gravata? Agora não dá!

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Os homens só fazem uma coisa de cada vez. Sei que é difícil entender isso, mas é verdade.
    As mulheres fazem várias coisas ao mesmo tempo.

    Mayra volta ao tema do traje para o jantar. Três opções em cima da cama, Solano já sentado numa cadeira, com a perna tremelicando de impaciência. Ela havia selecionado versões parecidas, mas em tons que iam do branco ao creme.
    — Que sê acha? Entre essas cores, o que combina mais com o evento de hoje? Qual delas dá um ar mais sofisticado?
    — Solano: Cores? Mas os vestidos não são todos brancos? Talvez seja melhor usar um vermelho, já que quer ir mais chamativa.
    — Desistoooo! Você nem olhou direito, nem entendeu a pergunta, não está vendo que as cores são diferentes?

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Há coisas que só as mulheres percebem.
    A diferença entre as cores branco, creme, bege e branco-pérola; ou entre tons rosa de batom.

    Finalmente prontos, Solano faz a pergunta fatal:
    — Vamos de carro ou chamamos um Uber?
    — Mayra: Você que sabe…
    — Então vamos de carro, é mais confortável.
    — DE UBER, criatura!

    GLFM (Guia de linguagem F/M)
    Além de erro de interpretação do “você que sabe”, faltou lembrar que a última palavra é sempre da mulher. Qualquer coisa que um homem disser ao final de uma discussão já é o início de outra.

    SALVE O DIA INTERNACIONAL DA MULHER!!!

  • #08 – Ofício

    E todo verso que faço
    Um pedaço de mim está e fica e se vê
    Um outro ninguém sabe, um laço
    que não se sabe onde fica e nenhuma vista lê

    E toda estrofe que nasce
    Meus sonhos e verdades lá estão
    Num outro canto, outras verdades
    No esquecimento ficarão

    Quando o poema, inteiro, surge diante de mim
    É meu o rosto e é meu o nome
    Mas é um outro que não sou eu
    Não sei se isso é o começo ou o fim…

    E então me refaço e me reescrevo
    Junto ou em pedaços o tempo inteiro
    Sou e não sou, tenho ou não tenho
    É este o poeta e o seu ofício primeiro

  • Dentro de uma bolsa de pano, tesouras, café e o bom e velho analógico

    Encontrei dona Selma despretensiosamente no refúgio barulhentomde um salão de beleza. Ela tingia os cabelos, eu aguardava a salvação para a franja que cortei – no melhor estilo DIY, “faça você mesmo”, ignorando minha autocrítica, que me advertira, pontuando experiências prévias, o desastre iminente. Há forças invisíveis que nos impulsionam a mudanças, aquela necessidade feminina de algo maior que nós mesmas – talvez sejamos vítimas de hormônios, mártires mensais da TPM.

    Outra cliente irrompeu no salão, óculos escuros e lenço na cabeça – não era só moda, mas uma tentativa elegante de encobrir o mesmíssimo erro que o meu. Franjas… Instantaneamente, um silencioso elo de solidariedade se estabeleceu entre nós.

    Enquanto aguardávamos, Dona Selma inclinava-se no lavatório, reclamando da temperatura da água, um pouco séria demais. Eu preocupada com a franja, a garota do lenço, na certa, também – recusava-se a retirar o acessório até que fosse chegada a sua vez. Dona Selma, indiferente aos dramas capilares, introduziu o assunto do aumento do preço das coisas. Todas nós, com exceção momentânea dela, por estar no lavatório, tomávamos café em xícaras fumegantes, o suprassumo do luxo – ostentávamos, mais do que podíamos perceber.

    — a carne de boi está um absurdo de cara…

    — mas você viu o preço das hortaliças?

    — é esse calor, garota! Imagina, daqui a pouco a água também vai estar impossível de se comprar..

    — leite, açúcar…

    — e o café?

    — nem me falem, sou movida a café…

    [Todas, em uma espécie de ritual inconsciente, levamos as xícaras aos lábios, ao mesmo tempo].

    Para dissipar o clima, Simone, amiga e cabeleireira, chamou a próxima cliente para a escova: uma mulher com os cabelos molhados envolvidos em uma toalha branca.

    — Mas, e a Dona Selma?

    — Selminha traz seu próprio secador de casa! O dela não tem igual!

    — eu mesma seco os meus cabelos, pode se sentar aí, por favor – e dizendo isso, levantou-se do lavatório, abriu a bolsa e, após alguns instantes de mãos inquietas, tirou um modelo compacto, preto e bastante antigo. Uma relíquia, na certa, ainda em ótimo funcionamento. Fiquei fascinada. Ela me entregou o aparelho, com orgulho:

    — Este secador foi apenas uma vez para o conserto. No Catarcione, que consertava tudo para durar. Na época, eu viajei e me esqueci de trocar a voltagem… fez um barulho diferente, um cheiro de queimado e
    desliguei na hora. Não virara a chavinha! Não era comum os hotéis terem secadores, hoje é normal. Eu carregava até um ferro de passar roupas. Elétrico.

    — E ainda funciona perfeitamente, uau! É incrivel. Hoje nada mais é feito para durar… – eu completei, admirada. Artefatos antigos, tecnologia analógica -aquela a qual as gerações mais recentes se referem com a ideia de mundo –, me atraem, verdadeiramente. Sinto-os como queridos desbravadores no campo da criatividade.

    — Hoje tudo é descartável. Mas tem que ser, filha. A população está crescendo, os velhos continuam aí.. tem que ter emprego para todo mundo. E dizem que as empresas estão preferindo os idosos aos jovens, olhe bem, porque nós não temos problema em trabalhar fim de semana… também porque não ficamos no celular o tempo todo. É, filha. Está tudo invertido. Igual a essa história de pix, cartão… ninguém nem tem mais troco nas lojas, em dinheiro. Mas, está certo. Eu continuo com meu secador que só foi para
    o conserto uma vez. Olha aqui a etiqueta do número – e eu até coloquei o meu nome, olha só.

    Havia algo de paradoxalmente cativante naquela mulher: de uma geração diferente da minha – a minha que já sofre para se encaixar e entender essa loucura de mundo atual – em prol do descartável. Um discurso empático, humano, aceitando a realidade mutável, embora não abrindo mão das suas raízes e convicções, a visão de um mundo em que as pessoas consertavam o que tinham. E isso não é [somente] sobre secadores ou eletroeletrônicos. Conversamos um pouco mais antes de ela ir secar seus próprios
    cabelos no banheiro.

    Minha vez de me deitar ao lavatório. Vejo Dona Selma ajeitar os últimos fios pelo seu reflexo no espelho, através da porta entreaberta. Me sorri. Em seguida, ergue sua bolsa simples, de pano, e diz, a alta voz:

    — Para carregar coisas boas. Principalmente dinheiro, mas deste, tem pouco – e sorrindo para todas nós, pegando a sua xícara de café. Um gole, um sorriso. Olha ao redor, todas entretidas com seus celulares,
    principalmente minha companheira de más decisões. Pousa os olhos sobre mim, um olhar que atravessava os anos.

    — Estou conversando com a Ana… você é igual a esposa do meu neto. Ela é uma gracinha.

    — Que honra, Dona Selma! Obrigada, ela deve ser uma pessoa especial…

    — Especialíssima! Um doce de criatura! E , obviamente, ela também é ruiva… – o olhar torna-se maroto com uma piscadela.

    [Rimos todas].

    No fim, nada como ajeitar os cabelos, tomar um café e compartilhar palavras soltas que, de tão reais, grudam na memória e permanecem em nós. O mundo pode se tornar cada vez mais efêmero, cada vez mais mediado por interfaces… mas há instantes — singelos, fugazes e imortais — em que secadores analógicos resistem à obsolescência.

  • Dia Internacional das Mulheres

    Caras amigas, manas, iguais…

    Temos um dia.

    Sim, um dia dedicado a nós. Num mundo dominado pelos homens, isso não é pouco!

    Pouco é o quão precária ainda é nossa rede de apoio. Pouco são os que nos valorizam para ocupar lugares de liderança, chefia, comando. Pouco são os que reconhecem que homens e mulheres merecem o mesmo espaço de fala, de presença, de decisão na vida.

    No entanto, eu me aproprio da homenagem e da data: 8 de março.

    Não faço fila com quem acha que nada temos a festejar. Celebro com as mulheres da minha família, da minha vida acadêmica, do meu trabalho e com todas aquelas com quem divido esta grandiosidade que é a vida.

    Acredito que aprendemos a viver, sobreviver e sobressair neste mundo ainda tão machista.

    Nós, mulheres, temos a sabedoria de aquietar a mente, cultivar o silêncio, exercer o amor próprio.

    Uma pequena pausa — minutos, dias, anos, não importa… Logo renascemos,

    prontas para acreditar, nos reinventar, empreender.

    E para comemorar nosso dia, nada como esta frase de Clarice Lispector:

    “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

  • Quanto custa vencer?

    Quem desfila em escola de samba ou torce por uma, sabe a tensão que é aguardar o momento da apuração na Quarta-Feira de Cinzas. 

    Quem não é folião, mas já aguardou um resultado importante, seja de concurso, campeonato, teste de gravidez ou habilitação para dirigir, entende bem a agonia que me refiro:  uma espécie de cócegas misturada a uma comichão intensa, seguido de um aperto no estômago, a repercutir numa certa bambeira nas pernas e um escorrer de suor no trajeto das costas. O pensamento também se envolve nesse parangolé: a cada 15 minutos, furando a fila de outros pensamentos, surge: será que  venceremos? Será que o meu melhor foi suficiente? 

    Talvez o remédio para essa agonia seja pensar no trabalho realizado, na entrega ao longo dos meses, no vivido durante o percurso. Mas, no final das contas, o resultado é sempre soberano, ainda que nem sempre seja justo ou corresponda a realidade.

    Somos reféns da validação dos números, do reconhecimento do outro, da aprovação dos grupos. Vítimas de uma necessidade visceral de ser, a todo instante, muito mais do que somos. E por quê? 

    A maldição é tamanha!

    Quem nunca sentiu o desconforto de viver no perímetro do próprio corpo, feito quem passa o dia num sapato que aperta o calo ou arranca a pele do calcanhar? 

    Essa é a única crítica que faço ao Criador: deveríamos nascer com um dom nato para nos amarmos profundamente; e ainda mais intensamente quando diante de demandas e expectativas contrárias à expressão genuína de quem somos na íntegra. Assim, mais do que viver em estado de tensão/avaliação, aguardando o boletim social, a aprovação final, viveríamos na tranquilidade de um lar interior sereno, com uma compaixão sincera pelos infelizes que não fossem capazes de nos aceitar in natura. Mas a competição, a inveja e a mania de perfeição parecem ser o que há de mais resistente e duradouro no DNA da humanidade. Que pena!

    Volta o desassossego: será que a Imperatriz vai vencer?  Seremos campeões?

    Ah, como desejo sentir essa alegria…

    Se não acontecer, que diferença faz?  Não foi tempo perdido, foi tempo vivido, suado amado, crescido. Continuará sendo minha rainha, e no próximo carnaval, novamente, estarei lá.

    Já é hora de entender que frustrar-se faz parte do que chamamos existência. É decepção, mas, não é destruição ou desilusão. É possibilidade de recomeço, reinvenção, retomada.

    Feito purpurina, brincando no ar ou caída no chão, é brilho que não deixa de brilhar.

    Ah, como quero sentir a grandeza de ser feliz por ter vivido mais do que por ter vencido.

    Sei que você, leitor, quando encontrar esse texto, que será publicado no sábado, o resultado já será conhecido, o futuro de agora será passado, mas eu precisava dividir minha angústia e minha promessa com alguém de minha confiança.

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