Crônicas Cariocas

  • Sobre partir

    Hoje eu pretendia escrever sobre o poder que os enfeites natalinos têm de me levar de volta ao Papai Noel da minha infância, a maionese da minha avó e ao cheiro de família daqueles dias. Enquanto refletia sobre essas coisas, esbarrei com uma matéria na internet (certifiquei sua veracidade) que me catapultou para o agora de forma assustadora: um estudo chinês conseguiu a proeza de fazer um pequeno robô, chamado Er Bai, convencer um grupo de robôs maiores a abandonar seus postos de trabalho no museu e voltar para casa. Para isso, Er Bai se aproximou deles e indagou se estavam fazendo hora extra. Um dos robôs respondeu que nunca havia saído do trabalho. Ele, então, perguntou se eles iriam para casa. Diante da negativa, Er bai convidou-os a ir para casa com ele, incentivando-os a fugir do ambiente profissional. Para surpresa de todos, os robôs-trabalhadores aceitaram e seguiram os passos do minúsculo robô em direção à porta.

    A empresa responsável pelo experimento não esclareceu os objetivos do estudo, mas mostrou-se intrigada com o fato de que Er Bai conseguiu acessar o protocolo operacional dos outros companheiros robóticos e convencê-los a aderirem ao “movimento de greve”.

    Não sei para vocês, mas esse tipo de situação me gera um misto de terror e perplexidade. Não só isso. Assumo ter me encantado pela rapidez com que os robôs responderam à percepção da exploração da sua força de trabalho. Sem medo de magoar o chefe, ser despedido ou criticado pelos familiares, por não suportar a pressão. Eles apenas entenderam o abuso e deixaram tudo para trás. 

    Acho que o medo é mesmo um divisor de águas, um criador de muros, um ladrão de vivências, o irmão escroto e invejoso da coragem. 


  • Três passarinhos

    Três passarinhos vieram me ver um dia desses. Se penduraram na rede de proteção da minha janela e me chamaram. Parei o que estava fazendo e fique a observa-los.

    Piavam muito. Em princípio achei que era só animação matinal mas depois reparei que eles giravam o corpo e ficavam pendurados na rede do lado de dentro do meu quarto. Fiquei com receio que voassem por dentro do apartamento. Mas isso não aconteceu.

    Com o tempo parado em função do piar deles imaginei o que queriam comigo. Comida de passarinho não tem aqui em casa. Nem nada de maior interesse para eles. Talvez viessem me trazer um recado de alguém. Um recado longo porque precisou ser piado por três passarinhos ao invés de um.

    O que seria? Uma mensagem de alerta? Uma lembrança boa? Um canto em louvor a liberdade? Uma anedota que não compreendi?

    Ou simplesmente me fizeram a cortesia de interromper meu dia, me fazendo deixar por uns instantes a rotina na selva do trabalho e trazendo essa doçura selvagem que só a mãe-natureza tem.

    É, deve ter sido isso. Me devolveram o lirismo que estava anestesiado pelo trabalho.

    Puseram poesia em um dia qualquer que com seus pios insistentes deixou de ser mais um.

    Voltem. Serão sempre bem vindos.


  • Hipercorreção – o muito “certo” que dá errado

    A hipercorreção é o exagero com que algumas pessoas procuram falar ou escrever “certo”. No intuito de mostrar que conhecem a língua, elas escolhem palavras e construções gramaticais que acabam soando ridículas ou pernósticas. O hipercorretor tem a falsa ideia de que usar bem o idioma é torná-lo “difícil”, quando não incompreensível.  

    Não são poucos os que pensam assim. Certa vez ouvi uma senhora gabar as qualidades de determinado político com esta curiosa avaliação: “Ele fala tão bem, mas tão bem, que a gente não entende nada”. Seria o caso de perguntar o que ela entendia por “falar bem”. Se a principal virtude de um texto é a clareza, e o político não se fazia compreender, evidentemente ele falava mal.

    As hipercorreções são uma espécie de recurso de estilo com o sinal trocado; como chamam a atenção pelo que têm de caricato e inexpressivo, denotam a pouca habilidade com que seus autores manejam a língua. E por envolverem tanto transgressões normativas quanto impropriedades semânticas, tendem a nivelar a ignorância do idioma à falta de senso ao praticá-lo. Ou seja: mesmo quem tem alguma informação linguística pode vir a usá-las, achando que com isso obterá respeito e admiração.  

    É variado o estoque dessas também chamadas ultracorreções. Comumente consistem no acréscimo de fonemas desnecessários, como em “purer”, “caragueijo”, “prazeiroso”; no uso de particípios que tendem a dificultar a comunicação pela homofonia com outras formas dos verbos, como “trago” e “chego” no lugar de “trazido” e “chegado” (imaginem alguém dizer: “Ainda chego aonde ninguém tinha chego”!); ou na preferência por vocábulos pretensamente sofisticados em vez de outros mais simples (“genitor” em substituição a “pai”, “nubentes” em vez de noivos, “cônjuge” no lugar de marido ou mulher).

    A propósito deste último exemplo, um pequeno chiste tirado de Rubem Braga. Criticando o preciosismo presente em certas escolhas vocabulares, o Sabiá da Crônica escreveu: no dia em que a mulher descobre que seu marido é também seu cônjuge, coitado dele!

    Outros casos comuns são o uso de “o mesmo” e flexões como pronomes pessoais e a pluralização do verbo “tratar(-se)”:Esperei a diretora, mas não consegui falar com ‘a mesma’”; “’Tratam-se’ de indivíduos que não têm respeito pelos outros”. Melhor português é dizer: não consegui falar “com ela” e “trata-se” de indivíduos, já que nesse caso há indeterminação do sujeito e o verbo não se flexiona no plural.  

    Uma hipercorreção sintática frequente, que repercute na coesão do texto, liga-se ao uso do pronome relativo seguido de pronome oblíquo. É quando há uma troca nos referentes dos citados pronomes, como por exemplo na frase: “A garota foi à diretoria denunciar as amigas que ‘as destratou’”.  O pronome relativo “que” retoma “as amigas” e deve, então, levar o verbo para o plural; já o pronome oblíquo “as”, que retoma a denunciante, deve ficar no singular. A troca do correto “a destrataram” por “as destratou” compromete a clareza textual.

    Outro caso de hipercorreção ligado ao pronome relativo é repetir, por meio de uma forma oblíqua, um termo já por ele expresso. Por exemplo: “Essas foram as palavras que o político “as” disse no fim do discurso”. Tem-se aí um pleonasmo vicioso; se o “que” se refere a “palavras”, não há necessidade de repetir esse vocábulo por meio do pronome “as”.

    Sempre que penso em hipercorreção me lembro do Zé, um amigo que tive na adolescência. Conhecemo-nos numa pelada de praia. Ele era um humilde dono de barraca e pretendia crescer na vida. Seu modo de demonstrar isso, e já parecer importante, era mostrar que falava bem o português. Tão “bem”, que a gente tinha dificuldade de reconhecer em seu discurso a nossa língua.

    Certa vez, para se justificar de um equívoco, ele me disse: “Desculpe, foi um ‘lápissus’ involuntário.” Soaria mais natural (embora não se evitasse o pleonasmo), se tivesse falado de um “engano” involuntário. Mas para ele essa palavra era rasteira; preferia coisa mais sofisticada.

    Um dia, cansado do futebol, pediu licença para sair de campo alegando que precisava de um “ar lento”. Ouvira a palavra “alento”, que até se ajustava ao contexto, mas ela lhe parecia pobre por não conter explicitamente o termo “ar”. O curioso é que havia uma lógica nessa hipercorreção. Se ele estava de fôlego curto, a “lentidão respiratória” nesses momentos de descanso lhe faria bem.

    Zé não tomava um refrigerante, e sim um “refrigério”. Não esperava o ônibus, mas a “condução”. Uma vez me falou que gostava de manga “deste a mais terna infância” (queria dizer, na verdade, “desde a mais tenra infância”!). Mas a melhor dele ocorreu quando me chamou para comer um camarão em sua barraca. Terminado o almoço, levantou-se muito formal e pediu: “Licença, que eu vou lavar as mões”.


  • E se?

    Há uma palavra em coreano “in-yun”, que quer dizer providência ou destino. Ela se refere especificamente a relacionamentos entre pessoas, que talvez venha do budismo e da reencarnação.

    O in-yun acontece até quando você passa por alguém na rua e suas roupas esbarram sem querer, isso significa que alguma coisa aconteceu entre vocês em vidas passadas. Se duas pessoas se casam dizem que é porque houve 8 mil camadas de in-yun, ou seja, mais de 8 mil vidas envolvidas nessa dupla.

    Podemos ter tido influência de um rei ou de uma plebeia da renascença, também talvez de um indígena migrante asiático do povo da cultura clóvis. É de se encher de orgulho ter um DNA vasto culturalmente com ‘nuances’ de miscigenação quase, inimagináveis, porém, presente na formação de cada personalidade que cultivamos em busca de um bom relacionamento.

    É curioso pensar que possuímos conexões especiais com cada pessoa que cruza em nossas jornadas.

    Mas aí surge o peso do “E se?”. Se mudamos o nosso destino, existe como fugir do que, teoricamente, está traçado em nosso futuro?

    Na realidade, somos compostos por diversas versões de nós mesmos – sejam boas ou ruins, maduras ou não, inocentes ou complexas. Cada minuto nos constrói até o presente, e claro que o livre arbítrio existe e nos faz sentirmos vivos, mas nunca podemos esquecer completamente quem somos.

    O filme “Vidas Passadas” relata com qualidade a existência do in-yun entre um jovem casal que manteve acesa a chama da saudade e do amor, e conta a história de enlace espiritual dos dois por muitos anos, demonstrando que algumas travessias podem levar muito tempo. O filme cria um mundo adulto onde o que seus personagens poderiam fazer já foi feito, em que todos os sujeitos dramáticos já sabem muito bem “onde foram parar, e onde deveriam estar”. É um acerto de contas entre o passado e o presente.

    A vida quer da gente é coragem, e só há uma maneira de ser lembrado pelo que realizamos, é dentro dos outros, se para você isso tudo faz sentido, fique atento em como você pretende deixar sua marca, a vida é muito curta para ser pequena.


  • A poeira branca

    O professor mandou que eu entregasse um bilhete pra minha mãe. Antes li o que estava escrito: dizia que precisava falar com ela porque eu estava com as notas baixas, não sabia a lição, estava com dificuldade para aprender e andava muito distraído. Deixei o papelzinho sobre o criado-mudo, perto do copo de leite que eu tinha posto lá de manhã. Ela não bebeu. Olhei pra minha mãe jogada na cama, o cabelo sem lavar e o rosto amarelado, e pensei em quanto tempo ela ainda ficaria desse jeito.

    Esquentei no micro-ondas a lasanha congelada que comprei no supermercado e comi a metade. Coloquei a outra metade ao lado do copo de leite, mas eu sabia que ela não iria comer.

    Minha mãe segue igual, com os olhos vermelhos, que olham sem ver, e com o cabelo, que não brilha mais, esparramado em cima do travesseiro. O quarto tem cheiro de suor. Disse que iria abrir a janela para entrar ar fresco, ela gritou que não, não queria, que deixasse como estava. Que era melhor não ver o sol. Que, se não visse o sol, seria como se o tempo não tivesse passado e tudo estivesse como antes. Não achei isso certo.

    Eu sei que os dias passam, vejo no calendário, vejo quando saio de manhã pra ir à escola, vejo as pessoas na rua. Então eu sei que o tempo não para nunca e um dia sempre vem depois do outro. Eu vejo que a máquina de lavar tá cheia de roupa suja e que na pia não cabe mais nem um prato, e por isso eu sei que o tempo passou e não aconteceu nada. Mas a minha maior certeza dessa passagem é quando percebo a tristeza que tá em cima dos móveis. A tristeza é uma poeira branca que dança no ar e se deita sobre qualquer superfície. Tá nas paredes da casa, nos lustres e nas cortinas. No começo achei divertido, eu podia escrever sobre o tampo da mesa com a ponta do dedo, minha mãe tá triste, mas, no dia seguinte, não se podia ler as palavras escritas porque havia mais tristeza em cima delas, quer dizer, mais poeira.

    Não me lembro do último dia que minha mãe fez comida, que me ajudou a fazer os deveres, que conversou comigo ou que vimos juntos um filme na televisão à tarde, esperando meu pai chegar do trabalho. Desde que ele foi viajar com aquela colega do escritório ela só fica deitada, dormindo ou olhando pro teto sem falar nada. O professor falou que tiro notas baixas porque eu me distraio muito na sala de aula. É que não consigo deixar de pensar que um dia essa poeira branca vai cobrir a casa inteira, vai cobrir minha mãe deitada na cama e vai me cobrir também. E, quando meu pai chegar da viagem, a tristeza vai ser tanta e vai estar por todo lado, cobrindo tudo, que ele não poderá ler volta, pai que escrevi ontem com o dedo na tela escura da televisão desligada.

  • A fronteira entre pena e amor por um cão

    Entre sentir pena e amar um cão há uma tênue linha que define a profundidade da relação que temos com eles. Sentir pena muitas vezes nasce da percepção de vulnerabilidade do animal — o olhar triste, a situação de abandono ou a incapacidade física. É uma emoção que nos impulsiona a agir para aliviar o sofrimento, mas que, sozinha, não fortalece a confiança mútua.

    A pena excessiva por um cão é como colocar um véu sobre os olhos: faz-nos enxergar a fraqueza antes da força, a dependência antes da capacidade e a carência antes da autonomia. É um sentimento que brota da compaixão, da vontade visceral de zelar, de amparar quem parece não ter como se defender. Porém, essa piedade, por mais nobre que aparenta ser, carrega em si uma armadilha silenciosa: transforma o amor em condescendência e o cuidado em servidão. Ou seja, a pena, em sua forma, é um sentimento exclusivamente humano, reflexo de nossas fragilidades projetadas no outro.

    Amar é diferente. É permitir que o cão enfrente desafios, explore e descubra suas próprias capacidades enquanto trilha o mundo ao seu redor. É compreender que, por trás de cada obstáculo, está uma oportunidade de desenvolvimento, reafirmação de instintos e fortalecimento de sua natureza como um ser pleno, capaz de agir com confiança e liberdade. Amar um cão é respeitar e valorizar sua natureza — suas necessidades biológicas e comportamentais —, sem importar a ele o peso de nossas próprias dores e ansiedades.

    Quando deixamos a pena guiar nossas ações, tendemos a superproteger o cão, ver nele o símbolo do abandono ou do sofrimento que imaginamos, carregando um peso emocional que não é dele, mas nosso. Refletir sobre essa fronteira é essencial, pois, muitas vezes, o ato de sentir pena pode ser confundido com amor. Enquanto a pena pode levar a uma relação paternalista ou mesmo temporária, o amor verdadeiro promove harmonia, sem previsões de inferioridade ou necessidade.

    Isso nos leva a acreditar que temos o poder de eliminar riscos e desconfortos, confundindo proteção com limitações. Mas será que, ao agir assim, estamos realmente amando? Os cães precisam treinar seus instintos de sobrevivência para se sentirem conectados ao ambiente em que vivem. Explorar, errar, sentir o chão áspero sob as patas ou se sujar são partes fundamentais de sua experiência. Privá-los disso é negar-lhes a oportunidade de crescer.

    Amar um cão é permitir que ele sinta o desafio de algo novo. É confiar que ele tem dentro de si as ferramentas para lidar com pequenas adversidades. É um ato de fé em sua natureza. Claro, o cuidado é essencial — assim como os humanos, os cães precisam de ar fresco e proteção contra o asfalto quente. Mas o limite entre cuidado e superproteção está na intenção: ajudamos o cão a crescer ou apenas tentamos preencher nossos próprios medos? É crucial afastar-se de nossas percepções humanas para compreender a mente de um cão.

    Excessos de pena, mesmo bem-intencionados, podem gerar confusão. Para o cão, atos exagerados de carinho podem parecer sinais de instabilidade, de incertezas e até de fraqueza. Isso não significa que devamos deixar de ser afetuosos, mas que precisamos ser conscientes. Cães prosperam em ambientes equilibrados, onde regras e cuidados caminham lado a lado. Liderança equilibrada, baseada na confiança e segurança é o que realmente fortalece o vínculo humano-canino.

    O convite é simples: observe seu cão. Diante de uma dificuldade, antes de intervir, pergunte-se: ele pode resolver isso sozinho? Se a resposta for sim, dê-lhe o espaço para tentar. Esteja presente, pronto para agir apenas se realmente for necessário — essa é a essência de uma relação de verdade. Assim, o amor que oferecemos não apenas protege, mas também expande.

    Sentir pena é uma ocorrência natural humana, mas amar é uma decisão consciente. Escolha amar. Não apenas pelo bem do seu cão, mas pelo vínculo único que vocês irão construir juntos.


  • Desencontro

    Após um ano de intercâmbio, Clara retornava a sua cidade natal. A menina que partiu, agora era uma mulher. Todos os seus medos e inseguranças, foram vencidos por suas novas experiências. Entendeu ser o mundo gigantesco e plural, cercado por pessoas diversas e muito diferentes do seu antigo e pequeno quadrado. Ela era um barco novíssimo em folha e iniciava sua navegação rumo a um oceano infinito. De seu passado, cada vez mais distante, deixou uma paixão, agora indefinida, Narciso.

    Ele era seu grande amor de juventude. Um homem cobiçado por todas as meninas da cidade. Durante muito tempo. sofrera calada até conseguir manifestar seu desejo de conquistá-lo. Quando finalmente conseguiu e teve seu amor correspondido, ela jurava que nada no mundo os separaria.

    Durante seu período de viagem, experienciou tantas coisas incríveis que conseguiu apaziguar sua paixão. Entretanto, não via a hora de poder revê-lo. No dia marcado para o reencontro, não conseguia esconder sua ansiedade. Ele a convidou para ir ao melhor restaurante da cidade. O cenário estava armado para uma noite memorável entre amantes.

    Quando chegou ao local, Narciso já a esperava com certo ar de impaciência. Ela abriu um largo sorriso de felicidade e ele respondeu sério com impaciência.

    — Que saudade!

    — Você está atrasada e me deixou esperando.

    Ela estranhou a reação, mas tentou amenizar a situação.

    — Desculpe, eu demorei um pouco me arrumando. Queria estar bonita para esta noite.

    — Parece até que não sentiu saudades.

    Desconfortável, ela prosseguiu.

    — Como você está? Tenho tantas coisas para te contar…

    — Eu fiquei muito chateado quando decidiu ir para essa viagem, eu não concordei. Até hoje penso o mesmo. Clara, você tinha tudo aqui, sabia que eu podia te dar a melhor vida do mundo. Quando foi, minha empresa estava começando a fazer sucesso. Você não tem ideia de tudo o que eu construí nesse tempo. Minha empresa é a maior da cidade. São tantas mulheres querendo estar no seu lugar, tem ideia disso, né? Devia ter valorizado por tudo o que eu posso te oferecer. Espero que agora se esforce para
    recuperar o tempo perdido…

    Ele seguiu falando. Ela não conseguia mais ouvir, só pensava. Nesse ano, cresceu tanto como pessoa. Conheceu tantas outras fantásticas. Aprendeu a valorizar-se enquanto mulher. Sabia muito bem o que queria.

    Interrompeu seus pensamentos e a fala de Narciso.

    — Preciso ir embora.

    Ele tentou falar, mas ela somente virou as costas e saiu.

    Sua trajetória estava apenas no início e queria desbravar o mundo. Não podia se submeter aos limites do passado. Muito mais do que parecer, ela precisava ser. Precisou se libertar das correntes passadas que a tornavam pequena. Para isso, fez de um encontro, desencontro.


  • Poesias de 1 a 99

    #01: Instante de Pura Poesia

    eu ontem, passando na calçada,
    deparei-me com uma visão
    aterradora de um pássaro
    que, ao defender seu espaço
    de um intruso invasor, levou
    a pior na batalha sangrenta e,
    roto e estropiado, na arvorezinha
    mirrada, olhando de soslaio,
    entre sangues, o espaço mítico
    que habitara e cuidara durante
    longos anos, agora perdido
    para sempre.

    solidariedade ao pássaro
    ferido de morte.

    Da Essencialidade da Água.


  • Crônica Burocrática

    A crônica começaria agora, mas é preciso antes que o leitor e o cronista paguem a taxa necessária ao andamento das crônicas. A TADC. Parágrafos são caros. Quando saem do mundo real então! Cada palavra tem seu preço tabelado. Cada figura de linguagem uma alíquota a mais. Por isso, cuidado com as vias! Uma para o leitor, outra para o cronista.

    E, depois disso tudo, ainda hão de enfrentar, cronista e leitor, uma fila no Banco da Estupidez, uma passada na Seção das Inutilidades e ainda retirar novos recibos no Departamento da Embromação.

    A crônica recomeçaria agora, contudo, ainda há a taxa para a liberação da crônica, a TLC. Os juros estão pela hora da morte. Pensar custa caro! Escrever o que se pensa… Mais caro! E precisa de carimbo, de selos, de revisão, de anotação, novas filas e seções e recibos. Cartão.

    E não adianta reclamar. Caso contrário, nada de crônica, nada de leitura. Nas orelhas de ambos um puxão.

    Cronista e leitor avançam, com papéis de variados tamanhos nas mãos, moedas nos bolsos e paciência e mansidão. Mansidão?

    Insatisfação.

    E pegam outras folhas e envelopes. E precisam de assinatura e maiores carimbos. E correm contra o tempo. Contratempo. Aflição.

    Afinal, vivemos no país da burocracia! Nada se faz sem papel, sem carimbo, sem vias e mais vias… idas e vindas de seção em seção!

    E não adianta reclamação!!!

    A crônica recomeçaria agora…

    Mas, com as redes sociais, ainda há a taxa de verificação de autenticidade. Autenticidade? Vai que esse texto tenha sido escrito pelo Luis Fernando Veríssimo? Nessas terras tão complexas da internet, a cópia e a manipulação dão o tom! E olha que, mesmo fazendo a tal verificação, corre-se o risco de não poder publicar! De não poder escrever! Sei lá… E ainda tem a “Inteligência Artificial” … Será que a “Inteligência Artificial” tem capacidade para escrever uma crônica? O que será dos cronistas?

    A crônica recomeçaria agora…

    No entanto, antes que uma multa chegue à redação é melhor que se dê cabo ao pretenso texto… Imaginação? Não!

    Que tal um ponto final?


  • Folhas ao vento

    Entro no parque e na primeira curva avisto o Soprano, nome que atribui a um funcionário do parque. Fácil identificar o Soprano de longe, mesmo que vestindo o mesmo uniforme dos outros funcionários – ele anda com seu companheiro fiel, o soprador de folhas, sempre a tira-colo.

    Conforme chego perto, umas nuvens de folhas secas, sob o comando de Soprano, vão voando para a calha do meio fio e, de lá, graciosamente, se acomodam na beira do jardim, embaixo das árvores.

    Soprano segue o caminho, ora soprando para a direita, ora para a esquerda, impávido e concentrado na tarefa de direcionar as folhas para seu devido lugar.

    Sim, pois ali, em descanso, elas permanecerão até que uma brisa, ou quem sabe um vendaval, as mande de volta para povoar o caminho e exija o retorno de Soprano. Uma missão diária que justifica sua presença no parque, visto que é um soprador, não um catador de folhas.

    Ali, caminhando, após cumprimentar Soprano e receber seu sorriso agradecido, (talvez porque muitos passam e o ignoram como se fizesse parte do equipamento), meu pensamento se volta para esse movimento de ida e volta das folhas secas de nossa vida.

    Tudo o que somente sopramos, espantamos momentaneamente porque está perturbando o caminho, mas não eliminamos, não solucionamos, ao primeiro ou último vento retorna para nos atormentar.

    Hora de mudar o job description do meu amigo Soprano, incluindo a tarefa de sugar as folhas secas sopradas.

    Hora de buscar as nossas próprias folhas secas que ficaram pelo caminho e dar a elas um destino.


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